DE SERTÃO PARA SERTÃO (Na trilha dos Bandeirantes, Pilar - GO)

Igreja de Nossa Senhora do Pilar - Pilar de Goiás.


Fugindo do caos aéreo, recorri a meu cavalo, o Murzelo Alazão, para chegar até Pilar de Goiás, naquele estado, lugar onde, há séculos, uns caboclos chegados daqui, do Sertão Paulistano, armaram algumas tribuzanas, ameaçando botar fogo em água, colocando os então habitantes daquele lugar paradisíaco em polvorosa....

Bem, isso foi há tempos. A Pilar de hoje é cidadezinha pacata e pacífica e do passado guarda apenas o encanto e os mistérios, a magia que permanece viva em suas Folias do Divino, em suas Cavalhadas, em seus calçamentos de pedra, seus casarões centenários, nos “causos” contados pelos antigos moradores.

Lá cheguei, guiado pela Estrela Guia, a Katchere (Mulher-Estrela), a Musa Verdadeira. Eu estava um tanto receoso que o Alazão aprontasse alguma de suas costumeiras covardias de refugo, mas, felizmente, tudo deu certo, com o Murzelo Alazão avançando sobreiro e faceiro, todo empinado, trincando os cascos....

Em casa de Tia Angélica – professora, historiadora, poeta, compositora, contadora de causos – compreendi a falta de receios do Murzelo: um verdadeiro anjo de doçura, bondade e sabedoria, um desses raros seres que surgem no mundo para nos transmitir paz e amor!!

Entre saborosos goles de café, cujos grãos torrados foram moídos momentos antes, (trazendo-me a mente lembranças há muito esquecidas, quando, na distante meninice, presenciava minha velha mãe fazendo a mesma coisa), a voz suave e mágica de Tia Angélica, nos guiou a um conto muito antigo, levado provavelmente, pelos bandeirantes lá por fins do século XVII...



A FILHA DO REI (por dona Angélica Pereira Ramos)


A Princesa era uma moça muito triste, jamais sorria. Inconformado pela tristeza da filha, o rei seu pai, anunciou que daria sua mão e uma fortuna em ouro e jóias ao cavalheiro que a fizesse sorrir.

Tia Angélica

Muitos pretendentes, bonitos, ricos e valentes príncipes, vindos de todas as partes do mundo, tentaram em vão tal façanha. A linda Princesa limitava-se a olhar as pantominas que os mesmos faziam, com ar melancólico e enfastiado...

Ora, existia na cidade, um sujeito sobre quem se dizia as coisas menos edificantes que se pode dizer de um homem: velhaco, de pouca ou nenhuma confiança, um “pé-de-canteiro”*, um “boró”**, um malandro, um desqualificado, um “quarta-feira”*** que vivia de pequenos expedientes ilícitos. Qual não foi a surpresa no reino, quando, da tribuna do Coreto, na Praça Central, o “Boró” anunciou sua intenção de casar com a princesa, fazendo-a não só sorrir, mas gargalhar. Naturalmente, arrancou protestos indignados, copiosas vaias. Onde já se viu! Não bastasse a petulância, inda vinha a pretensão: fazer a Princesa gargalhar! Onde já se viu! Princesas não gargalham, apenas sorriem, elegantes...

Chegando em casa, o “Boro” foi severamente repreendido pela sua santa mãe, inconformada com a “...sina daquele menino desnaturado, destinado a desonrar o nome da família, pobre mas decente... melhor faria se estivesse com enxada a capinar!” Mas ele, disposto estava a levar adiante seu plano, anunciou: “Minha mãe, vou fazer fortuna vendendo carne de caça!”

E assim, eis que no meio da manhã do outro dia, surge na cidade, ele, o “pé-de-canteiro”, “quarta-feira”, “boró”, velhaco, o malandro, puxando um velho pangaré, magro e bexiguento, que por sua vez puxava uma carroça cheia de carnes! Mas, junto com a carne, vinha junto uma nuvem de moscas e da carne desprendia terrível odor! Devia ser carne de capivara ou tatu peba! E o “Boró” anunciava a venda de carne e, pior, a alto preço! Mas, por onde passava, o povo tapava as narinas, incomodado com o cheiro insuportável e comentava: “Quem seria louco de comprar aquela carne muxibenta?” Porém, incólume as críticas, o “Boro”, prosseguiu sua faina, oferecendo de casa em casa a carne fedorenta, sem encontrar um único interessado... o máximo que conseguiu foi expressões repulssivas de nojo...

Após andar pacientemente por toda a parte, chegou até a Praça Central, bem diante dos aposentos da Princesa e, sentando-se em cima da carroça, começou a cortar pedaços da carne e atirar aos cães. Primeiro, foram os cães vadios, famélicos e sarnentos que se aproveitaram, mas, como notícia de carne corre rápida entre os cães, em pouco tempo uma quantidade impresionante de cachorros se formou em torno da carroça do Boro, cheia de carne. Bem, ele distribuiu alguns nacos e foi embora, deixando a cachorrada brigando pelos despojos!

Chegando em casa, foi recebido pela mãe zelosa: “Menino desnaturado! Onde já se viu! Manchar o nome da família! Vender carne ruim pra gente decente! Não compram, ora! Onde já se viu?” Ao que ele respondeu: “Ora, se não vendo carne pra gente, vendo pra cachorro!”

E, no outro dia, logo de manhã, foi ele para a Praça Central, diante dos aposentos da Princesa, onde o grupo de cachorros já esperava, a ganir festejos, alegres. Pacientemente, ele cortava carne e jogava, a espaços regulares. E mais cães chegando! Agora, já não eram somente cães vadios, mas sim cães de guarda e caça, até cães de madame se acercavam; cachorros abandonavam seus tratadores, fugiam das bacias de banho e corriam para a Praça! Outros quebravam correntes, cavavam por baixo de muros e cercas, formando uma quizumba sem tamanho. Caçadores, moradores, até o Destacamento Policial do reino se viu privado dos valiosos cães, pois todos estavam na Praça, banqueteando-se com os pedaços de carne de capivara e tatu peba, que o Boró distribuía generosamente!

Os donos dos cães, a princípio até ignoraram o Boró, chamando os cães de volta, mas, os mesmos não arredavam pé, ignorando os donos! Então, eles falaram com o Boró: queriam os cães de volta! Porém, o mesmo, fez um ar altivo e disse: “Eles comeram minha carne! Carne que eu ia vender!” os homens: “Como? Essa carne fedida, ruim?!” O Boró: “Era minha carne! Carne que eu ia vender! Se quiser os cachorros de volta, que me paguem!”

Bem, pra encurtar a história, conversa vai e vem e o remédio foi pagar. E pagaram o preço que ele cobrou! Pagavam em moedas de ouro, em notas, em jóias! E o Boró foi enchendo os bolsos, os picuás, os embornais! Sacos de dinheiro. A carroça, antes cheia de carne fedorenta, agora estava cheia de dinheiro. Poucos notaram, mas, lá do alto, da sacada das alcovas reais, a Princesa a tudo observava e, no momento em que os donos dos cachorros saíam arrastando seus bichos entre impropérios e o Boró recolhia o dinheiro, ela deu uma sonora gargalhada!

Bem, palavra de rei não volta atrás, todos sabem: entrou pelo pé de pato, saiu pelo pé de pinto! O rei mandou dizer que conte mais cinco!

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* ** ***: expressões típicas da região, para designar velhaco, sujeito-a-toa, etc.
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