CONVERSA DE FLORES

 “...no meu jardim
no meu jardim
as flores falam
e sabem ler
sabem entender
a dor que calam...”
(por Dércio Marques)

No dia do nascimento de Joanita, a família se reuniu para conspirar – em orações – envolvendo na trama Nossa Senhora do Bom Parto e toda a santidade ligada ao dar à luz. Era o caso de conspirar mesmo, visto que o médico já advertira a mãe: “O bebê vinga, se o repouso for absoluto. Devo avisar que talvez seja necessário se preparar para umas coisinhas que podem vir fora dos conformes.” Rosário não entendia bem a mensagem e pedia explicações de acordo, botava o marido para escutar, mas tudo ficava na mesma medida. Doutor Roberval era da confiança da família e, se pouco falava, ninguém questionava se era por falta de esclarecimento ou por receio de ter que noticiar fatos desagradáveis. 

A menina chegou pelo parto dito normal, mas difícil como ele só. Rosário no hospital desde a madrugada e o bebê fazendo trejeitos de nem querer se mostrar ao mundo. Às 8h, exatamente, de um domingo florido e iluminado, Joanita deu o ar da graça. Ao olhar para ela, Rosário pensou em açucenas e margaridas, mas nenhuma dessas denominações caberia bem a um neném miúdo e quietinho como o que tinha nos braços. A decisão ficou para depois, no aconchego do lar, com participação de esposo e palpite de tias mais velhas. Correu-se uma lista de nomes santos, bíblicos, bárbaros e artísticos, mas a alcunha da avó paterna, o primeiro a se impor, venceu argumentos fortes e fracos: Joanita e pronto.

O bebê cresceu rodeado do calor familiar, pegajoso e inconveniente, por vezes, essencial e salvador, quase sempre. Ali pelos três anos, a mãe não queria admitir, mas uma duvidazinha havia. Joanita não se pronunciava por vontade própria e, quando instigada, o que se ouvia, eram arremedos de fala, sons intraduzíveis até ao ouvido materno especializado no gugudadá e similares. Pulguinhas impiedosas instalaram-se atrás das indiscretas orelhas parentais e o buchicho ganhou volume. O corpo da garota avolumou-se fora do compasso e bem cedo já não correspondia à idade que carregava. O rosto ganhara contornos grosseiros, deixando bem longe a reduzida promessa de beleza anunciada na criança que aportara no hospital. O jeito imbricado de compreender o mundo onde fora inserida exigia-lhe manifestações atropeladas, olhares furtivos e dispersos e frases desconexas na tentativa de nomear, traduzir e apropriar-se. Na mente, tudo transcorria dentro da ordem, os pensamentos se enfileiravam na forma e no ritmo, mas entre eles e a expressão, um lapso. Às primeiras tentativas de oralizar, o ar não percorria o trajeto, palatos se confundiam, vogais e consoantes disputavam os favores da língua, lábios e dentes desarmonizavam-se, liberando sons incompreensíveis. Estacionada nesses desajustes, sua fala era robusta aliada dos equivocados raciocínios familiares que determinaram a Joanita o destino de ser mudinha, trololó e, coitadinha, incapaz! Com o passar dos anos, ralearam-se as tentativas de lhe puxarem o fio da conversa e, cada vez mais calada, recolhia os pensamentos e entregava-se a contemplações enigmáticas. Ao mesmo tempo em que era o dodói da parentalha, ingenuamente, assumia o papel de alegria da tropa. As outras crianças da família, em suas naturais perversidades infantis, nunca perdiam a chance de metê-la em enrascadas de fino ou grosso calibre. Sabiam que a reprimenda viria pesada, porém com uma brevidade que aliviava o fardo e garantia os repetecos. 

Aos 15 anos, ganhou festa glamorosa. Em sua espontânea gentileza, distribuiu sorrisos a ninguém em específico, embora cada um os recebesse em particular, dançou sozinha com a mesma felicidade estampada nos casais e, com mãos e pés, em movimentos desacertados, percorreu, várias vezes, a distância do palco até o fim do salão, olhando para trás e gargalhando em exagero, certa de que os artistas da banda fariam o mesmo, enchendo o caminho com música.

