CIDADES INVISÍVEIS

“... a cidade deixa de ser um símbolo geográfico
Para se tornar símbolo complexo e inesgotável
Da existência humana.”

Sobre o livro “As Cidades Invisíveis”, de
Ítalo Calvino




Cada cidade tem seu espírito. Imanente característico ou meramente atribuído – o que nem sempre é lisonjeiro – porém se torna sob certos aspectos, marcas registradas. Assim se diz que São Paulo é a cidade do movimento e agitação permanente; que o Rio de Janeiro é a cidade boêmia; que Salvador é a cidade da indolência. Também se associa a São Paulo o transito caótico, bem como a Cidade do México, Cairo ou Tókio; de Paris se lembra dos cafés e bulevares; de Bombaim ou Pequim, a poluição. Mas o que se sabe é que as cidades nem sempre são o que aparentam. Vários são os elementos que formam seu “espírito”: suas histórias cotidianas, as tragédias, o luxo, a riqueza, o lixo, as intrigas, os simples enredos das estórias anônimas com seus encantos ou mesquinharias, tudo isso se intercala com a história política, sua arquitetura, sua cultura: são como “cidades invisíveis” aos olhares diretos, oficiais ou dos forasteiros que por ela passam. Porém, aqueles que a conhecem “de dentro”, percebem outras nuanças de cores, de sotaques, de cheiros; sabem ou intuem o que dá prazer em passear em determinados locais ou a maneira de servir de certos garçons, tornando determinados bares ou restaurantes preferidos. Se junta a isso a memória afetiva e assim milhares de camadas ou de cidades aparentemente invisíveis constroem um vasto painel que se “registra” ao longo das eras... É esse espírito que prevalece ao fim das contas, o espírito coletivo formado pelas milhares de ramificações: seus habitantes, mesmo sem se conhecerem, forjam relações intimas, tendo em comum a cidade, o lugar, cujo “espírito” sobrepõe-se aos homens e as coisas, enfim; a cidade é de todos e seu todo.

Sampa é conhecida por seu transito caótico, dentre muitas outras características. No transito, os paulistanos se “viram” para não despirocar: ouvem música, notícias, lêem jornal, namoram, tomam refrigerantes, água e quem não está dirigindo, não dispensa uma cervejinha gelada! Há um verdadeiro comercio circulante entre os carros parados, onde se pode adquirir a preços módicos toda sorte de bugigangas ou guloseimas. Como há um crescente aumento de carros nas ruas – informes oficiais fornecem dados de 800 carros novos por dia em São Paulo, mas nunca contei! – igual e progressivamente há um aumento dos pontos de congestionamentos. Alguns desses pontos são “manjados” e quem conhece busca rotas alternativas.

Aqui no Jabaquara, onde moro, um desses pontos “manjados” de congestionamento é o trecho entre as estações de metrô Jabaquara e Conceição, onde os veículos vindos do litoral ou da região do ABC e também da própria região do Distrito do Jabaquara, lugar que abriga um grande hospital público e muitos particulares, além das escolas. Todos se estrangulam num pequeno trecho da Avenida Armando de Arruda Pereira, praticamente sem vias alternativas, a não ser ruas estreitas e irregulares, de circulação quase impossível para quem não é do lugar, pois corre-se o risco de dar voltas e mais voltas e retomar a avenida num trecho para trás de onde estava! Eu não tenho esse problema, pois ando a cavalo, a bordo de meu cavalo, o Murzelo Alazão, montaria de grande valor apesar de algumas recaídas de sua origem “pangaré”, como empacar em horas indevidas além da falta de pudor com relação às suas necessidades fisiológicas, obrigando-me por questão de educação e bons modos e também por força de Lei, a andar munido de lixeira e pá (e que pá!) para recolher seus dejetos. Contudo, Vez ou outra, porém, tenho de suportar o mal humor do Murzelo quando ele pisa nas fezes dos cães, cujos donos, alguns descuidados outros porcalhões mesmo, pois não se dão ao trabalho de ter à mão a providencial pazinha e a lixeira adequada. Dou certa razão ao Murzelo, pois ter as ferraduras impregnadas de fezes caninas é coisa muito desagradável. Enfim, andar a cavalo tem lá seus dissabores e vicissitudes, mas como o Murzelo Alazão não está sujeito às regulares leis do trânsito, creio ser grande vantagem seu uso como meio de transporte...

Assim, dia destes, de manhã, quando me dirigia ao trabalho, um relincho de meu Murzelo fez-me atentar para uma imagem insólita: num ponto entre as estações Jabaquara e Conceição, por entre ônibus, caminhões, fuscas, brasilias, DKW’s, camionetes “rural” ou kombis, land rovers, mitsubichis, hondas, subarus, corollas, BMWs, etc., lá estava, comportadíssimo e devidamente arreado com viseira, ferraduras e tudo, um belo cavalo marron, puxando uma velha carroça, pilotada por um velhote gorducho e vermelho como um pimentão, trajando uma puída, mas elegante calça de linho e camisa “Volta ao Mundo” (quem se lembra das famosas camisas Volta ao Mundo?) já amarelada e encardida, mas com resquícios da antiga glória, quando encantava mocinhas nos bailes da roça e das periferias, lá pelos fins dos anos 1960 e começo dos 1970. Na cabeça, um velho chapéu coco, de feltro. No canto da boca, o velhote mastigava um ramo de capim (onde raios ele achou um ramo de capim?). A velha carroça de madeira, com pintura descascando por toda parte, estava bem conservada, pneus em bom estado e os “amortecedores” compostos de compridas chapas de ferro, muito bem “azeitadas” de graxa... A bucólica cena me trouxe velhas e doces lembranças das cidades de minha infância – Junqueirópolis, Irapurú, Flora Rica, Pacaembu, Dracena, Jaciporã – e que certamente ainda circulam pela famosa Paraguaçu Paulista, terra que nos deu de presente nosso famoso Guru, mestre Zé Maria! No caótico e paralisado transito daquela hora da manhã, os modernos carros e a velha carroça estavam no mesmo compasso, unindo num passe de mágica, passado e presente da Província de São Paulo...

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