DÉRCIO MARQUES

Anos 1980. Em minha casa, no Jabaquara, ouvia na vitrola o LP Terra Vento Caminho e uma vizinha, amiga de minha mãe, entra em casa. A senhora de meia idade, fã do Eli Correia e Barros de Alencar, apaixonada pelos romanticos José Augusto e Odair José, passa por mim no exato instante em que toca a faixa "Sexta-Feira" e a mesma me olha intrigada e exclama: "Que musga bunita! Quem é o artista?" Respondo "Dércio Marques!" E seu sorriso curioso murcha. Decepcionada diz: "Nunca ouvi falar..." e começa a andar na direção da cozinha onde estava minha mãe, mas se detém por mais alguns segundos e se volta: "Num cunheço o artista, mas canta bunito..."
Cigano da música, provavelmente o maior menestrel que esta terra já viu (sem eufemismos ou exageros), dada a enorme quantidade de ritmos e harmonias que conhecia por conta de suas incansáveis andanças. Do samba rural ao malambo pampeano, da moda de viola de Tonico e Tinoco ao cancioneiro elomariano, de cantigas infantis populares a José Afonso e Atahualpa Yupanqui ou os arranjos inovadores do quase desconhecido entre nós, Paco Bandeira. Enriquecia folias, milongas, batuques, cirandas com lirismo que somente aqueles dotados pelo Criador tem autorização para tal. Sim, seguramente o maior menestrel-cantador.
A respeito de sua sensibilidade musical, vale o registro de uma cena por mim presenciada: estávamos nos despedindo do inesquecível maestro Zé Gomes e todos nós, de uma forma ou de outra, abalados, uns mais explicitamente, outros mais contidos, contudo a tristeza deixava a todos incomodados com essa peça incompreensível que a vida nos pregava. Sabíamos que Dércio viria, havia sido avisado e chegaria. Tal expectativa gerava uma ansiedade, pois, algo ele faria, era certo. Dércio chegou e, após alguns instantes em silencio perante o amigo, apanhou o violão e começou a cantar. Todos o acompanharam, quem sabia e quem não sabia cantar, todos nos unimos naquela cantiga-prece. Aos poucos juntaram-se as vozes de Dani Lasálvia, kátya Teixeira, Deo Lopes, a rabeca do Thomas Rohrer, o violão do André Gomes, filho do Zé. Havia a tristeza, mas tanta beleza e emoção tornou-nos leves e era como se o Zé tivesse nos proporcionado uma despedida digna de sua história. Lembro-me que o artista plástico, crítico e jornalista Enio Squeef, amigo, admirador e incentivador de toda aquela geração de artistas que eram algo mais do que simples produtores de entretenimento - trazendo à tona discussões que somente décadas depois ganhariam o cotidiano das discussões nacionais e mesmo mundiais, como a questão ecológica -, disse logo depois, numa conversa informal no balcão de um bar, na madrugada paulistana, enquanto esperava sua carona. O teor da conversa, hoje impreciso, dizia mais ou menos assim:
"... quando Dércio pegou o violão e começou a cantar, compreendi tudo. Compreendi a razão de estarmos todos ali: Dércio, com sua voz e seu violão, mostrou a todos o que nos unia; foi o elo entre todos nós, deu sentido ao sentimento de perda que apenas intuíamos, sem conseguir decifrar, definir, pois não cabia em palavras racionais. Por mim, refiz toda a minha trajetória, desde as remotas lembranças da infância e adolescência com o Zé quando realizávamos serenatas: às pessoas que conhecemos e às muitas vidas que vivemos, durante as décadas seguintes; compreendi tudo o que partilhamos e que isso não tinha fim, não tem fim! Desfrutar de mais essa descoberta foi um grande alívio e a tristeza foi para segundo plano!Há, ainda, muita beleza neste mundo e ainda bem que existe gente como Dércio para despertá-las!"
Assim foi e será, por toda a vida, a trajetória do bordador de canções, do alquimista, do ser humano capaz de transformar as mais dramáticas experiências em arte, o lenitivo balsâmico que nos faz sentir partícipes da enorme capacidade de todos nós, seres humanos, de transcender, de pelo menos supor, o sopro divino que enfim, anima o mundo....
Discografia Básica -
Terra, vento, caminho (1977) Marcus Pereira LP
Ser Criança, com Doroty Marques - Independente
Canto forte / Coro da primavera (1979) Copacabana LP
Fulejo [1983] LP
Segredos vegetais [1986] LP duplo
Anjos da Terra [1990] LP
Anjos da terra [1993] CD
Espelho d'água [1993] CD
Monjolear (1996) CD
Cantigas de abraçar [1998] CD
Cantos da Mata Atlântica, com Doroty Marques [1999] CD
Folias do Brasil [2000] CD
Fulejo [2003] CD
Segredos Vegetais [2003] CD
Canto Forte [2003] CD Dezenas de participações em trabalhos de artistas, como Ney Couteiro, Sabbah Moraes, Dani Lasálvia, etc

"Que belo mundo é seu mundo, menino, ah, menino Menino dorme sorrindo, menino, ah, menino" (Atahualpa Yupanqui, versão Dércio Marques)
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