Bicho Fala? (um causo, uai, escrito por Joca)

Andando por esse Centrão Velho de São Paulo, dentre esses predião que some de vista pro alto, de modo que o céu parece se esconder, meu pensamento se volta num rumo de um tempo que num vivi, lá atrás, quando esse Centro era mesmo um sertão. Assim que me ocorreu de me lembrar duma história contada por um papagaio muito do esperto. Você que está lendo aqui deve estar pensando: Mas, desde quando bicho fala? Olha, nem é muito bom se aventar em polêmica, pois outro dia escrevi num outro lugar que bicho não fala e isso provocou um protesto veemente por parte de uma Comissão formada por seres das mais variadas espécies – do chão, da água, do ar que fizeram uma romaria até minha casa, exigindo retratação! Traziam documentadas várias provas, dos quais não cabe aqui nesse espaço. Problema diplomático dos mais sérios, pois do contrário, poderia haver sérios atritos entre os bichos e os humanos, relação essa já estremecida há algum tempo. Acabei com esse risco, redigindo uma simples nota, onde reconhecia a existência de uma linguagem entre os bichos, embora eu não a conhecesse...

Pouco depois, um papagaio pousou na minha janela, me perguntando de xofre: tu conhece a história do Cachorro cantor? Olhei espantado pra ele. Como que adivinhando minha idéia, gargalhou e disse: Ah, pensava que eu só repetia palavras, é? Se ferrou! Então? Quer saber ou não quer a história?

Ainda meio incrédulo, dei de ombros, como a dizer: conta vai!...

O CACHORRO CANTOR

Bom, isso foi há muito, muito tempo! Os humanos ainda não existiam na Terra. O problema é que eram muito incompetentes para se reproduzirem – eram muito inocentes, não manjavam nadica de nada! E a única cegonha existente, cobrava muito caro para buscar os filhotes humanos, um preço realmente exorbitante, tornando inviável o transporte. Porém, passou-se algum tempo, outras cegonhas chegaram, outras e outras e não demorou muito que cegonhas se dispusessem a buscar bebês humanos por um mísero punhado de milho... lei do mercado, da oferta e da procura, sabe como é... mas, vamos a nossa história:

Como eu dizia, foi há tanto tempo... um tempo em que os gatos, sempre vaidosos, se banhavam em leite... cachorros faziam colares de lingüiça.. Por falar em cachorro, é aqui que começa nossa história:


- o Cachorro era na época um grande astro da música. Lotava estádios, clareiras, era o artista mais bem sucedido de então, recebendo altos cachês, sendo convidado como atração principal em todos os eventos que ocorriam na mata e até fora dela, nos chapadões, para além dos brejos e das montanhas.

O Cachorro tinha uma prima, a raposa, que, a despeito de ser considerada muito inteligente e arguta, conservava o desejo secreto de ser artista. Por isso, se moia de inveja do sucesso do primo famoso, chegando – sabe-se por qual caminho do pensamento! - à conclusão de que o único modo de alçar algum sucesso, seria tirar de circulação o Cachorro e sua cantoria.


E foi assim que, depois de o Cachorro ter retornado de uma de suas turnês de sucesso, a Raposa foi até sua casa para uma visita. Para aumentar ainda mais seu rancor, no momento em que chegava, duas cadelinhas Golden saíam da casinha do primo, aos risinhos, ajeitando as fitinhas rosas que traziam presas à guisa de coleira... A Raposa afastou-se de lado – as cadelinhas nem a notaram, correndo, saltitando entre risinhos desavergonhaddos. E a Raposa entrou, encontrando o primo bocejando, com uma estranha cara de felicidade e dengo:

- Boas tardes, primo!
- Hã! Ah, boas tardes, Comadre! O que a traz aqui?
- Bem, vim visitá-lo! O primo agora é muito famoso, não tem mais tempo para os parentes e...
- Imagina, comadre! A senhora é sempre bem vinda a minha casa!
- Mas além de visitá-lo, também vim lhe propor um negócio....
- Comadre, se é shows, aviso-lhe que minha agenda está repleta por todo esse ano e até metade do outro! Não cabe mais nada.

