A ESCULTORA DE MÚSICA

Diz-se que um grande escultor nada faz além de revelar a figura que lá está, no interior da rocha; esculpir é descobrir – atribuído a Michelangelo. A mesma coisa pode ser dita em relação à música de Consuelo de Paula, mineira radicada em São Paulo, que se expressa musicalmente de forma universalista ao cantar com a alma: além dos riachos de sua terra – a aldeia de Pessoa! – ela mergulha nas origens mais remotas, nos ritmos primitivos de onde retira impressionantes delicadezas que nos faz pensar na existência de universos paralelos: sim, um universo, paralelo, simultâneo, com seus sóis, suas estrelas, seus mares dentro de nós, em forma latente. Quando alguém com a sutileza e intuição de Consuelo se propõe a desvendar, a esculpir formas, descobrir, ou seja, compor, adentra a tais portais. A composição para a moça de Minas é desdobramento, revelação.
Na vida ela se fez farmacêutica, ou seja, curandeira; conhece os remédios e os curativos para o corpo, paliativos para as dores. Contudo, persistente ourives da sensibilidade humana, ela quis ir além: e, ao desvendar aos poucos os mistérios da música contida em si mesma, foi conhecendo segredos que curam a alma. Na sua caminhada rumo ao Santuário, lá onde reside o segredo alquímico que resulta em música, ela o faz como fizeram todas as gerações antes dela e como farão todos que virão depois, ou seja, é preciso ir as origens e de lá recomeçar, recriar; a cultura dos povos, sua identidade se forma através do continuum, do acúmulo e da transmissão de saberes, como também dos cruzamentos, das simbioses ocorridas ao longo do caminho. Por isso, ela flutua por congadas, sambas, folias, canções praieiras, cantigas de roda e de ninar; seu canto abarca desde a singularidade voz/piano, a brejeirice cristalina voz/violão ao puro ritmo voz/tambor/mãos. A cada canção, a cada novo disco, a cada show, enfim, à cada presença, novas descobertas, novas revelações, novas formas de ver, ouvir, sentir.
A profunda emoção que transmite ao cantar é mais que um signo; incorpora personagem em corpo e alma: torna-se porta-voz de um tempo ou lugar: é a brincadeira de roda e a alegria das passarelas carnavalescas ou ao canto religioso; o cantar intimista em tom confessional,
o dolente, trágico, dilacerante canto de amor. Se revisita o passado, o traz à tona revigorado, de roupagem nova; ouvimos velhas canções com sabor de novidade.
Ouvir Consuelo é ouvir notícias frescas, mesmo que a história contada/cantada evoque nostalgia: a limpidez cristalina da voz doce nos convida a prestar atenção; somos retidos pelo encantamento e pela promessa de novidades surpreendentes à cada audição: ela se nos apresenta à maneira dos míticos narradores (sendo ela uma narradora é puramente sinal dos novos tempos, face às conquistas das mulheres no último século) presentes em todas épocas. Sua voz é melodiosa, contudo grava-se em nosso espírito de maneira determinada, como uma afirmação contundente do que deseja transmitir: parece dizer ‘venho de longe, de muito longe, oiçam-me!’E ao expressar-se, ilumina-se, a aura incandeia, entrega corpo e voz, o que nos permite ir ao âmago do sentimento evocado: seja a pura alegria infantil em versos como
“coração de elefante dentro de mim” (Notícias, do “Casa”) aos pungentes
“fiquei quieta
Fiz repouso
Até que a cicatriz
marcou a pele em forma de flor”
(Curativo, de Dança das Rosas).