Aos 30, gozava de perfeita saúde, atravessara todos os reveses femininos sem profundos embates e ainda reconhecia na mãe o único solo sagrado de toda sua reverência. Era aquele o colo que abrigava a garotinha ensimesmada, deslocada do mundo e insegura fora da casa com seus perfumes primaveris.

Nessa época, Rosário já viúva, numa tentativa alucinada de se reinventar ou de construir uma vida diferente da que havia assumido, investiu na terra e no vingar das sementes as forças de seu domínio. Tratou de arquitetar canteiros muito bem desenhados em seu jardim e não economizou em vasos e complementos para que as floradas fossem exuberantes e invejáveis. Enredou-se nesse artifício sem se dar conta do quanto Joanita também se enredara. Nos momentos de cochilo, enquanto assistia à novela da tarde, a filha se entregava a uma conversa de flores e ativava a mente com perguntas de denso quilate – ocorrência inadmissível para a maioria das pessoas, confortavelmente instaladas no alto de suas convicções – e com registros não só dos nomes de todas as flores, mas também dos saberes por elas revelados.

Quando a mãe morreu, enquanto o corpo era velado, abrigou-se no jardim e, como se dimensionasse o desajuste que tinha sido sua vida, estabeleceu  um diálogo sério, desses que exigem explicação, justificativas e boas doses de concentração. O vento desalinhava as pétalas das graciosas petúnias, os galhos do pinheiro rebatiam nos hibiscus amarelos, enquanto os vermelhos bailavam no ritmo da forte brisa. Begôneas e amores-perfeitos serviam de acabamento ao espaço do canteiro retangular e o triangular, mais delicado e menor, acolhia centáureas e belíssimas flores-de-íris. O amarelo do dente-de-leão ornava magistralmente a passarela entre o jardim e a porta da casa e os brincos-de-princesa, dependurados em hastes que imitavam um caramanchão, exibiam seus suaves tons de rosa, contrastando ao enérgico lilás dos myosotis. Depois de inúmeras voltas e conversas em alto e bom tom, Joanita, sentou-se à sombra do manacá e, com uma cadência diferente e um olhar irreconhecível, demorou-se em cada espaço plantado. Aos hibiscus perguntou: “O que faço aqui?”; as rosas deveriam lhe explicar: “Do que tenho medo?”; as sapecas begôneas saberiam dizer: “Como levo minha a vida?” e os nasturtiuns, com seu jeito grave, lhe responderiam: “Qual o momento mais bonito de minha existência?”. A exaustiva conversa nunca chegava a seu fim. Joanita, em ritmo desvairado, enchia o ar de sons inteligíveis, gesticulava em movimentos amplos, recolhendo e avançando os braços. Quanto mais se expressava, mais alto emitia sonoridades desconexas e mais se atropelava. As flores, como que respondendo às suas intrincadas perguntas, mas não suportando a carga das respostas, se chacoalhavam freneticamente, entrelaçavam-se e confundiam cores e pétalas. Quando Joanita já era quase que só um grito e as flores um tapete ondulante, alguém se lembrou de recolhê-la, tirá-la do relento antes que um resfriado fizesse morada. Nada a moveu do jardim, nem mesmo a informação de que a mãe estava partindo para a morada definitiva. Disso não fez conta, pois – em segredo – as flores lhe disseram que gente que nem Rosário rebrotava em ramagem nobre, destinada a requintar as primaveras. Em segredo, Joanita contou a todas elas que a mãe voltaria no inverno, uma papoula amarela, aprendiz da vida árdua, heroína e sobrevivente dos infortúnios naturais, cuja força vinha da terra e, tal qual ela, compreendia que viver encarapitada na solidão do próprio eu, era possível, mas quentinho e saboroso era ter companhia para florescer.

Nos dias seguintes, Joanita era só jardim. A rua lhe sumira, a casa perdera o calor. Entre as flores e caminhando pelos canteiros, guiava-se pelas cores, falando a língua dos vegetais. Numa manhã de domingo, tão iluminada quanto à do seu nascimento, adormeceu longamente sobre a terra quentinha, guardada por delicadas margaridas brancas.

Iara Fernandes


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