UMA CRONICA SOBRE O OLHAR

O texto abaixo é um pequeno excerto de um trabalho maior, que talvez um dia venha à lume sob forma de romance ou novela. Narra os passos de um andarilho urbano, espécie de moderno flâneur, que nas suas andanças, procura ver algo nos rostos apressados que cruzam seu caminho...
Peço, então, licença, ao guru ZéMaria, observador arguto das coisas de nossa Sampa e do mundo em geral,e que possui o dom de traduzir em palavras simples e sábias: por isso é chamado com justiça entre nós de memorialista do ser-tão paulistano. Nesta seara, sou aprendiz e aqui tento decifrar o que pode conter um simples "olhar", que no seu mudo brilho, tem a capacidade de transmitir todas as palavras que não puderam ser ditas.


São os olhos o espelho d'alma? Eis uma imagem poética, que os Anjos generosamente nos sugerem como decifração do mistério divino, tentativa para designar o inescrutável Belo, diante do qual ficamos tão extasiados e tão fora dos domínios de nós mesmos que nunca somos capazes de definir pontualmente. Os olhos espelhos d'alma remontam ao clássico olhar romantico, resquicio dos tempos de culto ao espirito, quando então, se sondava as profundezas da alma: nada melhor para representar tal idéia que os sempiternos misteriosos olhos.
As palavras bonitas, se desprovidas de alma, nada mais são que invólucros vazios, pouco acima do ordinário comum, talvez nem isso. Sedutoras ou impressionáveis que sejam, são como sementes que não vingam. Seu brilho pode ser intenso e fulgurante, contudo o ouvido se inclina sobre elas por um instante apenas, logo voltando ao cinza que costumeiramente permeia nosso derredor. Esta imagem do fútil reflete o privilégio concedido às imagens velozes deste nosso tempo que a tudo esmiúçam sem em nada se deter.




Não! Não são os olhos o espelho d'alma, pois a alma fugiu, amedrontada pela estética moderna, do culto avassalador do superfluo, da mesmice do videoclip. Ocultou-se - a alma - nas mais profundas camadas do ser e lá permanece entocada por tempo indeterminado, quiçá para sempre. Sem alma e sem Deus, resta ao pobre mortal contemplar com certa benevolência as vicissitudes, relativizar ânsias e volúpias, metabolizar tristezas, angústias, prazeres e alegrias e assim imaginar-se sóbrio. Os rostos transitam, milhares deles, no esmaecimento dos olhos, a fuga das almas desesperadas.

Até o dia em que ousei deter-me bem fundo no teu olhar. Um mundo inteiro ali se ocultava, percebi descortinarem-se formas cambiantes interrelacionando-se o conjunto formado por rosto, cilios, cabelos, boca, nariz, orelhas, um brilho flutuante esmiuçando tez da pele, borbulhando discretamente pontinhos rubros nas bochechas, denunciando a inapelável timidez. Ao sorrir, a graça se manifesta a partir do brilho cintilante dos olhos, daí se espalhando harmoniosa, revelando o gracioso sorriso de alvos dentes que faz os castanhos olhos semicerrarem-se, tímidos, sob as pálpebras, vã tentativa, pois nada diminui-lhes a vivacidade.




Fascinado, te contemplava, paralisado, sem saber o que fazer com as mãos: e demoraria algum tempo para perceber que sua onipresença era algo que estivera sempre comigo, abarcando dimensões espaciais, temporais: os biliosésimos de segundos e de milimetros: uma imagem a principio fugaz desenhou-se rapidamente numa ousada formulação: ao preencher cada segundo e cada milimetro de meu angulo de observação, voce era o meu mundo! Naquela bilionésimna fração de segundo em que pressenti tudo dentro de seu olhar, naquela infinitesimal fração, desdobraram-se todos os acontecimentos que contribuíram para que naquele exato instante estivéssemos ali, frente a frente, olho no olho, para que pudesse perceber de forma tão sintética e clara todos os segundos, dias, horas, meses e anos que contribuíram para re-descobrir aquele olhar que resgatava a humanidade perdida por entre labirintos de elocubrações, a maioria pueris, de um cotidiano de onde a beleza foi escorraçada, escondendo-se nas ignotas dobras da alma; naquele olhar transbordante de ternura me reconheci!
Estava de volta ao mundo, ao vasto mundo, tão alheio e tão meu! Naquele momento senti que nossos caminhos, jamais se separariam e eu só pensava em quando seríamos capazes de partilhar tudo isso, as descobertas do vasto mundo, inteiro nosso. Atrás de voce, àquela hora da manhã, percebia através da linha irregular do horizonte o encontro entre o céu e a terra, rara cena num espaço cada vez mais tomados por arranha-céus.

Por hoje, quero partilhar, dividir; ser alma, ser coração, corpo, pulsar. Onde está a verdade?
Disse um poeta popular, o maior dos payadores:
"O que adentra la cabeza, de la cabeza se vá
O que dentra al corazón
Se queda e no se va más
Tu quieres saber por quê?
O que dentra al corazón
És la pura verdad..." (Atahualpa Yupanqui e Pablo del Cerro)
*


E a verdade está nalgum ponto da alma: centelha divina criadora, eternamente ardente!




As mais lindas palavras de amor são ditas no silêncio de um olhar”.(Leonardo da Vinci)


Dedico o post aos seres humanos como nós, que se recusam a vender suas almas! Agradecimento especial à minha especialíssima amiga Sueli Prohaska pelo incentivo que sempre nos deu, por acreditar!
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