UM BUSTO PARA O MURZELO ALAZÃO, CAVALO BRASILEIRO

A Câmara dos Vereadores da cidade do Rio de Janeiro se reunirá brevemente para discutir se o funk, movimento surgido nos morros cariocas, é cultura ou não. Penso que esses assuntos, de profundo teor filosófico, têm muito a ver com meu amigo Zé Mangabeira, que se diz Herdeiro da Família Real Brasileira. Inda outro dia discutíamos a esse respeito de cultura, o Zé afirmando peremptoriamente, que “... o processo cultural nasce espontaneamente, alheio à gerência ou ingerência oficial! etc. et tal...”





















Montado no garboso e famoso cavalo Murzelo Alazão, fui encontrá-lo numa Praça, no Centro de São Paulo. Pernas elegantemente cruzadas, mão no queixo, pose filosofal, assim estava Zé Mangabeira como que mergulhado em milhões de pensamentos. Prendi a rédea do Murzelo num poste de luz, a guisa de estaca e me aproximei – não sem um pouco de cisma, pois, sabe-se lá a reação de um Prinspe, interrompido em plena meditação. Mas ele já parecia estar me esperando, convidando-me a sentar a seu lado. Expus-lhe a seriíssima questão em discussão na Câmara: Funk é cultura ou não?. O Zé acendeu seu cachimbo, deu umas baforadas sob o olhar severo de uns Guardas Civis ali por perto, assuntou uns segundos e disse:

- Que bom! Que bom!...Estava mesmo pensando nisso, aqui, nesse instante certo de exato quando você me traz a boa nova!...
-? – tentei dizer algo, sem sucesso. Ele prosseguiu.
- Quando for restaurada a Monarquia e o povo reconduzir ao trono o Real e Verdadeiro Prinspe de todos esses sertões, do pampa ao cerrado, das caatingas aos manguezais, dos chapadões as densas matas, ou seja, EU, minha primeira medida será dar dignidade à classe política, que anda tão mal falada, vilipendiada! Quero recuperar esse valoroso segmento, esteio fundamental da vida moderna, essencial para o desenvolvimento, para a civilização ocidental e mundial! – eu me mantinha calado, asuntado meio de viés, cabeceando cá comigo se o Zé Mangabeira havia mesmo entendido minha missiva. Prosseguia ele:

-... Como fazer isso? Incentivando-os a encabeçarem projetos, alavancar e mover a roda! Eis um mote, impecável, modestamente admito-o: ”caberá as competentes Comissões de parlamentares a definição, a aferição, a debateção, votação e promulgação de todas as atividades culturais do território brasileiro. Todos os nobres parlamentares deverão estar inflados de fervor patriótico e varonil, pois, trata-se de estabelecer através de Decretos Leis, os elementos definidores da identidade nacional, nosso mais vigoroso, insofismável e indelével patrimônio. As despesas decorrentes das pesquisas, viagens. entrevistas e elaboração de pareceres periciais, ocorrerão por conta do Erário Público.” E a boca pequena, no improvisado e privado discurso, direi para arregaçarem as mangas, mãos à obra, pois a moleza de salários extras e jetons fraudulentos acabou. Vocês serão reconhecidos pela posteridade como o abnegado grupo de trabalho, pais fundadores da Pátria! Discutiremos se o funk é cultura, traçaremos parâmetros baseados em pesquisa historiográfica-atropológica-sociológica-biológica-teológica-psicológica-arqueológica-musicológica. Ao final, lavraremos Ata em pergaminho de madeira nobre, a alma da identidade nacional. E que não pare por aí: todas manifestações populares e folclóricas, uma vez comprovada sua autenticidade, se tornarão Lei. Serão formadas Comissões Mistas para definir o samba (de roda, rural?), o côco, o maxixe, o baião, xaxado, xote, vanerão, frevo, cururu, siriri, chamamé, cateretê, moda-de-viola, cantiga-de-galpão, congada, caxumbu, chôro, bumba-meu-boi, maracatu, bossa nova, maculelê, caboclinhos, lundu, caribó, partido alto, samba-canção, sertanejo, caipira, rasqueado, forró, axé, pagode (do Tião Carreiro ou do Netinho?), reisados, toadas, marcha-ranchos, folia de reis, etc. Ao mesmo tempo, formaremos grupos de desbravadores pesquisadores que sairão a campo para descobrir manifestações culturais, porventura escondidos nos cafundós.




















A vibração do Zé Mangabeira foi tanta que me contagiou e me vi batendo palmas entusiásticas acompanhadas de “Bravo! Bravo!” e não sei de onde veio a idéia – iluminada! – que modestamente, refutei genial:
- Proponho uma Comissão Supra Partidária para definir o tipo eqüino característico da terra brasilis, afinal este é um país onde cavalos, jumentos, burros, mulas e pitiços, exerceram papel fundamental! Em seus lombos carregaram riquezas mil, transportaram a nobreza, reis, príncipes, princesas, musas!










Qual minha surpresa quando o Zé Mangabeira igualmente aplaudiu minha idéia, acompanhado de “Bravo! Bravo!” e aproveitando a interrupção, me nomeou Ministro dos Assuntos Extraordinários de seu futuro reinado! Topei, mesmo sem saber o que vinha a ser isso. Empolgado, saltei, exclamando exultante:

- Quem será o Cavalo-Rei? Será o Manga-larga? O Zaino? O Baio? Quarto-de-milha?
Paint-Horse? Appaloosa? Don? O Árabe? O Búlgaro? O Bretão? O Crioulo? Clydesdale? Ou será o Álter-Real? O Dole?o Ruão Melroado? O Argentino? O Derashouri? O...

