AS FLORES NO ASFALTO E A MUSA VERDADEIRA (parte I)

Para Ariano Suassuna










Outro dia estava indo, da região do Paraíso rumo à Avenida Paulista, na companhia de meu amigo Zé Mangabeira, quando nossos olhos foram tolhidos por uma visão inacreditável: um pedaço do asfalto havia rachado e dele emergia uma frágil e singela flor, fresca, sublime, imune à fuligem e poluição dos carros em torno, indiferente aos milhares de pés que pisavam em volta, sem atingi-la. Zé Mangabeira, caboclo capaz de varar noites solitárias em caminhadas destemidas ou encarar, sem pestanejar, o sol inclemente do verão, não é homem de se impressionar com pouca coisa, mas percebi que mesmo ele estava pasmado, ante aquela imagem quase surreal. Ele não é daqui, é lá do cerrado, só vem à cidade resolver negócios de família, pois ele se diz descendentes de Reis e que deve fundamentar contatos por diversas regiões, pois, breve a Monarquia será reintroduzida em nosso País, e ele reivindicará o trono, que muitos pensam ser daqueles usurpadores Braganças... Missão Real é coisa de berço, diz.



Ele não aprecia que eu diga que ele é do cerrado, apenas: "Um Prinspe", diz, "não é de um lugar só; é das montanhas, das caatingas, dos pampas, das florestas, das cidades, de tudo quanto é lugar desse imenso país que Deus fez...”

Também não gosta que o associem a um outro, que anda por aí, usando o nome e prestígio dos Mangabeiras para se fazer Ministro e professor de Harvard... Segundo o Zé, um verdadeiro Mangabeira deve dar-se ao respeito, não se meter em atividades mundanas, burguesas e plebéias, a serviços de patrões e representantes dos grandes capitais; um Mangabeira que se preze deve honrar a estirpe cavalheiristica do ancestral clã e de todos que vieram antes mesmo de Carlos Magno e dos 12 pares de França...

Toda vez que nos encontramos, o Zé faz questão de narrar a história gloriosa de seus antepassados Mangabeiras ao longo das Eras, da qual conheço os mínimos detalhes, apesar de, às vezes, ele misturar personagens, fatos e situações: ora um é herói, noutra transmuda-se em vilão ou vice-versa...

Bem, passado o impacto inicial, finalmente, consegui respirar e balbuciar:

– Viu só, Zé! Que coisa mais bonita, sô! Isso é milagre! Uma flor é mesmo poderosa, pra conseguir sobreviver numa condição dessa! – Olhei pro Zé e ele ainda estava estático, como que acometido de um ataque de apoplexia. Porém, isso foi apenas um instante. Em segundos, ele já tinha recuperado toda a autoconfiança de membro da Família Real Brasileira. Meramente deu de ombros, fingindo a mais absoluta indiferença:

– Ah, minino! É porque tu não sabe da flor que é símbolo do Cerrado, a Princesa! Uma flor incantada, que às vezes aparece aos montes outras some de vista, fica-se tempos sem ver uma sequer... É quando fica encantada. Dizem, que uns poucos privilegiados têm acesso a seus incríveis poderes. Os antigos sábios de meu Reino diziam que ela possuía inúmeras propriedades, entre elas a de encantar os enamorados... outros ainda que teria dons óptimos que concederiam imortalidade, invisibilidade, etc... Certo mesmo é que o Cavalheiro que tivesse a honra de conduzi-la na entrega à Dama de sua admiração, adquiriria poderes supraterrenos... E foi justamente na condução de uma dessas preciosidades que vim a confirmar minhas origens reinóis... Se desejar, posso lhe contar essa história, advertindo-o de que se trata de um Segredo de Estado, só compartilhado por pouquíssimos de meus leais Conselheiros....

