PANE NA CIDADE

Baseado na obra de Friedrich Dürrenmatt,
autor, entre outros, de Seria Cômico se Não Fosse Trágico


Meio perdido em pensamentos e devaneios, andava eu, montado em meu cavalo, o Murzelo Alazão, numa tarde quente, pelas trilhas e veredas do Grande Ser-Tão paulistano. O Murzelo trotava molemente, coberto de suor, quando encontramos uma imensa árvore, à beira da Marginal. Paramos a sua sombra. Era uma figueira asiática, que faz boa sombra mas que faz um estrago danado, arrebentando asfalto e tubulações subterrâneas. Enfim, uma árvore trazida para cá sem que se levasse em conta o planejamento urbano. Indiossincrasias inevitáveis, até que governos aprendam.... Naquele momento, a sombra da figueira foi bem vinda e trouxe algum alívio, quando me pus a assuntar. Podia ver as ondas de calor, tremulando ao longe em meio a névoa de poluição e ruídos e vozes – imprecações, xingamentos - abafados. Estava em meio a um grande congestionamento. Todas as pistas da Marginal estavam tomadas, os carros parados e com os vidros abertos – exceto os que eram dotados de ar condiocionado. De toda a parte surgiam como formigas, vendedores ambulantes com caixas e mais caixas de isopor contendo água, cerveja, refrigerantes e salgadinhos e circulavam por entre os carros gritando e oferecendo seus produtos...

Ainda montado no Alazão, recorri ao celular e ao note book, acionando os vários sites que pudessem me informar sobre o que estava causando aquele transtorno (ando a cavalo, mas não dispenso os modernos apetrechos tecnológicos. Meu sonho era ter um GPS acoplado ao Murzelo e assim ter a honra e o mérito de ser dono do primeiro pangaré da história munido com GPS....). Mas, parece que todas as linhas telefônicas e sites da internete estavam igualmente congestionadas. Nenhuma informação confiável, nenhuma! A cidade parecia ter entrado, literalmente, em pane!

Na verdade, aquele drama que vez ou outra assola os paulistanos, era algo que a mim, que ando a cavalo ou a pé, pouco afetava. A mim chegavam apenas ecos do grande distúrbio infernal que prejudica milhões de pessoas por conta de greves dos sistemas públicos de transporte ou acidentes naturais, como enchentes, desmoronamentos, etc. Estamos todos à mercê de toda sorte de incidentes, sejam naturais ou do aparelho burocrático. À sombra da figueira, eu e o Murzelo corremos olhos em torno: irritantes buzinas, motoristas nervosos, a névoa de poluição, o sol inclemente, tudo me fazia desejar ardentemente encontrar um boteco e molhar a goela com uma cerveja gelada... Acho que hoje, tal o calor e desconforto, até o Murzelo Alazão, se dobraria e aceitaria beber cerveja, como aqueles míticos cavalos do velho Oeste, candidatando-se a se tornar atração circense... Até aqui, o Murzelo resistiu bravamente, numa dignidade rara para um pangaré cobarde de seu quilate: recusava cerveja e nem queria ouvir falar em atração circense. Após o descanso, retomamos o caminho, pois avistei lá na frente, antes do Viaduto Tietê, um boteco que me pareceu aprazível...

Lá chegamos e por sorte, havia diante do bar uma simpática árvore, uma quaresmeira, essa sim, uma árvore perfeitamente de acordo com o planejamento urbano, pois dá boa sombra e não causa danos nem aos fios elétricos nem as tubulações subterrâneas... Prendo as rédeas da montaria e me dirijo ao boteco. Lanço um olhar comovido ao Murzelo e noto que tem uma das patas desajustada, está manco. Falta-lhe uma das ferraduras. Pobre Murzelo: como se já não bastasse a magreza que por vezes faz lembrar Rocinante, andar “descalço” por esse áspero concreto é verdadeiro tormento. Decido: vou tomar minha cerveja gelada e a seguir procurar um ferreiro para cuidar da sapatilha de minha montaria, pois, esse é animal de valor. Montado nesse cavalo, a vida corre solta, pois a circulação do pangaré não é sujeita as regras formais do transito e ele pode atravessar canteiros, até andar na contramão, pois os guardas ainda não descobriram uma fórmula de multar cavalos. Mas, há um receio de que esses dias estão contados. Já ouvi falar por aí que uma comissão de zelosos deputados decidiram fazer jus aos 15 salários anuais (mais jetons, bonificações, verbas de gabinetes de uso livre, gratificações, etc) e estão prontos para se reunir criando uma Lei restritiva á presença de cavalos nas ruas, pois, embora não seja muito comum, ainda os há em abundância no Ser-tão, servindo de montaria e até transporte, resistindo às tecnologias e novos costumes.