A dor? Para a dor o Curativo! Em sua narração, a dor não é dramática como em Elisete Cardoso ou Maysa, ou indo mais além, da tragédia de Lupicínio: para ela, a dor de amor não é de perda, não é de lamentação. Não se apresenta como negação, mas em esperança ao se transfigurar em beleza poética, revestindo assim, a dor amorosa de um componente sublime: a cura, a cicatriz em forma de flor. A contundência, a fé, o desafio é lançado para outras situações, onde o ouvinte/espectador talvez corra o risco de distrair-se e perder-se em meio a tanta beleza: então, ela nos lembra que o canto é força de alma; se estivermos na iminência de nos perder em divagações, uma simples batida de mãos, seguida da delicadeza de voz que lembra gotas transparentes de orvalho sobre flores e o sorriso de menina, nos leva novamente a águas correntes, correnteza leve, tangida por tranquilos ventos do norte.
Pausa e reflexão: o artista e sua consciência.
O que é um (o) artista? Alguém que faz e gera arte, supomos; um entretenedor ou alguém com determinadas (ou indeterminadas?) faculdades, qualidades muito específicas. Mas o artista também pode ser o marginal, o louco, o deslocado, o revolucionário. Nos tempos que correm, assim como em outros tempos, o artista se converteu em um funcionário da indústria do espetáculo, do entretenimento (Sabemos o quanto os artistas foram/são usados por governos autoritários para compor o binário pão e circo para manter as massas atrofiadas sob controle). Mas o artista também é porta-voz, capaz de ver além, de vislumbrar o que se oculta ao olhar comum. Ah, e que pobre é o artista
“se não manter seguro seu proceder com todos!” (Pobre do Cantor, versão de Dércio Marques para a canção de Pablo Milanês).
Artista, sob as bênçãos do Criador, é a encarnação da história vivida por seus pares, sua gente. Consuelo, artista que é e que sobrevive como tal, se apresenta como independente, ou seja, fora dos esquemas padronizados que aliciam ou tornam dormentes e domesticados os ouvidos e as consciências. O artista independente, entretanto, nos obriga a refletir sobre seu papel e importância. Aspectos técnicos, performáticos: estética? Talento? Importante e necessário, mas não basta: o “artista” tem uma missão, um papel: sua atuação torna o mundo melhor ao fazê-lo mais belo, verdadeiro. O “artista” é um artífice da construção do futuro - seu papel na educação, na formação de consciências críticas, especialmente humanística e estética.
Ao longo há história, em todas as épocas, tais pessoas com essas determinadas (indeterminadas?) qualidades laceram a superfície plana da existência insossa para ousar alterar, redirecionar, (re)descobrir: curandeiros, xamãs, pajés, orixás, filósofos, guias espirituais, artistas, poetas;seres especiais dotados da capacidade de se manifestarem com o que Octávio Paz chamou de A Outra Voz, “a voz que é de ninguém e é de todos”, ou seja, a voz que percebe além dos limites racionais. Nos céticos tempos atuais, quando dar novos significados à existência é uma necessidade premente, “ser artista” é dar significado à aspectos da vida relegados à insignificância num mundo exaurido de correrias e praticidades.
“Pobre do cantor que feito mito lhe roubem até o nome com máscaras perdidas” (idem)

Maria Consuelo de Paula é filha dos tempos atuais, de fins do século XX, tempos de revoluções tecnológicas e globalizações, porém, suas raízes estão firmemente fincadas na História e na Terra, herdeira de tradições cujas origens encontramos ecos na Ibéria e sua vasta história, tradições que só foram mantidas em cidades como a sua Pratápolis onde as festas populares permaneceram como opção de lazer ao alcance de todos, um ambiente bastante propício para uma alma com sensibilidade à flor da pele, que se derrama ao contato com o ponto de origem: a arte viva do batuque, das toadas, das rezas, dos folguedos delineados pelo ritmo, de algum modo imunes às influências avassaladoras que avançam sertões adentro, via televisão.
O Ritmo sempre foi o elo principal de Consuelo com a arte, o seu ponto de partida e de chegada: ciclo, circulo perfeito, concêntrico, um sol emitente de raios criadores em permanente mutação simbiótica. Recorro mais uma vez à Octávio Paz:
o ritmo não é só o elemento mais antigo e permanente da linguagem, como deve ser anterior à própria fala. Pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo e que todo ritmo implica ou prefigura uma linguagem.
