Bem-te-vizinho

Um conto da Iara, lá de Minas uai (e veio pelo tar de imeio).

Eu, como os gregos, creio que pássaros são sinais de boa sorte. Foi numa dessas manhãs de abril, penduradas no teto do universo – de um incandescente céu azul turquesa, livre de qualquer mácula ou nuvem – que ouvi uma cantoria diferente. Desconfiada, pensei logo num pássaro perdido, quem sabe uma espécie rara, metido na confusão das grandes cidades, depois que seu hábitat foi invadido e destruído. Quando abro as janelas de casa, para deixar o frescor da manhã entrar, nem sempre presto atenção em sons de pássaros ou de qualquer outro ser. Na urbe são tantos sons se difundindo. Difícil distinguir e, a bem da verdade, damos mais atenção aos trinados dos bicudinhos quando em situação diferente do cotidiano urbano. Barulhinho de ave é doce melodia se estamos na roça, na quentura do fogão, esperando o café fumegante e perfumado passar pelo coador e querendo encher de histórias e aventuras o resto do dia. Ouvimos com devoção e até nos metemos a nomear alguns pelos gorjeios e cantorias, como se poucos momentos no campo nos tornasse especialistas na rotina da passarinhada.Mas, esse me fez reter o olhar rumo à sacada e lá estava a bolinha fofa de peito amarelo. Serelepe como uma criança ao ser avisada de que vai ganhar um sorvete, elezinho era todo prosa, cantarolando sem parar. Inflando o peitinho colorido, parecia testar a capacidade de sua afinação ou o alcance do canto agudo. Ágil e espertinho, pulando aqui e acolá, suas perninhas finas o levavam de um lado a outro do vaso onde se empoleirou. Quanto mais saçaricava nas laterais, mais descobria outros espaços na borda do meio centímetro quadrado da peça. Fez rodeios, rasantes e voozinhos marotos, como se estivesse se exibindo. Talvez para mim, uma platéia reduzida e meio abestalhada por tanta delicadeza e movimento em bichinho tão adorável. Talvez para pai e mãe – acredito eu – por perto, velando o aprendizado do minúsculo e esperto filho, em sua primeira lição de voar. Imóvel, quedei-me diante de espetáculo tão brejeiro. Fiquei contemplando, fazendo carinhos de voz em cochicho, dizendo coisas ininteligíveis e ridículas que sabemos serem ininteligíveis e ridículas, mas são as únicas que expressam nossa satisfação quando somos agraciados com visões tão delicadas e belas. Coisas daquelas que se diz a um bebê, morrendo de vontade de apertar a bochecha rosada e ninguém precisa entender, muito menos ele. O danadinho ficou pouco, mas encheu de luz e frescor minha sacada. As flores se alvoroçaram com sua presença, parecendo preocupadas com seu tamainho, mas admirando sua esperteza. Em momentos como esse, a presença do divino é certa. Não há como não crer que um deus se moveu e ainda se move para povoar o que chamamos de mundo com criaturas tão frágeis e carregadas de tanto esplendor. Como não acreditar que aquela familiazinha tão envolvida no projeto de educação do filhote não seja o resultado de um portentoso e sábio traçado dos céus? Outros bem-te-vizinhos virão à minha sacada e por lá também sempre estarão minhas amigas rolinhas que, depois de muita luta, convenceram-me a deixá-las construir seu ninho no meu vaso mais bonito. Mudei o bojo de lugar, coloquei cestinha com fiapos, fiz espantalho miniatura e botei junto à planta. Tudo em vão. Elas quiseram o meu vaso e assim foi. Nem sei quantos filhotinhos já saíram daquele abrigo, ensaiaram seu vôo do corrimão da sacada e depois ganharam o céu. Outras pessoas que não prestam muita atenção a sons de pássaros no ambiente urbano como eu, talvez tenham também o privilégio da visita de um bem-te-vizinho sapeca ou da companhia de rolinhas teimosas. Para todos nós, a beleza de estar vivo se apresenta também nas miudezas, a todo tempo. Olhos de ver, asas de aprender e cada aula de vôo é um espetáculo a parte!

A Iara pela Iara: " Eu sou mineira de Uberaba, nascida , em 1963, e criada na terra do zebu. Nunca tive um pastinho, nem uma vaquinha para cuidar, mas passei parte da infância freqüentando roça e, depois de formada em Letras, trabalhei 18 anos lecionando em uma escola de zona rural. Sou professora de português, redação e literatura. Sempre apreciei ler e escrever. A primeira atividade é tão vital quanto respirar, para mim".
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