O SUL EM CIMA



O Cd “O Sul em Cima”, coletânea realizada a partir do programa radiofônico de mesmo nome, produzido por  Kleiton Ramil, chega aos nossos ouvidos como uma agradável provocação.
            A provocação começa pelo programa de rádio, um veiculo que atinge milhões de pessoas e é parcialmente ignorado. O rádio sempre foi a tecnologia de comunicação mais acessível e popular,  desde os primórdios, nas primeiras décadas do século. Para o rádio, não tem tempo ruim: entra década, sai década, tecnologias das mais variadas surgem e desaparecem, e o rádio continua, firme, pois a verdade é que não tem adversários e muito ao contrário: mídias que poderiam ser rivais, terminam por se associar a ele, rádio. É o caso, por exemplo, do telefone celular. 
O rádio teve sua Era de Ouro, quando reinou soberbo e quando se pensou que estaria com seus dias contados com o advento da televisão, eis que o rádio nem dá bola: a TV fica na dela e o rádio e no seu canto,  cumprindo seu papel, inconteste.


            A longevidade desse velho e fiel companheiro deve ser comemorada! Versátil, ágil, adapta-se praticamente em todo apetrecho tecnológico, seja simples e/ou complexo: computadores, celulares, tablets ou minúsculos aparelhos do tamanho de uma caixinha de fósforo que se acopla diretamente ao ouvido, sem falar no tradicional rádio de pilha, de tamanhos variados. (Faz parte de minha memória afetiva um grande Semp, com 4 faixas de onda, de onde, no interior paulista, ouvíamos a antiga Rádio Nacional.) O rádio é como o livro, portátil, simples e denso de conteúdo e que acompanha você por toda a parte.
            Ouvindo o intrigante CD “O Sul Em Cima”, oriundo de um programa de rádio, não posso deixar de tecer essas considerações: duplo motivo pra comemorar, a longevidade do rádio e um programa de uma hora de duração com entrevistas, musica, informação. O Programa é produzido e apresentado por Kleiton Ramil, figura de destaque na moderna cultura riograndense – escritor, compositor, cantor - e se apresenta com a proposta de “...divulgar novos artistas do Sul do Brasil. Entenda-se o Sul como Rio Grande do Sul – Poro Alegre, o epicentro – Paraná, Santa Catarina no Brasil e os vizinhos Uruguai e Argentina.” (informação extraída do encarte do Cd).”


            O CD tem 18 faixas com 16 artistas diferentes, e surpreende. Surpreende a quem porventura tenha idéias pré-concebidas das coisas do Sul –como era o meu caso, por sinal.
            Apesar da rapidez e disponibilidade de informações que temos a disposição por conta da internet, tudo é muito parcial e incompleto: existe uma abundância de informação, milhões delas, mas ninguém é capaz de assegurar que tenhamos à disposição o que realmente interessa, o que é útil de fato. Informações/dados redundantes, repetidos, de pouca importância e eis que descobrimos horrorizados que a previsão do filósofo Edgar Morin no seu livro “Para Sair do Século XX” se cumpre, quando nos diz que “...a superinformação pode acabar por se tornar subinformação.“ 
E assim, descobrimos que nós, aqui do eixo Rio São Paulo, temos uma ideia inteiramente equivocada da verdadeira cultura do chamado Sul do país: para mim, a cultura musical  se dividia entre os ritmos estereotipados ao longo do tempo – xote, vanera, vanerão, etc. – e o tradicional de raiz – milongas, chacareras, cantigas de galpão, etc. Nunca havia pensado na existência de uma cultura musical urbana do Sul. Achei relevante mencionar isso, com ares de despojado meã culpa, porque creio ser esse um pensamento lugar-comum do nosso público consumidor, mesmo entre alguns supostamente mais atentos. E esse desconhecimento resulta numa perda enorme, pois o que se produz por aquelas bandas é extremamente rico e tem muito a nos mostrar/ensinar/trocar. Por incrível que pareça, o Sul, tão mais próximo a nós paulistas e cariocas, é incrivelmente desconhecido entre nós. Explicações para isso é pano pra manga que não cabe discutir aqui por falta de espaço, mas creio que passa por interesses mercadológicos, digamos assim... Que rótulo caberia ao pessoal do Sul? (Se não me engano, parte desse dilema é exposto no filme "A Linha Fria do Horizonte". Grande parte dos gaúchos não faz caso do isolamento a que é submetido econômica e culturalmente. Mas outra grande parte anseia por uma maior integração. Entretanto, em se tratando de país continente como é o nosso caso, a produção de uma cultura para consumo local não é incomum. Nos EUA, nosso exemplo mais próximo, existem escritores e artistas de qualidade ímpar e original que jamais serão conhecidos nos grandes centros).