A artista Consuelo nasceu ao ouvir o batuque, o ritmo primordial, ao se identificar com ele. A partir de então, o vertiginoso mergulho nos mistérios do ritmo, é uma busca da verdade: não a verdade histórica, factual, mas a verdade de algo que sempre a fascinou: a beleza em seu sentido puro. A beleza para ela não se apresenta lustrosa, brilhante, pronta já lapidada; a beleza buscada lá onde nascem todas as belezas humanas, lá onde tudo começa: nas festas populares. Na batida do tambor, nas batidas fortes de pés contra o chão, nas palmas, nos instrumentos roufenhos, em meio à azáfama aparentemente confusa de sons; em meio aquelas dobras, oculta, lá habita a beleza que a artista vislumbra, reconhece, compreende e recria com novas cores e tonalidades – escrevo recriar porque a arte popular, os contos, as epopeias, as sagas, os causos, nunca são repetidos, mas sim dinamizados de acordo com as circunstancias, o momento, a geografia, o público. Tomemos um exemplo prático: do disco Tambor & Flor, a faixa Deusa da Lua, tema popular apresentado por Mestra Virgínia, que na segunda estrofe diz assim:
(...) Fui passando ela me chamou
Sou a mestra Virginia falada
Eu trouxe a função de reisado
Pra em rio novo eu falar de amor.

Do reisado, ela manteve a percussão básica do tambor do divino e triângulos; mas os violões à espanhola nos conduzem para terreiros de danças aldeanescas, salões principescos, solitárias estradas nas montanhas, num florido barroco de emocionante beleza: o tempo cronológico é anulado, o que nos é mostrado é novidade, perene, sem idade. Mas a importância fundamental desse achado é mesmo a função de reisado, como poderia ser em outros lugares a função da congada, do Moçambique, do samba – samba, bem entendido, de outra natureza e não do fenômeno por todos conhecido (em seus primórdios, samba também designava lugar: “vou ao samba”, significando ir a uma festa, como se poderia também dizer “vou ao pagode”, como foi imortalizado no clássico de Paulinho da Viola
“Domingo, lá na casa do Vavá/ Teve um tremendo pagode/ Que voce não pode imaginar...
O disco Tambor e Flor, todo ele tem toque percussivo, sugestão de dança, que se desdobraria no seguinte, Dança das Rosas.
Retomando a indagação, à guisa de conclusão: quando surgiu a artista Consuelo? Só ela sabe! (Sabe?) Aleatoriamente, delimitamos um espaço/tempo: desde o momento em que as congadas, as folias, os batuques, as toadas tocaram sua alma e lhe despertaram vivo interesse: desde então, é artista, iniciando um percurso em busca de si mesma, dentro da música, do mundo da musica – esse universo paralelo, simultâneo, oculto aos incautos.
MISSÃO: ESCULPIR
Seu trabalho, a partir do Samba Seresta e Baião, seguido por Tambor e Flor, Dança das Rosas, o DVD Negra e Casa, parece ter sido erigido a partir de um único bloco, ao longo do tempo, desde o inicio por volta dos anos 1990; do sólido e aparentemente impalpável bloco, ela esculpe, revela, se revela.
E seu trabalho revelado se mostrou impecável, desde o início. Ouvindo os discos, em sequência ou de modo aleatório, não percebemos o que chamaria evolução do trabalho. Desde o disco de estreia até o último gravado, não há diferenças perceptíveis se considerarmos o quesito qualidade, amadurecimento, etc., o primeiro poderia ser o último e vice-versa. Diferenças somente na parte gráfica da apresentação dos CDs. A mudança de parceiros, por exemplo, se dá por conta da natureza do que ela se propõe naquele momento; cada disco é distinto e único no sentido de provocar (no bom sentido) o ouvinte, daí a necessidade (acho eu!) de mudança de timbres, da nuança de cores nos arranjos. Assim, em cada trabalho acompanha uma trupe impecável que inclui dentre os nossos melhores: Mario Gil, Dante Ozzeti, João Egashira, Rubens Nogueira (o parceiro mais presente), Zézinho Pitoco, Fabio Tagliaferri, Cássia Maria, dentre tantos.
