O ANJO, O RAMO, O PASSARO, O POEMA

As experiências abaixo descritas são minhas singelas homenagens a quem me ensinou a “viajar nas asas da poesia.” Embora o “sentir” poético sempre tenha estado presente em minha vida, - como está na vida de todos, embora quase nunca possa ser perceptível – faz pouco tempo que envolvi-me diretamente com a delicada Musa que tem por missão mostrar e inspirar aos homens, pobres seres terrestres, toda a beleza que preenche todas as instancias de nossas vidas, dando-lhes verdadeiro sentido.
A leitura do mexicano Octavio paz, logo nos primeiros parágrafos de O Arco e a Lira, mostraram a importância e a simplicidade da poesia, essa linguagem que antecede a própria linguagem, sendo a poesia uma tentativa de “grafar” imagens, tentativa essa que resulta sempre imperfeita, contudo, mais conveniente do que a razão, que paulatinamente marca o afastamento do ser humano da natureza da qual veio... E a cada vez que nos afastamos da natureza, mais nos tornamos sós, e justamente essa condição de solidão é que nos faz procurar romper o ciclo. Talvez por isso, por essa necessidade, nos tornamos (ou nos sentimos, por necessidade) “naturalmente” sociáveis – só nos tornamos plenos em sociedade:
O RAMO, O VENTO
O RAMO
Canta na ponta do pinheiro
Um pássaro retido
Trêmulo, no próprio gorjeio.
No ramo, flecha, ergue-se
Desaparece, entre asas
E em musica derrama-se
O pássaro é uma centelha
Que canta e queima-se viva
Em uma nota vermelha
Levanto os olhos; não há nada.
Silencio sobre o ramo,
Sobre o ramo quebrado
O VENTO
Cantas as folhas
Dançam ásperas na pereira;
Gira a rosa,
Rosa do vento, não da roseira
Nuvens e nuvens flutuam,
Adormecidas algas do ar;
Com elas todo o espaço gira;
De ninguém, energia.
Tudo é espaço;
Vibra a haste da papoula
E uma, nua, na corcova
Do vento, da onda voa
Eu nada sou,
Corpo que flutua, luz aragem;
Tudo é do vento
E o vento é o ar sempre em viagem.
(Octávio Paz)
O poeta mexicano certa vez declarou que esse poema foi dos mais importantes que fez. Na aparente simplicidade que lhe era peculiar, contou que nasceu exatamente assim, tal qual descreve: no jardim de sua casa, ele viu o pássaro pousar no ramo, cantou alguns instantes e em seguida voou, sua frágil silhueta diluindo-se ao todo em redor. Estava pronto o poema, nada havia a acrescentar!
Não saberia dizer que foi o melhor poema que li. Provavelmente não, pois espero sempre encontrar o melhor poema, o melhor sempre estará por vir. Além do mais, seria uma responsabilidade por demais pesada, até mesmo injusta, uma carga excessiva para um poema. Pois um poema, mesmo com toda a densidade que lhe é característica, tem o peso de pétalas.
Porém, devo ressaltar que esse é um raro caso de poema que houve desdobramentos imprevisíveis, surpreendentes – e, o que de melhor se pode esperar de um poema que se desdobre em outros? O poema, imagens em palavras, é como água, em fluidez constante, adquirindo e readquirindo novos e imprevistos significados.
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Li o poema de Paz num inverno, há uns dois anos aproximadamente e o mesmo me envolveu por uns tempos, pássaros e ramos que me surgissem á frente me reportavam de algum modo a magia simples que a natureza nos esconde e revela, de acordo com nosso estado de espírito. Eu sentia, que num momento ou em outro, algo me seria “revelado”, de onde menos esperasse, tal era uma desconcertante certeza. Morava, naqueles tempos, numa casinha cercada de vegetação e vantagens e inconveniências recompensavam-se uns e outros: umidade, mosquitos, verde, pássaros, gatos. Uma arisca Sabiá rondava minha casa. Uma mangueira sortuda no meio do quintal costumava receber a visita da avezinha. Era preciso atenção e cuidado para descobri-la por entre a ramagem.