Nisso ouvimos um furioso relincho: eis o Murzelo Alazão pulando e escoiceando para os lados, ao ponto de quase rebentar a rédea, derrubar o poste com sua força brutal e descomunal, olhos acesos, em brasa, cauda eriçada! Furioso estava o Murzelo Alazão e nos demos conta da indiscrição: falava de cavalos nobres e me esquecia completamente do Murzelo e suas façanhas! Naturalmente, ele protestava. O povo parou, assustado e assombrado, o Murzelo continuava batendo os pés violentamente contra o chão, estremecendo, arrancando faíscas do asfalto! E do meio da multidão veio uma mulher, bonita, em trajes esportivos, que fazia destacar as formas perfeitas de freqüentadora assídua de academias de ginástica – verdadeira força pujante da natureza!, cabelos presos em coque, elegantes óculos escuros, de marca. Linda, mas de cara fechada, emburrada:

- Vocês dois querem fazer o favor de fazer essa coisa parar?
- Coisa? Que coisa? A senhora se refere ao meu cavalo, o famoso e garboso e solerte Murzelo Alazão?
- Cavalo? Alazão? Você chama isso de cavalo? Pois quando vi de longe pensei que era um tipo qualquer de espantalho, essas obras que esses malucos pós-modernos instalam pelas ruas! Isso precisa de muito pra chegar a pangaré! Despautério! Isso é uma cidade, não cocho de sarnentos!





Eu fazia desesperados gestos à dama, para que contivesse suas ofensas ao Murzelo, pois ele poderia perder o tino, rebentar rédea e derrubar poste, seria uma tragédia! Já pensou, ser alcunhado Cavalo Louco? Foi quando ouvi uma espécie de grunhido lamentoso e ao me voltar o Murzelo estava de orelhas caídas, gemendo, beiços moles, babando. Dobrava as patas, a outrora elegante cauda um feixe de pêlos descorados, tremia, envergonhado! Para cúmulo, despencou de vez no solo e cobriu a cabeça com as patas dianteiras como um cachorrinho!





E me olhava com aqueles grandes olhos de cavalo, olhos úmidos, a cauda sumindo debaixo do corpo magro, as pelancas à mercê da implacável gravidade, costelas á vista. Eu não sabia o que fazer, era ridículo, o povo dava risadas, eu não sabia se respondia àquela gente insensível apelando aos estatutos da Sociedade Protetora do Animais, que deve constar em algum artigo que bichos não devem ser expostos a situações grotescas e ridículas ou se acudia o pobre Murzelo, covarde, mas fiel companheiro de andanças e aventuras. Vexado a não mais poder, queria mesmo era eu próprio meter a cabeça num buraco qualquer! Pelo menos a mulher bonita, mas grosseira, deixou de lado a cara enfezada e sorriu, gargalhou a se dobrar ao meio. Patética e humilhante cena, eu também a tremer. Vexame, infâmia: um Prinspe de Cangaceiros passar por isso, tempos cruéis esses, que se joga ao turvo nobrezas cangaceirísticas, últimos remanescentes da Cavalaria Medieva... Foi quando ouvi a poderosa voz principesca de Zé Mangabeira, que fez valer sua condição de Herdeiro do Real Trono Brasileiro, vivamente empenhado em desmascarar aqueloutros Braganças, que de modo ilegítimo se aboletaram do trono. Dedo em, riste, Zé Mangabeira bradando, poderoso glangor ecoando metrópole afora:

- A senhora que tenha a sorte do Murzelo se apiedar de ti! Ele não é apenas um cavalo, dentre as melhores linhagem que hai! Murzelo Alazão é o Cavalo! Traz em si, mestiçados, o supra-sumo de que se forma todos os cavalos! O inegável Murzelo Alazão, soberano das baias campejanas, dos campos geraes e dos pampas e das caatingas constitui-se na síntese de todas as raças eqüinas existentes e por existir em vindouros tempos! Senhoras e senhores, quando a seus olhos recaem a felicidade de vislumbrar o fabuloso, o impecável, o inacreditável Murzelo Alazão, saibam que não estão simplesmente olhando para uma raça determinada de cavalo: estão tendo o privilégio de ver a essência, a idéia fundamental da qual se constitui um cavalo! Todas as demais raças equinas são meras sombras, cópias mal ajambradas do maior de todos, do verdadeiro cavalo! Quando eu assumir minha condição de Prinspe Governante, erigirei nessa Praça um busto em honra do notável Murzelo Alazão, o Rei dos Cavalos do Brasil e do Mundo!

O povo se dispersava entre risos jocosos. Ainda ouvi Zé Mangabeira resmungar entre os dentes:
- ... eita gentinha, que nada entende de assuntos reinóis e principescos, burguesia bitolada e alienada, aff!... Mal podem esperar ver Murzelo Alazão, eternizado, o Cavalo do Futuro! Brasil, País do Futuro! Sempre!.

E, de onde estava, o Murzelo alteava-se assaz faceiro, cauda empinada elegante, bufando, mas com galhardia eqüina, relinchando moderada, educada, nobremente. Erguia as patas dianteiras, sobranceiro, taludo. Parecia estar treinando a pose que ficaria para a posteridade, perpetuada pelas mãos de um mestre escultor: Murzelo Alazão, Cavalo Brasileiro! Pareceu-me mesmo ouvir ecos de motetos, adágios, andantes, maestosos: gran finale: Seria a Sinfonia Eqüestre*?


























SERVIÇO: * referencia à obra do grande escritor matogrossense, Ricardo Guilherme Dicke, autor de uma das mais belas páginas sobre cavalos: a novela Sinfonia Eqüestre

SERVIÇO II: Não deixem de ver a postagem abaixo, Vinheta do Ser-tão.
Adbox