Há, por certo, um encandeamento temático e assim, podemos acompanhar em sequência, para compreendermos a estrutura da obra como um todo. Samba Seresta e Baião, Tambor e Flor, Dança das Rosas. Apresenta-se a cantora, o ritmo, a dança, sem distinção clara, misturando, amalgamando-se elementos (como, por exemplo, classificar Maria Del Carmen, quase uma versão para o clássico porteño Alfonsina Y El Mar e que lembra/evoca Cora Coralina? Está no Tambor & Flor, mas poderia estar em qualquer dos outros trabalhos, tal sua universalidade).
Os três primeiros trabalhos são denominados Trilogia Amarela – parêntesis para refletirmos o papel das cores: o amarelo das fitas nas Folias, o amarelo na vida nacional, o amarelo cor simbólica da sabedoria espiritual, o amarelo das rosas, a cor do amor e seu culto - contido e discreto culto, ao amor. No DVD “Negra”, predomina o intenso vermelho, cor da sedução e da vida; no “Casa”, o azul. E no futuro, O Tempo e o Branco – branco puro - para a obra baseada em Cecilia Meireles.
O COMEÇO:
Seu primeiro trabalho gravado é de 1998. O título “Samba Seresta e Baião”, por si, é indicação segura de quem sabe o caminho onde chegar. Não são aleatórias ou casuais as palavras do título: 3 ritmos representativos – dentre dezenas, centenas existentes no Brasil. Os citados representam, grosso modo, três setores facilmente localizáveis do território nacional. A urbana seresta, embalando corações românticos adocicados por folhetins; da periferia urbana, o morro e o samba; o sertão nordestino e um de seus ritmos-símbolo, o baião. Assim, Samba Seresta e Baião, mais que uma apresentação da artista, é um portal de entrada ao universo musical brasileiro (por isso foi qualificado entre especialistas dentre os melhores discos brasileiros de todas as épocas). Trabalho ímpar, rigoroso e corajoso repertório. Adentra salões chiques do início do século XX com clássicos como Lua Branca, de Chiquinha Gonzaga; leva ao mesmo palco chique o Lenço Branco, de Ataulfo Alves; desfila por ruas e ladeiras de Olinda mirando-se no Espelho Cristalino de Alceu Valença; visita terreiros recifenses Na pancada do Ganzá; passeia por estradas empoeiradas do sertão mineiro revisitando o Jequitinhonha. O samba Portela na Avenida poderia ser cantado no átrio de uma igreja. Brinca e borda com temas populares ao acrescentar à tradicional Riacho de Areia, cantos dos Congadeiros de Pratápolis, sua cidade natal. De sua lavra pessoal, apenas Fitas (parceria com seu pai), “bordada” com Folias.
A tímida pratapolense que nos primeiros tempos se apresentava como Maria Consuelo, ao surgir no cenário da musica brasileira do final do século, era como se já tivesse em sua mente um plano pré-concebido, que ao longo dos anos seguintes se dedicaria a trazer à lume: sua obra está “lá”, à espera para ser esculpida e decifrada. Consuelo apenas se preparou para tal. Demarcou território, na mais pura macieza,na maior delicadeza, tal como diz um canto de sua terra. Desvelou-se, desde o fundo do palco de nossa rica constelação de grandes cantoras, em majestade: canto, ritmo, dança! A Trilogia Amarela composta, esculpida, revelada.
