DESEMBOQUE E SEUS MUITOS FILHOS


“O chapadão termina. Começam os vales, colinas, morros e riachos que circundam o Desemboque, nosso berço civilizatório. Esta era nossa primeira vez. Talvez por isso, a sensação de uma aventura no tempo fosse maior. Ao chegarmos fomos recebidos pelo silêncio. Desemboque parecia dormir embora meio-dia fosse. (...) Gente havia. As igrejas Nossa Senhora do Rosário e Nossa Senhora do Desterro insistiam incólumes, ostentando o peso de dois séculos...”

Quando meu irmão, o jornalista Heitor Átila Fernandes, escreveu essa minicrônica, eu ainda não atinava muito para o conhecimento histórico e a conservação. De lá pra cá, passaram-se oito anos e, considerando que já se prevê por aí que a capacidade de informação vai se multiplicar a cada setenta e duas horas, a partir de 2011, creio estar um pouco atrasada e que, inversamente proporcional à velocidade da informação, é a velocidade da preservação. Desemboque, como afirmam alguns historiadores, espera pelo fim, nada mais.

Quem acompanhou Desejo Proibido ou ouviu comentários sobre essa recente novela das seis, ambientada em Passa Perto, alcunha carinhosa para Sacramento, cidade localizada a 60 km de Desemboque, percebeu, em vários diálogos de personagens, combinações sobre ir ou vir do vilarejo, para negócios, visitas, assistência de saúde e os mais variados temas. O texto novelesco não tem necessariamente compromisso com fatos históricos e divulgou-se até que o folhetim foi feito sob medida para homenagear Lima Duarte, nascido na região. Seja qual for o caso, cumpriu a proposta da diversão, mesmo com seus personagens caricaturados e uma prosa mineira – no sotaque e na escolha da linguagem – um tanto exagerada, mas capaz de fazer rir e despertar o interesse por um lugar que já foi importante centro político e comercial.

Para Félix Renato Palmério, o topônimo Desemboque tem origem no antigo Arraial das Abelhas, região onde desembocavam os caminhos que vinham das capitanias de São Paulo, que transpunha o Rio Grande, e de Minas, que transpunha a divisão com Goiás. Distante 144 km de Uberaba e 90 da região nordeste de São Paulo, a vila é geograficamente privilegiada por ser território limitado por dois importantes rios: o Paranaíba e o Grande. Isso muito lhe valeu, entre as décadas de 1760 e 1770, tempos gloriosos da exploração do ouro, nos quais abrigou quase duzentas residências e mais de 1000 habitantes. Estudos afirmam que por lá chegaram a circular algo em torno de 10.000 pessoas.

Segundo o memorialista Borges Sampaio (1971), o lugar era povoado por índios e, posteriormente, negros fugidos. No século XVI, na caça aos quilombos, vieram os bandeirantes e acabaram descobrindo jazidas de ouro no local. Como a Coroa concentrava seus cuidados em Sabará, Diamantina e Vila Rica e o acesso à região era bastante difícil, o contrabando do valioso metal pelos caminhos ainda pouco vigiados de São Paulo e Goiás foi favorecido. Para o jornalista Jorge Alberto Nabut (Desemboque: documentário histórico e cultural. 1986), os bandeirantes chegaram próximo ao povoado, porém quem o fundou foi o Guarda-Mor Feliciano Cardoso Camargo, que saiu do Arraial do Tamanduá (Itapecerica), rumo à Serra da Canastra, em 1736, na expedição Chapadões.

A partir de 1781, com o esgotamento do ouro, iniciaram-se as atividades rurais, que eram mais estáveis e exigiam menos mão-de-obra. Os que preferiram se evadir do local foram expandir o Sertão da Farinha Podre.





“O meu tataravô, Cônego Hermógenes Cassimiro de Araújo Bruonswik, pediu pra ser enterrado bem na entrada da igreja. Ele queira que todos passassem por cima de seu corpo ao entrarem ou saírem da igreja, como penitência por ele ter sido um pecador.” Quem conta o feito, é Vicente Araújo Lima. Cônego Hermógenes foi vigário por lá de 1814 até 1862 e graças a ele o arraial foi elevado à condição de vila. Apesar do voto de castidade, conta-se que Hermógenes muito contribuiu para ampliar a estatística humana do lugarejo, pois se envolveu com várias mulheres, chegando a ter vida conjugal com uma delas. Seu Vicente ainda afirma que “Quem não é descendente diretamente, está junto de alguém que é.”

Após a morte do Cônego, em 1862, a região tornou-se distrito da cidade de Sacramento. Na década de 1970, Desemboque foi redescoberta por Mário Palmério e pelo jornalista Mauro Santayana que pretendiam recuperar a vila e foi só nessa mesma década que os moradores puderam contar com a luz elétrica. Em tempos atuais, além das igrejas (ambas com arquitetura do século XVIII), há no local pouco mais que 20 casas e 80 habitantes.

Na placa de entrada do vilarejo, lê-se: Homens de extrema bravura, desterrados do seu próprio mundo fundaram no Sertão da Farinha Podre, em 1743, a capela de Nossa Senhora do Desterro, dando início ao povoado de Desemboque, marco inicial da colonização do Brasil central. Em seus mais de duzentos anos de existência, a vila pouco evoluiu e se de lá saíram, 600 arrobas de ouro, como afirma o morador mais antigo, ou 200, nas palavras do historiador Carlos A. Cerchi, ou 100, de acordo com Jorge Nabut, ou nenhuma, posto que o lugar era apenas ponto de contrabando do minério para Portugal, de acordo com outras pesquisas, provavelmente nunca saberemos ao certo. Vale é rever o passado, atribuindo os devidos méritos a quem os merece por ter se embrenhado no mato e enfrentado perigos e mistérios, ou por ter resistido e tentado se defender, após ser tachado, pelo dominador, de infrator ou selvagem. O mosaico dessas perdas e conquistas revela o nascimento de núcleos sociais importantes. Revisitar a história desses nossos lugares é ser envolvido pelas curiosas descobertas sobre o rico passado que alicerça nosso futuro, é rever nossa alma histórica.

Para se chegar a Desemboque, pela BR 262, passa-se por Peirópolis, bairro rural de Uberaba, onde foram encontrados fósseis de dinossauros de 70 milhões de anos, mas isso já é outra história.
Texto: Iara Fernandes
Fonte: Revelação – Jornal Laboratório do Curso de Comunicação Social – 14 a 20 de fevereiro de 2000 - Universidade de Uberaba.
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