EU VIM DE LONGE, DE MUITO LONGE

Vale do Anhangabaú, ultimamente denominado fan fest, tornado ponto de encontro do mundo por ocasião da Copa de 2014. A FIFA é mesmo uma proeza, especialmente nas mazelas: grosseira, espalhafatosa, corrupta de corpo e alma, mas tem em mãos o controle do futebol, mais que um negócio: une a objetividade (o gol, elemento concreto, resultado final) à arte (plasticidade, ginga, dança, drible). O cineasta Pasolini, citado por José Miguek Wisnick no livro "Veneno Remédio, o Futebol e o Brasil", via semelhanças entre o futebol e literatura: futebol europeu, alemão e italiano, por exemplo, razão e prosa; futebol sulamericano, brasileiro e argentino, poesia!
Mais do que o cinema, onde sua indústria em alto grau se restringiu a um país/nação/continente (os EUA), o futebol toma conta do mundo: suas exibições, mesmo com o fim dos campos de várzea, são possíveis em qualquer lugar: na rua, na quadra, calçado ou descalço, bola de meia, de plástico, sintética, mesmo as velhas bolas de capotão, ainda são visíveis nas periferias das pequenas ou grandes cidades ou nos grotões, nas aldeias africanas, do médio ou extremo Oriente. Futebol é disputa, é lazer, é festa, é congratulação. Lembra em parte o teatro mambembe, arte expontânea, a fazer a festa de crianças e adultos na Era pré radio, muito anterior ao cinema de massa, com a diferença que no futebol teatro, não há distinção entre público e platéia. A FIFA e os dirigentes esportivos em geral, quase sem exceção fazem do futebol a excelência capitalista. Uns dizem “profissionalismo”, eu digo oportunismo, uma vez que interferem nas vontades: todo monopólio é danoso, é um impor de vontades, um impedimento a liberdade de escolhas. Isso é pano pra manga!
Multidão de cores, sotaques, idades! O mundo se encontra no Anhagabaú,o vale histórico que no passado separava o centro histórico onde a cidade nasceu, das chácaras de chá que se estendiam do outro lado, começando por onde hoje se localiza a Xavier de Toledo. Viadutos foram construídos sobre o furioso rio e não contentes com a conquista de espaço, a especulação subjugou, domou o rio, prendeu-o nos subterrâneos, tornou a água inimiga, o rio perdeu o respeito. A crise no abastecimento de água do último ano, conseqüência não de falta de chuva mas do abuso para com os mananciais, as nascentes: tratam a água como se ela brotasse miraculosamente de algum lugar e não resultante de um complexo equilíbrio natural. O rio jaz, amordaçado no subsolo, mas vez ou outra se enfeza e emerge terrível, destruindo o que alcança.
Passando por lá, rodava no telão um jogo de duas seleções obscuras e estando meio esvaziado, pude circular com relativa tranqüilidade. Apesar do monopólio de vendas de água e refrigerante, vi um corajoso camelô com uma caixa de isopor cheinha de Guaraná e Itubaína! Num dado momento fui abordado por um camelô, um africano alto e espigado, jovem, talvez uns 23, 24 anos, insistindo em vender-me relógios e anéis, “coisas boas e bonitas, baratinho e você ajuda um africano.”
Eu não tinha nem interesse nem dinheiro, mas ele tinha uma boa cara, amistosa e trocamos algumas frases. Perguntei-lhe de onde vinha:
- Senegal.
- Voce fala bem o português para um senegalês.
- Falo francês, inglês, espanhol, italiano, me viro no alemão e alguns dialetos africanos. Nem sei quantas línguas eu falo.
- Então, está em casa, aqui!
Apertamos as mãos, ele disse sorrindo: “você, cara legal, mas não ajudou africano!” E se foi. Sua zanga discreta fez transparecer, então, o sotaque, até ali, quase imperceptível.
Pensei, então, em todos que viemos de longe, especialmente nós do Brasil, do Novo Mundo de um modo geral. Em todos nós que estamos pelo mundo, que saímos de nossas aldeias. Pensei em meu filho, que ao partir para os EUA em viagem de estudos disse: “Tou saindo da Vila dos Hobits, pai!” Pensei em meus pais, que fizeram uma longa viagem, há muito tempo, desde o sertão (chamado o verdadeiro) pernambucano até São Paulo, interior. Eu próprio sou paulistano por adoção, me sinto bem viajando. Veio-me a mente a canção de Paco Bandeira, eternizada por Dércio Marques:
Vim de longe sem destino,
de mata ao ombro e um cajado
nos meus alforges guardados
tantos sonhos de menino
Não tenho pátria nem rumo,
nem brasões de gente nobre
Sou filho de muitas mães
e todas elas são pobres
Venho do lado da Aurora (...)
Homenageio, pois, a todos(as) viajantes, que estão por toda parte, mas jamais deixam nossos corações: Katya Teixeira, viajante por natureza, que pensa até em mudar de nome, passando a se chamar Katya Trecheira; André Venegas, que vive barbatucando mundo afora; a senhora Ida Maria Arnold, que vive ensinando entre Coimbra, Madri, Alentejo; o rabequeiro Thomas Rohrer, cidadão do mundo, entre Alagoas e a casa de seu Nelson da Rabeca, os Pirineus e os Alpes suíços, Américas.
José Mário Branco eternizou a “chulinha”, a canção de sua volta de exílio, cujo título reproduzo no início da singela crônica: "Eu vim de longe, de muito longe, como eu andei pra aqui chegar. Trago a viola numa mão, trago a vida noutra mão...". Zé Mario, talvez involuntariamente, é um importante elo entre a musica portuguesa e brasileira a partir do momento em que passou a produzir e arranjar os discos de Zeca Afonso, tão afetuosamente ligado a nós, brasileiros, através de Dércio, ponte agora alargada pelo belíssimo trabalho de Kátya Teixeira e Luiz Salgado, o 2Mares. Zeca, e suas incursões pela musica africana, produto de sua estadia em Angola; Zeca que dedicou todo um álbum ao tema dos viajantes, imigrantes: Os Cantares do Andarilho.
Viva, pois, os andarilhos, os viajantes. Que sejam sempre bem vindos! E apesar das mazelas, bem vindos ao fan fest.
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