Samba Seresta e Baião, Tambor e Flor e Dança das Rosas. Ela chama “capítulos” de sua obra; eu diria facetas, “imagens” que podemos apreciar por ângulos diferentes, surpreendentes e enigmáticos. Trechos de território, do vasto território da música brasileira ainda inexplorado ou pouco conhecido, ignorado.
“NEGRA”, O DVD
O DVD Negra, direção musical de Dante Ozzeti, também parceiro numa das faixas, não é uma recapitulação com novos arranjos para as canções mais representativas de seu trabalho para mostrá-lo através de uma nova mídia, como se poderia pensar a principio. “Negra” é um marco divisório. Não me consta artista que tenha gravado um trabalho inteiramente novo num show inédito especialmente para DVD (consta promessa para a versão em áudio, especial para CD. Já tive a curiosidade de ouvir o DVD sem as imagens e a experiência foi deveras interessante: a voz soa poderosa, impondo-se: trabalho de conjunto forte, que parece ganhar contornos onde seu recado ao mundo é explícito, definido: surpreender, à cada curva do caminho. A inovação não para por aí: pela primeira vez na carreira, é rompido o ciclo samba, seresta e baião e ganham destaque a toada e o Moçambique, com sua assinatura: como menciona o critico Luis Antonio Giron, Consuelo sai pelos prados e campos e de lá colhe canções, assim, tão ao natural!
De discos anteriores, apenas Folias/Fitas, em versão instrumental, acentuando a possibilidade popular-erudito, típica das grandes obras. Que não nos enganemos: seu meigo sorriso, a simpatia e seus modos elegantes e cordiais, trazem junto a determinação de quem sabe o que quer: traçar novos caminhos. Ou talvez, descobrir uma nova ala em sua “Casa”, que se abriu para novos parceiros de palco e de canções: Socorro Lira, Vicente Barreto, Luiz Salgado e o parceiro de sempre, Rubens Nogueira. Do nordeste, dos geraes, da Paulicéia. Diálogos com diversos lugares da Terra Brasilis, passado e presente: cantigas de roda que introduzem alguns temas desafiando a memória e o próprio tempo. E no centro do palco, a cantora é leveza, é sinuosidade de rio; é dansa, assim, escrita em S, flutuante, doce, uma lindeza. A direção de Elias Andreatto faz da cantora o centro, porém, traz consigo todos os demais, coesos, interdependentes (momento simbólico dessa interdependência: cada um deles “improvisa” um versinho em O Sereno e o Sabiá, lembranças das festanças musicais que florearam sua infância pratapolense).
NA “CASA”
Um enigma encantador, eis a Casa, erigida num aprazível recanto do caminho, sob céu azul, visão de ancoradouro de barcos, jardins de orquídeas e acácias. Ao longe, montanhas igualmente azuis. Ela deu, muito apropriadamente o título de “Casa” a seu quarto CD, com a Orquestra à Base Cordas, de Curitiba, direção de João Egashira. A parceria com Rubens Nogueira, iniciada em Dança das Rosas, no “Casa” alcança seu paroxismo: refinamento, intensidade, Consuelo mergulha profundamente na decifração do universo e nos leva junto. O que é a “Casa”? Pode ser uma referência ao acolhimento de sua generosa alma mineira/paulista/brasileira/terreal. O azul é do céu,
é a cor que mente é a dor que sente colorido ausente presente no céu. (Azul, parceria com Rubão, como todas as faixas do “Casa”).
Azul é mistério aos nossos olhos, mistério de Deus: é a cor espiritual, é a cor do Planeta Terra. É um trabalho para ser ouvido em sequencia, mas mesmo ao repeti-lo, a sequencia parece mudar por si e nos traz novos desdobramentos, os temas se interligam, religam: poesia/música, música/poesia, onde termina uma coisa e começa outra? Conseguiria alguém decifrar o seu gigantesco universo musical, que parece conter em si outros “universos”, com seus códigos particulares, sua linguagem? Seu cativante sorriso – marca registrada – nos avisa: vem mais por aí, vem o Tempo e o Branco, mais um “capítulo” ou mais uma ala da Casa de Consuelo, sua imensa casa, sua Sede, seu Castelo. Seu convite nos instiga a buscar, conhecer, decifrar o que está além dos sentidos: o mundo/musica.