            Ouvir da primeira a ultima faixa do CD “O Sul Em Cima”, com seu desfilar alucinante de ritmos, de estilos, é como ser sacudido e desafiado a uma luta direta no tatame: a música fala diretamente aos sentidos, sem pudor, sem subterfúgios, sem embromações. A música desses meninos e meninas não é para relaxar ou simplesmente curtir distraidamente: é musica que te sobressalta. Mesmo que não se identifique plenamente com o tema, te obriga a ficar atento ao que vem a seguir, pois não sabes o que te espera no próximo acorde ou no próximo verso. É uma montanha russa.

            O resultado é um Sul diferente do lugar-comum. A conexão instantânea e sem graça, imposto pela linguagem padrão das redes sociais – que nos dá a falsa impressão de estar conectado com o mundo – não dá conta da realidade pujante expressa no mundo real; o conhecimento  da realidade é um processo um pouco mais amplo. É a isso que sou levado a pensar depois de ouvir a jovem música do Sul. E o dinamismo ancorado na excelente qualidade dos artistas, revelam uma sólida formação musical que não os faz perder o chão: eles partem da tradição e a remodelam!

            Se a intenção deles era nos deixar com água na boca, conseguiram ir além. O CD é algo mais que um “painel” da jovem musica sulina e um desfile multicolorido, alegre e descontraído. O ecletismo reflete os  vários estilos e tendências. De comum, tem a leveza, a atitude descontraída  perceptível naqueles que estão  seguros do que querem e do que representam, e essa leveza deve provir do intenso diálogo musical que travam entre si. A cultura  do Sul, caldeirão multifacetado que abrigou  açorianos, portugueses, gringos diversos, índios e mestiços se junta no CD e poderiam juntar-se num mesmo palco, fazendo lembrar o projeto “Orquestra Mediterrânea”, realizado por Carlinhos Antunes, para o SESC, em São Paulo, com artistas de várias partes do mundo, juntando árabes, judeus, ciganos, etc.
            Por isso, não é de se estranhar  encontrar o canto lírico, a balada dolente, paisagens pampeanas de rios, praias, montanhas. E numa das curvas da “montanha-russa”, a alucinante atmosfera de “baladas”,  sintetizadores, percussão eletrônica, teclados, golpes de guitarra elétrica, que nos abduz e em transe nos leva para uma nave que segue mundo afora, como num moto perpétuo. O disco, bem como o programa radiofônico, resulta numa ideia que pode ser exemplar e se espalhar: uma harmonia possível, com todos os sotaques possíveis! A musica e sua linguagem universal, foi em outros tempos ponto de intersecção entre os homens, quando caravanas de mercadores se encontravam no deserto e ao longo do Mediterrâneo, fomentando um desenvolvimento cultural crucial para a Humanidade.

            O universo do gaúcho ignora a geografia política, tem suas próprias regras, sua própria lógica: permeando seu mundo, a milonga é um elemento comum. A partir da “Milonga da Moça Gorda” e “Milonga Para Los Perros”,  ninguém mais vai ouvir o ritmo consagrado por Atahualpa Yupanqui e  Noel Guarani do mesmo jeito: mais do que a performance em si, vale pensar e saber que a milonga é algo muito mais profusamente inserido no espírito gaúcho: é, antes de tudo, um modo de ser ou de estar no mundo. A desconstrução provocada pela “Moça Gorda” e a estilização ousada e moderna de “Los Perros” demonstra isso.
Ao fim da audição, continuamos viajando na nave doida em que eles nos fizeram embarcar. E aqueles sons loucos continuam ressoando/ecoando em nossos ouvidos. Qual tema prevalecerá?
Que fazer?
Querer  que El Tiempo Para?  Andar  a esmo Por Aí? Ou preferimos Um Canto a Terra? Ou ainda passar por Berlin? Quem sabe nos reunir Por Uma Noite apenas ou decifrar um Hai Kai, contemplar Paisagens, concentrar na Viva Voz, fazer Combinações entre Awakening e as escalas de Quel Sguardo Sdegnosetto, atentar aos Ruídos do vento no monte SaintMichel? Ou nos render aos apelos de Besame?

O que escolher? O berço dolente ou a inquietude corrosiva? Retornemos e ouvimos novamente: talvez desta vez  nos deixemos levar mares afora pelas sereias encantatórias, as incríveis Marias Nuas, sob o brilho da Estrela Guria!

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