A Raposa mirou o outro, que esticava as patas num espreguiçamento, bocejando, num gesto de desdém capicioso. Sentiu o sangue ferver, no entanto abriu a boca num enorme sorriso, murmurando entre os dentes:

- Não Compadre, não vim lhe propor mais trabalho, vim apenas lhe apresentar um plano que, se você o seguir à risca, será muito mais que um artista de sucesso!

O Cachorro pareceu sair do torpor em que estava ao ouvir isso:

- Comadre, sou um artista de considerável sucesso, não posso almejar mais...
- Como, Compadre? Claro que pode! – e, pensando consigo: mordeu a isca, cretino! – pode ser muuuito mais do que és! Podes ser um mito, quem sabe um deus!
- Comadre, eu não tenho intenção de me rivalizar com...
- É verdade, compadre! Não se deve! – atalhou logo a Raposa, murmurando entre os dentes consigo mesmo, se não tinha ido longe demais! Mas, prosseguiu: - Mas, um gênio como você deve almejar algo mais do que ser um escravo do sucesso! Ser o maior dos cantadores não é nenhum exagero, pois o és verdadeiramente!
- Bem... eh! Eh! Eh! – o Cachorro deu um risinho tímido. Percebendo o bom momento, a Raposa insistiu: Então, Compadre?
- Ora, Comadre! Bem que eu gostaria que fosse assim.. contudo, sou apenas um cantor...
- Compadre, você já se deu conta de que sua boca é muito pequena?

O Cachorro foi até um espelho enorme, do tamanho da parede de sua casinha, mirando-se cuidadosamente. Lembremos que nesse tempo, de fato a boca do futuro amigo do Homem, era de fato pequena. Ainda meio cismado de que estivesse sendo vítima de uma piada da prima esperta, o Cachorro ponderou:

- É. É pequena sim, mas foi assim que a natureza me fez e...
- Ora, Compadre! Podemos aperfeiçoar o que a natureza fez, esse é o nosso destino. Temos que evoluir, não podemos ficar parados! – a Raposa dava pulos de excitação.
- Como?
- Fazendo uma cirurgia para ampliar sua boca! É pura lógica: boca maior, maior a voz! Sabia que pesquisas recentes afirmam e comprovam!
- Mas, você tem a boca grande e não canta nada!
- Hein!?! – a Raposa o encarou, a principio com raiva, mas logo se recompôs: - Ora, Compadre! Simplesmente porque não tenho o seu talento! Não tenho o que aperfeiçoar... – e fez cara de muxoxo, com beicinho, arrancando a compaixão do Cachorro:
- Não quis ofendê-la, Comadre Raposa... Mas, diga-me, como seria feita a...
- Deixe comigo Deixe tudo por minha conta! – e o agarrando pela mão, saíram correndo rumo a casa do Dr. Castor, que antes de ser engenheiro, exercia a profissão de cirurgião.

Foi realizada a operação. O Cachorro se afastou do palco por algumas semanas, mas autorizou uma intensa campanha publicitária sobre a nova fase de sua carreira. No dia anunciado, lá estava o luxuoso palco, câmeras de TV, fotógrafos se acotovelando, à espera do momento mágico. Orquestra afinadíssima. Grandes personalidades da Floresta presentes. Até o Uirapuru, avesso a festas e aparições públicas, lá estava, na primeira fila. O Cachorro estava tão confiante que nem se deu ao trabalho de ensaiar. Ei-lo que surge, sob uma ovação ruidosa. Maestro Pintassilgo, batuta na asa direita, inicia os primeiros acordes da orquestra. Diante do microfone, o Cachorro começa.

Mas o que ocorre em seguida é assustador. O Cachorro, peito estufado, emite um ruído medonho. A bicharada na platéia, primeira fica muda de espanto, depois, foge apavorada. Apenas o Homem, num canto da clareira, bate palmas freneticamente, afinal, nada entendia de música. O Cachorro, suando frio, em pânico, tenta cantar mais uma vez e tudo o que emite é um terrível uivo. Os componentes da orquestra largam os instrumentos e fogem. Maestro Pintassilgo, salta para o alto de uma Braúna. O Homem continua batendo palmas para o Cachorro e, dizem que foi exatamente naquele momento que o Cachorro juraria para sempre ser amigo do Homem... Mas, antes tinha uma continha a acertar com uma certa Raposa... E iniciou uma furiosa perseguição que prossegue até os dias atuais.
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