A RAPOSA E A ONÇA (Um causo)




“...do mato e do cheiro da serra e de tudo que nos trazem sons e imagens sobre o já vivido...
Do deslocamento para outro local e outro tempo. E que está no sangue...”
:

...é o que sente e diz as gentes dos campos, dos cerrados, das Serras do Marão e da Mantiqueira, dos sulburbios, das terras de Miranda e de Benvirá, dos vales do Iuiú, do Jequi e do Anhagabaú, nos bares do mundo. Tudo se mistura e se perpassa nos mundos, fundindo-se num Tempo, que afinal, somos nós, todos.


Da soleira da porta, o Velho nos olha a todos, meninos e meninas, todos ávidos da história do dia. Fim de dia, para ser mais exato. As longas sombras do poente rapidamente engolem o que resta da luz diurna, o vermelhidão-amarelo-róseo se estende no firmamento mesmo depois de noite cerrada. Lá dentro da casa ouvimos o crepitar das chamas no fogão, o chiado de banha de porco fervente, onde já já os bolinhos de trigo serão fritados; já já também o cheiro de café inundará o ambiente, misturando-se aos cantos dos grilos, o coaxar sinfônico dos sapos, vindo do riachin que escorre nos fundos da casa. Os olhinhos ansiosos fixam-se, vivazes, no rosto sulcado do Velho, que termina de colocar um punhado de fumo no cachimbo, tempera a goela..., e, começa a história...
Faz tempo já, tudo isso. Anos? Dezenas deles e as palavras, as variadas entonações, fraseados e cores, as exatas palavras, isso não sei o correto, o estrito. Maleável, frágil, dispersa, assim é a palavra; volátil, de uso vário é a lingua, como vi outro dia noutro lugar... (Se)movente, como diria nosso maior pros(e)ador, o Rosa. E assim, conto é do meu jeito, jeito de dias de hoje a história que ouvi da boca do Velho naquele distante crepúsculo, por entre baforadas de cachimbo e odor de bolinhos fritos na banha e café-de-coador, conforme...

“Andava a Raposa inconformada, cansada de representar sempre o papel de malfeitora vilã em todas as histórias. Com todo o respeito que o Bode merece –ela era sempre o bode expiatório, sempre pagava o pato – novamente com todo respeito ao Pato, pagava sem levar, ainda por cima!
Por toda a parte, lugares imagináveis e inimagináveis, onde quer que se criasse e contasse Histórias, lá estava a Raposa. Sempre que se precisava de alguém para ser sinônimo de ardileza, esperteza, astúcia, malícia ou de malandragem fuleira, sobrava para ela, Raposa, sempre.


E como desgraça pouca é bobagem, soube que sua velha e natural inimiga, a Onça Pintada, andava em seu encalço.
Sabia a Raposa que a perseguição seria eterna, pois então carecia invocar modo de sanar o imbroglio. Surgiu quase do nada, a idéia, simples, seria assim:...
Pôs-se a recolher enorme quantidade de cipós. De todos vários tamanhos e espessuras, que cortava e juntava com zelo e método... Viu a Onça se esgueirando, mas nem ligou, prosseguindo a recolha das herbáceas ditas cipós, juntando montes e montes... Intrigou-se a Onça com o comportamento da outra, que continuava cortando e amontoando. Olhava a céu, farejava, fazia caras e bocas... A Onça quase esqueceu que deveria come-la, desconcertada com a estranha atitude. A Raposa, mesmo percebendo a Onça à poucos metros, a ignorava. Ousou o despudor de chegar a distância de alguns centímentos da mesma, , levantar a pata e urinar-lhe na cara, que sentiu o sangue ferver, mas continuou imóvel.

Incapaz de conter a curiosidade, a Onça limpou rapidamente o xixi que ainda escorria, e emergiu de trás da Braúna onde estava escondida. A Raposa volveu a cabeça muito devagar, encarando-a com olhos melancólicos. Antes que a Onça abrisse a boca, disse com voz tranqüila:
- Estou me concentrando para o esforço final. Como a senhora minha comadre pode perceber, vou precisar de muito cipó...E ainda tenho que recolher mais, pois essa quantidade pode não bastar...
- E pode se saber pra que raios a senhora minha comadre vai precisar de tanto cipó?!?!?....
- Quer dizer que minha comadre ainda não sabe?????
- Sabe... o quê????
- Comadre, vai ser a maior tempestade de todos os tempos! Quem não estiver fortemente amarrado será levado pelo vento... – e a Raposa já começou a passar cipó entorno do tronco da braúna.
- ESPERE AÍÍÍ!! Quer dizer que você vai ficar segura e deixar que eu seja levada pelo vento forte?
- Sinto muito, senhora minha comadre! Mas é cada um por si!
- NADA DISSO! Você vai me amarrar bem, porque sou maior e o vento pode me levar primeiro e além disso, sou mais velha! Você tem que me ajudar!
- Mas...
- Não tem “mas” Me ajuda senão.... – E arreganhou os dentes.

Então, a Raposa pediu que a Onça se abraçasse na braúna e amarrou primeiro as mãos depois os pés. Enlaçou e apertou, subjugou, puxou bem os nós, de modo que a Onça mal conseguia respirar. Certificando-se da boa feitura da idéia, a Raposa olhou-lhe bem na cara e falou: - Agora fique aí, que cá me vou! – E foi-se, em trote solerte, a Raposa.”


"...e o tempo foi passando devagar
tão devagar nas rodas do destino
(Vasco Graça Moura)

NOTA

Esta é uma das muitas histórias d’A Raposa e a Onça de origem tupi
As palavras finais da Raposa e o desfecho da história foram livremente
baseados na versão do General Couto de Magalhães em sua
obra O Selvagem, Editora Itatiaia, 1975.
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