Meio sem querer, em meio a essas importantes considerações, ergo a vista e vejo o motivo do congestionamento monstro: uma carreta está tombada, atravessada, tomando várias pistas da Marginal. A CET já está por á, e também uma ambulância do SAMU, pois parece que alguns carros foram atingidos. Apenas uma pista está livre e por ela os carros escoam vagarosamente. Os demais acumulam-se na própria Marginal como nas ruas adjacentes, a tudo transbordando, como ondas avassaladoras...
Aproximo-me do boteco e a aparência inicial não me agrada: as duas portas meio enferrujadas, mal iluminado, e mal distingo alguns vultos que parecem reunidos em torno de uma mesa comprida. Atrás do balcão, perto da máquina de café de aço inox desgastada pelo uso, com pontos de ferrugem aparecendo, está um sujeito sonolento, vestindo um avental bege, olhando desanimado para um ponto no vazio, esperando fregueses inexistentes, certamente perdidos no congestionamento, mais preocupados em imaginar como chegar em casa... Ao fundo, ouve-se um melancólico “pagode” executado por um desses grupos que parecem produzidos em série. O ar, oscilante, parece denso de fumaça de cigarro. É pouco encorajador, mas a sede é tanta que decido entrar.
Assim que adentro ao lugar, percebo que não é tão mal: em torno da comprida mesa, vejo cinco figuras que me olham com um ar de certa impaciência. Três deles estão vestidos com batas negras. Olho com mais atenção e vejo tratar-se de togas. Aquele que parece o mais velho deles está à cabeceira. É um homem magro, diria seco, rosto fino, parecendo o senador Marco Maciel, com exceção de uma vasta cabeleira grisalha. Seu rosto é branquíssimo, transparente e sua idade me parece indefinida: poderia ter 70 ou 100 anos. Ao lado, dois outros homens, também idosos, sendo um obeso, a barriga enorme coberta por uma camisa branca ensebada com dois botões estourados deixando aparecer parte do ventre. Óculos de fundo de garrafa no rosto redondo e me olhava tristemente, enquanto abanava o rosto com um maço de folhas de papel... Em frente a ele, outro velho de rosto enrugado e severo, cujas pelancas de pele pendiam nos lados da face. Me olhava como se estivesse bastante zangado, o rosto crispado. Duas outras personagens estavam presentes, e me olhavam com expressão indefinida: pena? Zanga? Fúria?. Ambos aparentavam meia idade e tinham os cabelos pintados de acaju e a raiz esbranquiçada aparecia.
Assim que surgi, o homem da cabeceira, olhando-me fixamente, levantou-se e numa voz cavernosa disse:
- Seu Joca, aproxime-se! Estávamos todos à sua espera e o senhor está atrasado!
Fiquei parado, espantado, imaginando que tinham me confundido com outro. Mas eles continuaram a me olhar, como se esperassem de mim outra reação. Mas, continuei encarando-os como os estranhos que eram. Então, o velho da cabeceira, o que parecia ter entre setenta e cem anos, respirando fundo começou a falar, com clara irritação na voz:
- Seu Joca, talvez tenha ignorado a intimação lhe enviamos, convocando para o julgamento que se daria nesse dia e hora marcados.... o senhor atrasou meia hora e isso garanto que será levado em conta!
- Senhores, sou Joca, sim, Prinspe dos cangaceiros desse sertão paulistano. Mas posso assegurar minha palavra reinól de que não faço nenhuma idéia do motivo que me leva a esse encontro com os senhores. Por aqui estou por acaso e de passagem. Se meu cavalo, o Murzelo Alazão não tivesse quebrado uma das ferraduras e eu não estivesse com tanta sede, teria passado ao largo.
- Senhor Joca, que se diz Príncipe.... – interrompeu-me o velho – Este é um tribunal e o senhor foi aqui chamado para tomar conhecimento das acusações a si imputadas. O cavalheiro a minha direita é seu emérito advogado de defesa – apontou o gordo com a barriga estufada – e o distinto a minha esquerda, o Promotor Público.. – apontou o velho de cara enrugada – e o senhor é acusado de muitos transtornos à normalidade da vida nessa cidade... ah, o Cavalheiro e a Dama presentes, são membros da Sociedade Civil Organizada, aqui na condição de testemunhas!

