A CARA DO SER-TÃO






“Passando pelas banda
Do meio do sertão
Passei por Alagoinhas
Meu companheiro no volante
Desviano das borboleta
Naquele verdume de mato
Gado mugindo no curral
Nessa estrada chegamo
In Ribeira do Pombal
Isso não faz muito tempo não...”


Os versos acima são da cantiga Viajano Cum Xangai, do disco Pote a Memória, trabalho de Luiz Carlos Bahia, o “tresloucado poeta”, nas palavras de outro baiano ilustre, Elomar Figueira, na apresentação do disco.
Nessa época de fim de ano, sempre fazemos a famosa avaliação do que foi feito no ano, o velho balanço, mil planos para finalmente por a bagunça em dia, projetar o futuro. Hora também de dar uma olhada nos livros, nos discos e geralmente nos deparamos com algo meio esquecido num canto, algumas pérolas que deixamos passar batido durante algum tempo... Pois foi numa dessas que revi “Pote da Memória”, dormitando num canto. Colocá-lo na vitrola e ouvir novamente foi uma nova descoberta.
“Pote da Memória” nos induz através de suas 13 canções uma reflexão ao mesmo tempo emotiva e candente, dilacerante mistura de mundos, de seres, lembranças, esperanças e sobretudo a memória: memória guardada no “pote de barro onde estão entesouradas todas as coisas”: o tempo que se foi irremediável, mas também o tempo que virá, o futuro de liberdade não do menino de pé no chão de ontem, mas do guerreiro-nação que é o povo brasileiro... Dividido em partes – A Lembrança, A Viagem, o Amor, a Luta, a Esperança – termina num Maracatu Boi Brasil, os toques do maracatu sobre acordes do Hino da Independência... O Boi-Brasil que se quer libertar, em vez de seguir dócil, servilmente rumo ao matadouro , sobretudo cultural...
A busca por tesouros prosseguiu e re-descobri o Clube da Esquina, aquele mesmo, que lançou Lô Borges aos 20 anos, de parelha com Milton Nascimento, um dos discos mais requintados da História (com H maiúsculo mesmo!) E ali, bem ao lado, outro mineiro, Zé Côco do Riachão, o “Beethoven” do sertão... Um pouquinho mais e eis Patativa do Assaré, fruto da viagem a Recife. Mais adiante, os discos de Noel Guarani. E outros e mais outros: Papete, Don Athaualpa, Zé Paulo Medeiros, Vital Farias, Don Eduardo Falú, Mônica Salmaso, Ana Salvagni, Oswaldinho Vianna e São Sebastião do Tijuco Preto, Eliezer Teixeira e seus Encantos Brasileiros...
Formada a pilha e vitrola a postos, vamos ao trabalho. Como sempre, a organização sempre fica para a próxima, mas pelo menos atualizo os ouvidos... Para arrematar e fechar o ciclo auditivo com chave de ouro, o eterno retorno para a indiscutível, a genial, a espetacular, a magnífica Katya Teixeira! E já que mergulhamos na música brasileira, nós que aqui chegamos, ouçamos a nossa diva da MPB Grazziela Hessel e sua voz de veludo; os trinados da viola do matuto Ricardo Vignini, e a poesia de João Bá, Antonio Pereira de Manaus e todo esse pessoal que a gente nunca se cansa de ouvir!

E foi assim que, pouco antes do Natal, estava eu em plena Avenida Paulista, pensando nessas coisas do tal balanço de fim de ano quando uma voz conhecida ressoou entusiasmada: “Joca Ramiro!”, voltei-me e lá estava o guru ZéMaria, confortavelmente sentado numa cadeira, cercado de um grupo de pessoas bonitas. Julguei tratar-se um grupo de amigos ou parentes vindos de fora e o Zé com sua generosidade já conhecida, os cinceronava, mostrando os encantos da paulicéia, coisa que ele sabe melhor que ninguém. Fui apresentado aos cavalheiros e damas, o Zé não economizando elogios, fazendo-me lembrar de outro Zé, o Mangabeira, o que se diz herdeiro do Trono do Brasil, e que toda vez que me vê me outorga-me um título nobiliárquico em seu futuro reinado...
Qual não foi minha surpresa quando fiquei sabendo que aquela gente toda que ali estava, o ZéMaria acabara de conhecer! Saíram de um concerto ali no Teatro do Sesi e entre as trocas de comentários na fila de saída, o convite prontamente aceito para uma rodada de chopps que se estenderia por varias horas... Muitos eram paulistanos natos, mas havia gente do interiorzão, do Parnaíba, do litoral.
Assim é Sampa: o até então desconhecido da fila se torna um irmão fraterno, como poderia dizer mestre Cartola, em Sala de Recepção.
Assim é Sampa, seu espírito acolhedor/hospitaleiro, ponto de encontro de judeos, arabes, orientais, europeus, nordestinos, etc. Literalmente, cidade de todas as cores e credos!
Sentado a porta do bar saciando a sede com goles de cerveja gelada, a vida é puro espetáculo: casais de namorados (de todas as idades) agarradinhos, embevecidos; mães e babás com carrinhos de bebês; solitários flaneurs: nos olhares, o brilho: impossível ficar indiferente à decoração, as cores berrantes, “papais noéis” com suas capas e gorros que parecem um tanto bizarros no calor tropical; canções de natal executadas por big bands, velhos sucessos de Pat Boone. Nunca pode faltar o indefectível Happy Xmas de Lennon e, claro, a versão da Simone! Certo, é cafona, diriam os vanguardistas! Mas São Paulo é antes de tudo caipira, provinciana! Contudo, cosmopolita, globalizada! Não temos castelos ou palácios imperiais – nos tempos reinóis aqui era simples vila de tropeiros! – nossas construções ‘chiques” são imitações européias! Ah, somos, carcamanos, baianos, japoneses, turcos!

Os saudosistas lembram do tempo em que se sentava nas cadeiras nos terreiros das casas da periferia para prosear; hoje em dia nos sentamos na avenida Paulista e assim o tempo transcorre ou mesmo pàra! O sorriso tranqüilo e benevolente do Zé é nossa cara – quem mais poderia senão um senhor chamado José, o Zé?
O Ser-tão Paulistano tem a cara da editora chefa escritora premiada Fernanda; tem a cara do Giba da Viola, do Ton, de minha comadre Iara lá de Minas, do Joca Ramiro e seu famoso cavalo, o Murzelo Alazão. Mas o Zé é nossa síntese: esteja em sua Paraguassu ou na antesala do governador, é Zé é sempre o Zé. Quem o conhece, sabe do que falo: Zé Maria, a cara do ser-tão!
Um alegre réveillon e saúde e paz para todos no ano vindouro!
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