TEMPO DE DESABOIO

Num tempo de imagens fugazes, um disco como Desaboio, do mineiro radicado em São Paulo Saulo Alves, se apresenta como um desafio em muitos sentidos:
a grande vedete dos nossos tempos, a Modernidade, nos induz a pensar a vida e a própria história como algo que caminha sempre para frente, e que seu desenvolvimento é uma sequencia linear de eventos e datas, numa infinitude de superações. Se houvesse um sinônimo condizente com a ideia de modernidade, talvez devesse ser chamado a construção do futuro. Nada mais óbvio e igualmente tão absurdo: fosse assim e Shakespearre teria sido superado na geração seguinte dos grandes dramaturgos e as teorias de Einstein estariam mofando numa gaveta qualquer de qualquer museu de qualquer lugar, com relevância zero para o progresso da ciência; fosse assim e não existiriam os clássicos; fosse assim e as tragédias jamais se repetiriam e o mundo seria um progresso sem fim. Mas a Modernidade e a ideologia econômica que a acompanhou em sua contemporâneidade, o capitalismo, inventou o tempo em linha reta, cujo limite é o inalcançável horizonte. Mas o horizonte da história que nos aparece aos olhos como o horizonte do possível, em cujas atenções todos e concentram, atrai nossa atenção como se fosse a imediata concretude miraculosa dos desejos e é na busca dessa possibilidade tão atraente quanto equívoca ou utópica que todos mergulham; nessa ânsia voraz de avançar, nos habituamos a navegar por superfícies lisas e velozes, sem nenhuma vocação para sondar profundidades; nesse afã exacerbado, deixamos de lado os detalhes e tudo o mais que for considerado supérfluo: o amanhã está imediatamente à nossa frente, o ontem pertence a um distante passado; não é incomum a sensação de desamparo que nos tolhe quando, por exemplo, nos deparamos com um novo e essencial aplicativo de texto e descobrimos atônitos que não sabemos como usá-lo; a expressão “analfabeto digital” é nossa vergonha, quem não sabe "navegar na rede" é relegado aos escuros guetos, onde nossa existência dependerá da generosidade dos iniciados do ramo, como se a própria vida dependesse do último recurso técnico, ao fim e ao cabo, virtual. É a contrapartida nos cobrada pela informática, cujos atributos não encontram paralelo em qualquer universo movido a magia e feitiçaria. É uma maravilha, mas com uma face nefasta, pois torna o mundo velho precocemente: velho e inútil, tornando ruína tudo o que não tem aplicação direta e imediata. A longo prazo deverá criar um sério problema para os historiadores do futuro, pois a maioria dos documentos hoje escritos se perderão em mídias que no futuro serão inutilizáveis: uma mídia resiste em sua infalibilidade por alguns anos, um papiro resiste milhares de anos. Mas não se trata de escolha. Ironicamente, não existe escolha no mundo da multiplicidade prometido pela Modernidade. Mas deixemos de lado tais considerações e voltemos ao nosso tema, o da velocidade desenfreada, da superação constante de limites. E justamente nesse cenário, numa curva de caminho, surge-nos diante dos olhos,Desaboio, o CD com letras do poeta Paulo Cesar Nunes musicadas por Saulo Alves, que se apresenta como a trilha musical do cerrado.
O choque ao nos deparar com esse mundo com traços da mais profunda ancestralidade brasileira, nos faz deter, como que embasbacados por um encantamento, um feitiço. E Desaboio, enfim e assim, desafia: nos força necessariamente a parar, não de modo grosseiro, abrupto, mas ao jeito mineiro de ser, cadenciado, ao ritmo de passo de boi, tangido sem pressa.
As letras de Paulo Nunes e as melodias de Saulo Alves são os esteios centrais da produção que ao longo do tempo se expandiu, tornou-se coletiva, mas não se perdeu da proposta inicial. Aqui, Saulo e Paulo, ao contrário dos homônimos bíblicos - que se cindem e bifurcam, o perseguidor dos cristãos transmuda-se, torna-se seguidor - aqui se complementam, somam esforços, confluem, convergem, agregam, "arreunindo" adeptos que se encontravam dispersos, de cada lado dos caminhos que seguem. E vão ajuntando gente, algum tempo de caminhada e eis uma multidão que os segue em procissão! A razão dessa surpreendente adesão é a causa que almejam, que é do interesse geral: preservar o que resta de um importante bioma brasileiro. Eles o fazem sem alarde, percorrendo trilhas e veredas, com olhares que se detém no detalhe, onde as referências podem ser um “pé de pau aqui”, “um arroio acolá”, “o morro mais além”, “adiante o buritizal, a porteira, o mourão”, linguagem estranha para quem se orienta seguro através de ruas, quadras, avenidas, GPS’s. O “passo de boi” em que segue a comitiva permite o vislumbre de mundos inteiros que julgávamos extintos: modos de ser e de dizer que refletem a essência da alma mineira, esse importante traço de nossa nacionalidade.
