GRATA HOMENAGEM NO CENTENÁRIO DE ORLANDO SILVA

Para quem conhece os clássicos – reporto aqui ao José Maria de Oliveira, o Guru do Ser-tão Paulistano, que conhece tudo – e para quem precisa e deve conhecer – aqui me incluo! -, uma excelente pedida: no ano que Orlando Silva completaria 100 anos, o cearense radicado em São Paulo, Zé Guilherme, lança um disco que deve figurar como obrigatório para os amantes da Música Brasileira – assim mesmo, em iniciais maiúsculas!: “Abre a Janela – Zé Guilherme Canta Orlando Silva.”
Nos dias que correm, quando a maioria das emissoras populares de rádio só tocam “jabá”, pouco ou nada se conhece de Orlando Silva, com exceção das obviedades como “Lábios Que Beijei”, “Homem Sem Mulher” e outros hits das dezenas de sucessos do artista que reinou na musica brasileira na primeira metade do Século XX. Orlando Silva foi chamado no seu tempo “o cantor das multidões” e tal alcunha não foi “apenas” uma jogada de marketing, tão em voga no nosso tempo, onde artistas medíocres são alçados à fama instantânea e desaparecem sem deixar vestígios quando o dinheiro da propaganda acaba.
Em qualquer antologia, onde quer que se fale dos melhores, Orlando Silva sempre será citado, com sua voz poderosa, de sonoridade singular que chega aos nossos ouvidos sem qualquer mácula ou hesitação. Quem o ouvir nos dias de hoje não há de passar despercebido: Orlando cantaria com a mesma facilidade e descontração, fosse acompanhado por um trio, quarteto ou quinteto de jazz, orquestra ou por piano ou violão solo. E com toda certeza, atrairia multidões.
Orlando Silva, nascido em família pobre, não teve formação musical, mas desde o berço a atmosfera familiar ressoava música. Seu pai era violonista e amigo de Pixinguinha, a quem costumava acompanhar em serenatas e encontros gastronômicos à base de peixadas e feijoadas. Perdeu o pai muito cedo, quando tinha somente três anos, mas o germe da boa música semeada pelo gênio ainda precoce de Pixinguinha já tinha encontrado no menino terra fértil.
Anos depois, após ter trabalhado como sapateiro, vendedor de tecidos e cobrador de ônibus, ao ser levado por Francisco Alves fazer um teste da Radio Cajuti, já era um artista completo, afiado no estilo de Carlos Galhardo e do próprio Chico Alves, de quem passava tardes inteiras a cantar suas músicas, para delicia de sua vizinhança. Nos anos seguintes, sua voz dominou o mundo do rádio e não foi à toa que o locutor Oduvaldo Cozzi o apelidou “Cantor das Multidões.” Dentre seus fãs estava o próprio ditador, Getúlio Vargas, o homem mais poderoso e temido do Brasil de então – a propósito, Vargas tinha gosto especial por artistas populares; conta-se que ele próprio forneceu a alcunha “Sapoti” (uma fruta do nordeste) à Angela Maria.
No ano que Orlando completaria 100 anos – nasceu em 1915 – o artista que está eternizado na grande constelação da Musica Brasileira merece ser conhecido pelas novas gerações. Não era somente um cantor de ocasião ou de sucessos fáceis. Estabelecia uma profunda identidade (ele mesmo dizia ‘de alma!’) com as músicas que cantava, captava dos compositores a essência dos sentimentos e os retransmitia sem qualquer tipo de afetação. Talvez um dos segredos de Orlando fosse justamente a ausência dos trejeitos e outras técnicas típicas dos cantores profissionais: seu jeito límpido, entretanto conservando a brejeirice no cantar, fazia a ponte perfeita entre cantor e ouvinte: não seria exagero afirmar que Orlando Silva fundou o moderno estilo brasileiro de cantar. Mais de setenta anos depois de ter alcançado o ápice de sua carreira – os fabulosos anos de 1936 a 1942 -, a magia permanece: ouvindo o disco de Zé Guilherme me vi cantarolando alguns dos sucessos de Orlando, por puro reflexo, mas que ajuda a compreender a inequívoca simbiose público/artista.