Uma tarde, chovia fino. Musica e aconchego, toca na vitrola um disco de Consuelo de Paula, a mineira de Pratápolis. O disco é Dança das Rosas? É provável, mas não me lembro com certeza. Numa pausa da chuva, a Sabiá sai de seu esconderijo na mangueira e alça seu vôo. Ao passar diante de minha janela, o som da voz da cantora parece atingi-la em cheio e ela detém o vôo, faz meia volta, e pousa na cumieira de uma casa em frente, assuntando. De onde estou, não me movo, nem respiro, pois sei que qualquer movimento quebraria o encanto. E do frágil peito da ave, um outro mil sons emergem, tomam conta do ar, junta-se harmonicamente á voz de Consuelo, consolidando por vários segundos um dueto mágico: que dizer da mistura das vozes da contora e do pássaro, mais violões, tambores, violas, flautas, clarinetes, sanfona? Muita coisa se juntou ali, àquela perfeição: a voz de uma cantora ou cantor quando brotada do coração da alma popular, alcança aquele misterioso estado de beatitude indescritível, inexplicável, incompreensível para o/a próprio/a artista. Tomado pelo êxtase, só resta a ele/ela seguir a nota, deixar que o/a leve pelo mundo afora, encantando: fez-me lembrar a fala de Dona Maria Rezadeira, na abertura do disco de Katya Teixeira, o Lira do Povo:
prá cantar uma canturia, num carece saber, ali é um ispritú que acumpanha, uma vóiz...”
Naquele momento compreendi o que Octávio Paz quis dizer quando um fugaz momento, uma efemeridade que acontece o tempo todo – um pássaro pousa, em seguida voa! – converte-se em poesia. Poesia da vida: densa e transparente, como escreveu Roa Bastos, poeta e escritor paraguaio. E a realidade se ilumina, para a estupefação dos sentidos e da alma. Pura e simples.
Assim é a poesia, e por tabela, a arte popular. Poderia citar aqui uma enorme lista de artistas verdadeiramente populares, tanto no Brasil ou no exterior, pois arte que fala diretamente do coração abole fronteiras. Mas cito, simbolicamente, uma artista: Kátya Teixeira. Embora sejam muitos os verdadeiros artistas populares, a maioria sendo considerada "amadora", pois exercem outras atividades profissionais, são poucos os que encarnam no trabalho e na vida o amalgama de que é composto a arte popular: quando Kátya solta sua voz reconhecemos a voz negra, índia, portuguesa, celta, moçárabe. Creio eu que ela própria não se dá conta da poderosa força que a toma. Ainda bem que seja assim, pois é algo tão forte que uma única pessoa não dá conta, pois mais que viva tal experiência 24 horas por dia, por toda a vida: o artista é ponto de convergência, de agrutinamento, uma autêntica entidade, num sentido espiritual, digamos, na falta de melhor expressão.
Uma Sabiá breca seu vôo e junta-se à voz da cantora Consuelo: o poema estava pronto, a cena toda, todas as dimensões espaciais e temporais, a atmosfera aquosa, a/s musica/s, a claridade esmaecida, tudo isso era um poema. Como traduzir, especialmente um não-poeta como eu? Na verdade, não precisaria escrever nada, bastaria ficar com a imagem e a musica na cabeça. Mas, como contar essa noticia para os outros? Quem acreditaria? Assim, me ocorreram os versos, simples, umas poucas palavras, pobres palavras que tentariam decifrar a magia da cena:
DUETO DE ANJOS
o canto do anjo detém
o pássaro em pleno voo
a asa trêmula pousa
acolhe a melodia
e a devolve reinventada
o ar se petrifica
com o canto dos seres iluminados:
na atmosfera ressoa
o frêmito ondular
da música.
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