CANTADORES E CANTADEIRAS: UMA “MISSÃO”
Ao longo do tempo histórico, os cantadores populares sempre foram aqueles a levar notícias às longínquas vilas e burgos isolados. O cantador e seu instrumento eram então louvados, tratados com consideração e respeito, em muitos casos, venerados. Era ele, cantador/narrador, quem contava o andamento das guerras, mortes, casamentos, nascimentos; o cantador era um “dizedor de verdades” e de sua honestidade, dependia sua reputação: um ser aureolado pela noção de cumprimento de uma missão. O narrador/cantador Elomar no Prólogo do Auto Da Catingueira exemplifica esse papel: pede aos céus, em contrita prece, para que no
“...no tempo corrido cumprido tenha a missão”.
A cantadeira, a poeta, a narradora Consuelo sabe que à cada cantiga cumpriu sua missão, pois a ela se entrega plenamente. Consuelo, a mulher, incorpora o “espírito” dos antigos cantadores de oficio, semelhantes aos mais antigos ainda aedos e rapsodos fazendo do canto instrumento de uma missão maior: no palco, ela traz notícias e novidades para nossa sensibilidade, em forma de canções.

Dança das Rosas, mais do que diz o título, convida à dança; não a DanÇa cortada, cortante ou rasgante em sensuais volteios originados nas noites orientais ressoantes na Ibéria, mas à DanSa sinuosa dos fins de tarde ou começos de noite, DanSa solitária ou em par, danSa da alma. O CD que fecha a Trilogia Amarela, o faz em chave d'ouro, com algumas das mais bonitas canções de seu cancioneiro. Quais? Não ouso mencionar, vale ouvir! Mas foi dessa safra que Maria Bethania escolheu o Sete Trovas...
Escultora de música e de mundos: cantora, compositora, re-criadora, artífice da manifestação da centelha divina que anima o Cosmos que em sua voz ganha substancia, que nossos sentidos captam e tentam traduzir. O universo musical de Consuelo de Paula, como nos alerta o critico Julinho Bittencourt, é “uma viagem sem limites, a que a cantora nos convida e desafia, antes de nos perdermos de vez". Sua obra delimita a passagem de século segundo Giron; concordamos, pois, como foi mencionado antes, ela anula o tempo cronológico.
O que vemos/ouvimos não é um espetáculo, algo para nos entreter entre um espaço e outro do corre-corre diário: nos convida a parar, refletir, reformular conceitos; ela nos doa, de coração, o partilhamento de sua experiência. Experiência de um mundo onde a linguagem é o ritmo (o ancestral ritmo da vida) e música. Sublime musica. Ritmo e música que formam imagens, guiam palavras. Simbiose.
A menina vê o Brasil e convida
O povo a dançar
Desde as margens plácidas
Do rio a correnteza irrompe
Em desafio
É a menina que vê o brasil
em sinuosidade de rio
tangida por ventos do norte
mirando as terras do sul
em suavidade de rio
dansa, dansa em "s"
"eu canto por te querer
eu danço pra te contar
da flor que eu tento escrever
do amor que eu posso dar
ciranda, ciranda
ciranda da menina dos olhos.
"vamos na mais pura macieza
vamos na maior delicadeza!

Consuelo canta com a autoridade de quem filtra e purifica a música. O resultado é um som sem contaminação, algo como o nascedouro da tradição e da modernidade, tudo ao mesmo tempo. Quando ela canta parece colher as melodias de um prado, sem esforço, de uma maneira natural, Luís Antônio Giron, Radio Cultura de SP.


Aqui Consuelo interpretando Água doce do mar, em uma pareceria com a Socorro Lira:


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