– Moço, conta isso! – Eu disse, por dizer, pois o Zé me contaria quer eu quisesse, quer não!...,Ah, e não dei muita bola para aquela história de Conselheiro da Família Real Brasileira. Já me acostumara a ser promovido. Não contava nos dedos as inúmeras posses de vice-reinados, ilhas, condados, títulos de baronato e outros honoríficos a mim concedidos...

– Bem – começou ele – foi num tempo que, agoniado por umas visagens que eu não compreendia, recebi uma mensagem de que deveria partir imediatamente em busca da flor-símbolo do cerrado para entregá-la a uma Dama, que seria a redenção para todos os amores desfeitos e outras controvérsias desse mundo, como as guerras, por exemplo... Eu só tinha era que me fiar na Estrela-Guia, que lá no céu me orientava os caminhos...

"Ora, com Estrela-Guia não se discute, nem mesmo um Mangabeira legítimo! Encilhei meu cavalo, o Murzelo Alazão e caí no mundo, de quando em quando aprumando os olhos pro céu, buscando a Estrela-Guia, sempre presente, mesmo nas horas mais medonhas....

"Montado no Murzelo Alazão andei dias e noites infindos, aparentemente sem nada acontecer de vulto, com exceção de raios, trovões e tempestades, muitas vezes passando dias sem comer ou beber... Fora isso, tudo era uma monotonia enervante, pois tu sabes que um guerreiro só sente o sangue circular pelas veias quando no enlace de combates mortíferos ou ...- ninguém é de ferro - nos braços de uma doce morena eh! Eh!

Olhei o Zé meio de esguelha! É, ele tinha esses desvãos em suas protagonizadas ações de nobre cavalheiro para vir com esses desvarios de safadezas de alcova. Se ele prosseguisse com essas falas, teria de alertá-lo que estávamos em local público, cercado de gente, de senhoras, damas e moçoilas do mais fino trato, cujos ouvidos não deveriam ser maculados com essas libertinagens, mesmo de um Príncipe Herdeiro... E, além de tudo, não sei porque coincidências deste mundo, seu cavalo também se chamava Murzelo Alazão... ao que eu saiba, Murzelo Alazão é o MEU cavalo. Entretanto, deixei a história pra, pois, também, não descarto a idéia de o Murzelo possuir um duplo... Bem, o Zé, felizmente, retomou o condão descritivo e heróico de sua narrativa, sem as temidas menções passíveis de censura pelos Vigilantes da Moral Vigente:

“Mas isso era enganoso. – prosseguiu ele - Logo tudo desembestou, numa sucessão de cortar o fôlego! Puxa! Eu estava meio enferrujado, pois durante dois meses só havia enfrentado tempestades, raios, trovões, fome e sede, coisas de somenos para um guerreiro e, de repente, sem avisos, eis que me enveredo naquela sucessão insana de ação!

“Não dá pra contar tudo de uma vez, mas pulei um fosso, atravessei corredeiras, passei por rios infestados de piranhas e jacarés, passei por lagos cheios de crocodilos. Eita que o Murzelo Alazão provou sua raça! Num fim de tarde, ao fazer o Murzelo beber água numa lagoa, surgiu-me à frente um bicho grandão que pelo jeito só podia ser o Monstro do Lago Ness! Eh, que trem feio! Mas tomei a frente do Alazão e, peixeira em punho, fiz o tal mergulhar no lago e ficar por lá mesmo, se não quisesse virar picadinho! Afinal, eu estava numa Missão Sagrada, a serviço da Dama mais formosa que hai nesse mundo, ungido por Anjos, conduzido pela Estrela Guia, não ia ser um roedor mequetrefe daqueles que ia me impedir...

Zé Mangabeira parou na calçada, em frente o Edifício Gazeta, fazendo um senhor de terno e maleta na mão chocar-se contra ele e xingar e se desculpar ao mesmo tempo. O Zé nem ligou, pois estava concentrado em sua narrativa, fazendo grandes gestos, olhos arregalados e brilhantes, prosseguindo sua história depois de breve pausa, quando pareceu reordenar as idéias.
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