Sentei-me e pedi uma cerveja, que o sonolento detrás do balcão me serviu. O promotor ia fazendo uma objeção qualquer, mas o advogado interveio, afirmando que aquele não era um tribunal formal, portanto, ali a justiça era vista e interpretada segundo preceitos e ditames da consciência; aqui, os ritos formais do Poder Judiciário são perfeitamente dispensáveis e uma cervejinha não faria nenhum mal ao desenrolar dos trabalhos. Aproveitando o precedente, o próprio Juiz ordenou que lhe fizessem um rabo de galo e o Promotor, entre mesuras , pediu que lhe fizessem a gentileza de trazer uma caipirinha, com bastante gelo... O casal de meia idade pediu cerveja. Tomamos uma rodada e mais outras, enquanto nada de relevante se dizia, apenas “conversas jogadas fora, ao vento...” Seguindo meu costume, continuei apenas com cerveja, pois não costumo misturar.
Então, o Promotor se ergueu e começou a desfilar as acusações a mim atribuídas. Me senti um perfeito personagem de Kafka. A principio achei engraçadas, mas o tom sério com que o Juiz, o advogado e as testemunhas faziam anotações, começou e me deixar constrangido. Para descontrair, pedia mais e mais cerveja. Embora acreditasse que muitas daquelas divagações fossem decorrentes das doses de caipirinhas, rabos de galos e cerveja e até copos de vinho de qualidade duvidosa – num dado momento, ante o espanto geral, o Promotor solicitou uma dose dupla de catuaba – pude entender um pouco o teor das acusações. Basicamente eu era acusado de “rebeldia” e de transtornos à “ordem pública” devido à minha preferência em usar o Murzelo Alazão como transporte em vez de carro, metrô ou ônibus.... Inquirido em interrogatório, retruquei afirmando que valorizo a tradição, ao que o promotor insistiu em chamar de “apologia ao atraso”... Como o Advogado, apreciando uma caipirinha de vodka, deu de ombros, aproveitei para dizer que o progresso é possível, desde que seja coerente com várias linhas de ação, abragendo várias nuances, facetas culturais, filosóficas, espirituais. Por fim, disse num tom meio enfezado que não via tantos motivos para afobação, pois meu Murzelo Alazão na verdade é um apelo ao futuro! Além das questões afetivas tão importantes para o progresso da humanidade – a moderna psicologia atesta isso – é um transporte limpo....
- Transporte limpo? – gargalhou o juiz – Diga-me, Sr. Joca! Onde tal estulticie é levada a cabo? O diacho de seu Murzelo anda é a emporcalhar nossas ruas!
- Ora, Meritíssimo! – redargui - Um sistema eficiente faria brilhante uso das fezes de meu Murzelo, pois adubo melhor não há, como atestam opiniões das mais balizadas! Passaria pelo crivo de todos os ISOs existentes: ISO 9000, 12000, 14000!
- Meu cliente bem lembrou – saltou o advogado, em surpreendente agilidade para sua enorme pança e as muitas doses de caipirinha. Também havia experimentado do rabo de galo, o preferido do Juiz – Uma política dos afetos, eis o que nosso mundo tem de desenvolver, meus senhores! Talvez chegaríamos perto do que foi proposto na Cidade de Deus, de Santo Agostinho! Ou d’A República de Platão!
- Eita! D’A Utopia, de Thomas Morus! – gritou o Promotor, ao tempo em que voltava-se para o garçon, que permanecia olhando o vazio, indiferente – Uma porção de calabreza, com bastante cebola!
- Não se esqueça de alguns pãezinhos cortados em fatias! – aparteou o juiz.
- E vinagrete! – gritou em uníssono, o casal de testemunhas, que até então não haviam aberto a boca.
- E azeite! – berrou o advogado, cada vez mais empolgado. – Azeite verdadeiro, não aquela porcaria composta com óleo de soja! Exigimos azeite puro! E pimenta malagueta!

Eu já deveria estar na sexta cerveja, um patamar perigoso para meu limite, o que descobriria momentos depois. Entusiasmado por aquela erudição que misturava locuções jocosas, frases acadêmicas e linguajar popular, subi na mesa, copo de cerveja em punho e estufando o peito, pronunciei:
- Meu cavalo, o Murzelo Alazão, é o ponto de convergência entre passado e futuro, meus senhores! Ecologia, economia, tradição, técnica, tudo se encontra!
- Cuidado! – berrou o advogado – Quem muito fala dá bom dia a cavalo! Tenho que defender seus interesses e está sob julgamento desse Egrégio tribunal!...
Mas nada detinha meu entusiasmo. Nada como a mesa de um bar, onde sabedoria, filosofia e uns tragos nos fazem esquecer os dissabores dessa vida. Lá fora a monotonia blasé, ruídos insanos, típico das metrópoles. A verve locutória se apossou de mim, que vibrei:
- Noutros tempos, meus senhores, o Murzelo Alazão seria Senador ou Deputado!
- O senhor ofendeu a esse tribunal, consequentemente o Poder Judiciário, o Estado, expressão máxima de nossa civilização! – o juiz ergueu-se muito sério.
O advogado apertou a cabeça, num gesto de desepero. O Juiz bateu o martelo e o promotor saiu pulando e dançando, como uma criança, feliz:
- Maravilha! Nem precisei usar as outras acusações! Os vitupérios, dispenso!
- A sentença! – gritaram as testemunhas! – A sentença.
- Esperem! – o advogado ergueu o punho fechado. – Há uma questão de alinhamento conceitual que precisa ser formalizado.
- Indeferido, sr, advogado! – o Juiz bateu o martelo – A sentença, atenção!

Houve um momento de silencio, tenso. Ao longe se ouvia o buzinaço do congestionamento monstro daquela tarde em Sampa. O prefeito ficaria famoso quando disse que “... a imensa massa de carros parados, simboliza o progresso dessa cidade!” No céu se ouvia o ruído de helicópteros, conduzindo empresário, celebridades, repórteres de radio e TV. Eu estava preocupado com a ferradura danificada do Murzelo Alazão... onde encontraria um ferreiro aquela hora da tarde? Nisso, o Juiz, mão esquerda ás costas, lia a sentença
- O Joca está condenado a pagar a conta!
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