ESPECULAÇÃO SOBRE AS ORIGENS DA VIOLA-DE-COCHO, EM PLENA AV. PAULISTA

A mais paulista das avenidas não é assim denominada de modo aleatório: São Paulo tem muitas caras, tantas quantas são as origens dos povos que por aqui transitam, sejam visitas rápidas ou permanentes. Cores, sons, sotaques, timbres, idades misturam-se , fundem-se, esmaecem, ganham vida, vibram, dissolvem-se, renascem, transformam. Uma cena com a qual já me acostumei é a do índio perfomático ao som de Bob Dylan: um dia dançava sob os acordes de Like A Rollin Stone, noutro seus pés habilidosos trançavam-se nos versos psicodélicos de Mr, Tambourine Man... Não pude saber sua etnia e como ele não pára um minuto, não houve jeito de perguntar. Creio vagamente que deve ser guarani, pois é sabido que eles têm grande sensibilidade e gosto refinado musicalmente. Só para lembrar: o maior menestrel que esse país já conheceu, o extraordinário Dércio Marques, era descendente direto dos guaranis...
E a cada esquina, artesanato pop e tradicional se alternam; perdoem o lugar comum, mas ao fim e ao cabo, perdura a satisfação de se saber que todos saem satisfeitos de um passeio domingueiro pela Paulista... Enfim, nada como uma dessas longas tardes descontraídas para, de mente e coração abertos, se abrir à descobertas que ao fim hão de revelar-se desconcertantes!
As artesãs Angelina e Riva Waldvogel  

No palco do Teatro Popular do SESI, o brasileiro de origem libanêsa Sami Bordokan mostrava sua arte – que em se tratando de quem seja, talvez o termo “arte” não seja o mais adequado. Diria suas “experiências” ou “vivências”, dentre as quais, a arte é um dos ingredientes . Aquilo que grosseiramente enfaixamos sob o rótulo de “musica oriental”, a partir do médio até o extremo Oriente se inserem em contextos que nós ocidentais temos grande dificuldade em compreender, sobretudo se as apreciarmos como produto de entretenimento (ou mais diretamente, como consumo); sejam as peças litúrgico-religiosas, cantos de trabalho ou folguedos (aqui remetendo diretamente às danzas que da Ibéria sob dominação moura que se espalharam pelo mundo, notoriamente na pampa sulamericana, Andes, América Central).
Curiosamente, a música de pura origem popular – benditos, Folias, aboios, etc., igualmente tem igual significado: seus praticantes os executam com fervor e/ou êxtase religioso. Antes de tudo, são obrigações de ofício - vide a obra de Eliezer Teixeira, tio da nossa Musa Kátya Teixeira e, porque não?, a própria obra de Kátya e seus incisivos mergulhos nas origens remotas das cantigas, cuja origem se perde na noite dos tempos. No entanto, uma vez descortinando-lhe o verdadeiro sentido, se nos apresenta com sabor de novidade, pois são as cenas cotidianas – festas, rituais, celebrações – que traduzidas em música sempre tem caráter renovador, compreendendo-se a tradição como algo vivo.
O pesquisador e músico Eliezer Teixeira 

E no palco do Sesi, Sami Bordokan apresentava suas peças, sempre introduzidas pela didática explicação e breve introdução a respeito do instrumento solo executado: no caso, derbaki, kanoon e alaúde árabe.
Sami Bordokan 

 O que sabemos do alaúde em geral é que pode ter sido um dos ancestrais do atual violão. O espaço das linhas do blog e meus reduzidos conhecimentos não permitem nenhuma explicação categórica, mas ao ver e ouvir o som e a sumária explicação sobre a origem do instrumento, veio-me à mente a viola-de-cocho, o rústico instrumento há séculos fabricado e tocado no Pantanal matogrossense e trazido à lume, num contexto urbano, pelo mestre Zé Gomes que lá pela metade da década de 1980 lá esteve com a Comitiva Esperança e encantado pelo até então estranho som, evocado num contexto exclusivamente local, no acompanhamento do siriri, um ritmo regional, o pesquisou longamente e dez anos depois de sua viagem exploratória, adaptou o rude e monocórdico instrumento cujas cordas numa época não tão distante eram feitas de tripas de animais (macacos, de preferência, não me perguntem o motivo), tornando-o capaz de ricas harmonias, mesmo no reduzido espaço do braço da viola, onde mal cabe a mão e poucos traços. O alaúde árabe tem braço longo e permite um número maior de notas e um sem número de acordes. Mas a semelhança sonora com a viola de cocho impressiona. Sami explica a origem, que remonta ao final do primeiro milênio de nossa era cristã: “Inicialmente, possuía quatro cordas, até que um sacerdote e místico, que também era músico, acrescentou a quinta corda, chamada a corda da alma...” Visto à distância, deu para perceber que aquele alaúde especifico possuía cinco cordas duplas – um oitavo entre elas – bem à moda de nossas violas caipiras tradicionais, que por sua vez, talvez tenham na velha violinha de cocho, seu elo perdido... (gostaria aqui, da palavra de meu amigo Alexandre Silva, lá de Lisboa, grande amante dos cordofones em geral, que descobriu ser a afinação da viola de cocho semelhante à braguesa. E em conversa reservada, disse suspeitar que o cocho talvez se inspire na cítara medieval...) Até onde nos levará esse fio de meada?

cd do  Zé Gomes
Reproduzo abaixo versos do Zé Gomes, que ilustram seu disco de estréia, onde pela primeira vez se faz uso na musica instrumental brasileira da viola de cocho fora do seu uso corriqueiro, ou seja, do siriri, chamamé e outros ritmos locais:

"Esta violinha
Todas as manhãs
Toma o sol nascente
Para aprender a não ser preguiçosa

Oi abre alas!
As Musas ditosa
Palavras Querem Dizer

Adormecida no seio da terra
Guardiã dos saberes mais antigos
Traz em seu ventre fecundo
O fel e o mel
Dos honmens mortais
Eis que o Céu se abre
Para todos os viventes
Oniscientes os Deuses
Assim desejam
Fazer vir cantar a boa nova

A Viola de Cocho
De percussivo toque
Impelindo a dança
Com trepitoso soar
De chama ardente ilumina
De chama ardente ilumina
Recanto dos espaços infinitos
Do nosso interior
Oi abre alas!
(Zé Gomes, no encarte do CD Palavras Querem Dizer)
Zé Gomes
Viajemos, pois, ao som de violas, no texto inaugural da primavera, onde as artes brasileiras convidam a muitas andanças. Como diria ZéMaria, Guru do ser-tão paulistano, conhecedor dos secretos Caminhos do Peabirú (as rotas antigas conhecidas pelos índios que os faziam andar pelas matas sem se perder), basta um olhar sem pressa e arguto para se descortinar a beleza oculta nos orelhões transformados em objetos de arte, mal percebidos na azáfama diária. E se reparar bem, veremos que o verde desponta faceiro debruçando-se sobre as formas concretas...

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