O tema central de Desaboio é o cerrado, mas poderia ser a Amazônia, qualquer das Chapadas, o Pantanal, o que resta da Mata Atlantica ou os pampas sulinos: qualquer que seja o habitat e as relações múltiplas que os homens travam com o mesmo; o importante é que nos leva a refletir sobre as estranhas prioridades predomenantes num mundo onde a economia e o lucro imediato prevalecem sobre tudo o mais.
A primeira vez que li e ouvi a palavra Desaboio, fiquei curioso: a expressão tinha um quê qualquer de familiar, de antigo, em nada sugerindo que se tratava de um neologismo: poderia ser uma daquelas muitas palavras inventadas por Guimarães Rosa, para deleite de nossos ouvidos, o que já estaria de muitíssimo bom tamanho. E não é a toa que o cenário onde se desenrola toda a trama é mesmo o sertão roseano. Mas se nos determos no que tem de poético, se nos deixarmos seduzir, podemos perder o foco e assim deixarmos passar o que o trabalho de Saulo Alves, Paulo Nunes, os músicos, pesquisadores, etc., tem de contundente: não se trata simplesmente de uma escolha ideológica ou modelo econômico: a atual crise hídrica pela qual as grandes cidades do Sul Maravilha passa, nos colocou dramaticamente diante da possível falta d’água no futuro, algo que nunca antes ventilado nos nossos pesadelos mais improváveis. Mas não estamos falando de um desastre nuclear ou uma guerra pelo precioso líquido: o desaparecimento da água do sistema Cantareira em São Paulo, o desaparecimento de algumas fontes da Serra da Canastra, onde nasce o Velho Chico, é o alerta vivo, o apocalipse bate às nossas portas: como escreveu o filósofo frances, Edgar Morin, no livro A Via Para o Futuro da Humanidade, “...ou nos metaforseamos ou nosso próximo será no rumo do abismo.” Ou seja, ou mudamos nossos hábitos, ou mergulharemos todos no caos. Preservar o cerrado, a Amazonia, a mata Atlantica e os recursos naturais neles contidos, não é mero exotismo: pode ser a única coisa que poderemos legar ao futuro de nossos filhos e netos!
Desaboio poderia ser uma obra triste, de desencanto - não do poeta, pois o mesmo é um ser resistente, um renitente, um sonhador; o poeta em suma é um transgressor, pois em qualquer época em qualquer tempo, o poeta sempre está na contramão da história, dos acontecimentos do mundo em que vive. Desencanto, sim, mas de e com uma sociedade que se revela incapaz de conter o próprio egoísmo, que asfixia seu próprio destino.
Desaboio, além de um desabafo poético, é um grito de alerta que deve ressoar pelos tempos futuros. E assim sendo, nos reacende a esperança. O mundo da velocidade e das imagens fúteis e velozes parece cansado de si mesmo: não é simplesmente uma onda nostálgica que nos assalta, mas uma necessidade do espírito humano que vez ou outra carece revisitar seu porto seguro, fonte primeva, onde tudo começou. E talvez nos faça ver que a História pode não ser a linha reta, que esmaga o que encontra no caminho...
A recente onda pelos antigos LPs, os discos de vinil, é mais que uma simples tendência de “mercado”: Desaboio está para mercado e as tendências mercadológicas como o alimento orgânico está para o alimento industrializado. Anos atrás, com o surgimento do CD, o vinil foi considerado banido,mal se sabia então que essas definições apressadas era tão somente a antipropaganda favorecendo um mercado então emergente. Nos dias que correm, gente que entende do riscado não hesita em afirmar que nada supera a experiência de ouvir um velho e bom LP numa vitrola razoável: no vinil, o som é “flexível”, “mole”, onde o ouvinte consegue visualizar as mãos do baterista, os dedos do violonista rangendo nas cordas, o sopro, a respiração do cantor/cantora, em contraste ao som asséptico, “duro” e impessoal do CD: caminho para uma retomada do “sentir”?!
Quem puder, corra e adquira o disco. Por ser produto independente, logo logo se esgota e se tornará daquelas raridades nas mãos de felizardos colecionadores: vale muito a pena. Além das maravilhosas músicas, deliciamo-nos com o preciso texto do Paulo Nunes, a emocionada descrição da trajetória do trabalho feita pelo Saulo, os esclarecedores e sensíveis textos de Ricardo Ferreira Ribeiro, Luiz Humberto Arantes e Regma Maria Santos. Tudo permeado por belíssimas fotos em preto e branco, de vários autores. Tudo deliciosamente temperado, para nos deleitar e ensinar.
Adbox