O grande mérito de Ze Guilherme foi ter trazido Orlando para a atualidade. Ele não é um imitador de Orlando, não segue o caminho o caminho fácil já traçado pelo cantor das multidões; também não seria correto dizer que o “traduz” ou “recria”, tornando apetecível para as novas gerações; tampouco o “relembra”, como seria de praxe e mui justo no ano de seu centenário de nascimento.
O elemento forte que encontramos ao ouvir Zé Guilherme cantando Orlando Silva é a autenticidade: ele canta os clássicos do seu próprio modo e o faz com extrema delicadeza e leveza. Ouvimo-lo como se o mesmo estivesse na sala de nossa casa, junto aos músicos, de forma inteiramente descontraída: não existe a pompa, mas um grande respeito e reverência. E principalmente alegria, percebe-se na entonação que ele gosta do que faz. Zé Guilherme canta porque gosta, assim como o fazia Orlando, e isso fica claro ao longo das 18 faixas cuidadosamente escolhidas entre clássicos conhecidos e outras nem tanto, contudo importantes na trajetória de Orlando Silva: nada do que é mostrado – em termos de interpretação e arranjos à cargo de Cezinha Oliveira - é irrelevante ou descartável: cada faixa é para ser apreciada com prazer, pois em cada fraseado percebemos os inúmeros desdobramentos que um verdadeiro “clássico” tem a nos oferecer.
A leveza ea descontração percebidas ao longo da audição não significa descuido para com a qualidade. Os arranjos são requintados, caprichados. Violão, acordeon, piano, trombone, cavaquinho, flautas, percussão, inusitadas guitarras elétricas, bandolim, tudo se encadeia e acolhe a voz do interprete e seguem caminho. Há momentos em que imaginamos o próprio Orlando cantarolando junto e melhor salvo conduto não poderia haver para recomendar a apreciação desse belo trabalho.
Roteiro:
1) A jardineira, 1938
2) Dama do cabaré, 1936
3) A primeira vez, , 1940
4) Abre a janela, 1937
5) Aos pés da cruz, 1942
6) Cidade arranha céu, 1936
7) Cidade brinquedo, 1939
8) Curare, 1940
9) Faixa de cetim, 1942
10) Lábios que beijei, 1937
11) Lealdade, 1942
12) Malmequer, 1939
13) Meu consolo é voce, 1938
14) Meu romance, 1938
15) Homem sem mulher não vale nada, 1938
16) Pela primeira vez, 1936
17) Preconceito, 1941
18) Alegria, 1937
Como se percebe, são todas canções produzidas durante o período áureo de Orlando – 1936 a 1942. Um aperitivo, um convite a rever sua obra, que é também uma visita e um convite para rever umas das épocas áureas de nossa arte musical, que até hoje continua a encantar: também um convite à reflexão e tentar compreender porque se fazia tanta coisa e de tão boa qualidade. As 17 faixas são um pitaco, e olha que ficou muita coisa boa de fora. Sertaneja é uma delas. Ah, uma curiosidade: algumas músicas provavelmente seriam "censuradas" pela praga do "politicamente correto", esse novo absolutismo, implacável, que nos vigia a cada passo e tenta direcionar o pensamento e a própria vida que predomina nos nossos tempos: "Preconceito", que narra as peripécias de um crioulinho apaixonado por uma branca seria alvo de protesto e/ou processos, o mesmo se dando com "Homem Sem Mulher Não Vale Nada",que muitos veriam como o mais explícito e condenável machismo.
Músicos acompanhantes: Thadeu Romano, Breno Ruiz, Meno Del Picchia, Maik Oliveira, Pratinha, Adriano Busko, Allan Abadia, Luque Barros, Cezinha Oliveira e João Pedro Verbena. Distribuido pela Tratore
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