2MARES, LUZES SOBRE NOSSA HISTÓRIA

O Cd 2Mares, recém lançado por Katya Teixeira e Luiz Salgado é dessas obras que surpreendem a cada audição, capaz de fomentar discussões com desdobramentos surpreendentes. Ocorre que a cumbuca onde eles meteram as mãos – a cultura luso/brasileira – é um manancial cujas dimensões não se consegue ver o fim, mesmo que oficialmente, tanto lá como cá, sejam ignoradas. Mas sabemos que as lendas acabam por sobrepor as verdades e vontades oficiais, e ao fim e ao cabo se impõe; e nossos sotaques – de toda ordem e em todos os campos do conhecimento e da vida - se misturam e se imbricam: basta puxar um fiozinho de meada que o novelo se desdobra fácil.
Carece, entretanto, tanto da parte de nós, público, e dos artistas e pesquisadores, um olhar atento: quem, por exemplo, poderia supor que os moradores do Morro da Conceição, no Rio, foi inicialmente um reduto inteiramente português encravado na cidade? Como era comum na época, os portugueses pobres, em busca de oportunidades de trabalho e de vida, foram para o “morro”, lugar de pobre, de difícil acesso; se misturaram, tornaram-se brasileiros, entretanto, jamais deixaram de ser portugueses. O depoimento e a história dos “últimos velhos” do lugar foi magistralmente registrado pela cineasta Cristiana Grumbach, discípula do mestre Eduardo Coutinho, no imperdível documentário “Morro da Conceição. Quem puder, veja; e mire só a chiqueza: tem legendas em inglês, francês e espanhol! Mas, voltemos ao nosso tema inicial, o 2mares (essa pequena digressão foi apenas para ilustrar o quão rica é essa relação, os dois mares e a ponte entre eles, que somos nós todos!).
Comentar o CD inteiro é muito para o espaço do blog, então menciono aqui duas faixas que se completam: “Meu São Gançalinho” (Katya Teixeira/Luiz Salgado e alguns versos de domínio público) e “São Gonçalo do Brasil – o Santo Que Mudou de Vida” (Kátya Teixeira e Paulo Nunes).
A relação dos brasileiros com os santos de devoção é curiosa, vide “A Permuta dos Santos”, clássico de Edu Lobo, onde os santos de modo geral submetem-se aos caprichos dos fiéis, “recebendo castigos” e reprimendas suaves caso não atendam as preces dos mesmos; dentre os ‘castigos’ comuns está ficar de cabeça para baixo ou ser transportado a uma capela distante; a vida (do santo) só volta ao “normal” depois de atender ao pedido: então volta a ser adorado e os fiéis retomam o seu papel devocional. Interessante é que os fiéis o fazem isso dentro do mesmo espírito de devoção e respeito, sendo tais atitudes apenas uma espécie de reforço no pedido, como se o santo, em meio a tantos deveres e outras promessas, tivesse esquecido daquele em particular; em nenhum momento isso é compreendido como chantagem ou algo parecido (não sei se em Portugal acontece o mesmo. Nosso amigo Alexandre Silva, competente investigador da cultura popular da querida terrinha, talvez nos ajude nesse sentido).
São Gonçalo do Brasil e Meu São Gonçalinho retratam com fidelidade essa relação de devoção, onde os papéis de devoto e santo, de certo modo dialogam e sempre chegam a um bom termo, espécie de amálgama entre o sagrado e o profano. São Gonçalo é aqui louvado, humanizado e divinizado: manteve suas características divinas, porém, frente a novas situações impostas pelo Novo Mundo, adaptou-se com gosto à nova vida e certamente mudou alguns conceitos sobre moral . Ao desembarcar no Brasil, mudou a História e construiu uma nova para si. E, seguramente, se algum dia desembarcar noutras paragens, levará consigo a experiência dos novos ritmos e do colorido alegre de novas danças. Ao que me consta, só na Grécia Antiga os deuses (aqui equiparados aos santos) dialogavam de forma tão aberta com os humanos.
São Gonçalo do Amarante ou São Gonçalinho, é conhecido universalmente (diga-se o universo lusitano brasileiro, mais brasileiro que lusitano) como o protetor dos violeiros. Em Portugal sua imagem é a de um vetusto senhor de roupas pretas, careca, de modos sóbrios, um asceta devoto, ao modo de um beato tradicional. Ao desembarcar nas praias do nosso litoral, deve ter ficado tão deslumbrado e fascinado, que, sem deixar de orar e zelar pelos fiéis, mudou a indumentária: deixou crescer os cabelos, vestiu camisas e calças coloridas e foi tomado de inaudito interesse por um instrumento, muito parecido com alguns existentes em sua terra natal, mas cujo cantar e sonoridade tristonha, naqueles idos tempos não o interessaram tanto: aqui o dito se chamava viola caipira e era usado em muitas ocasiões. A que mais o atraiu foi o seu uso no cateretê, uma dança considerada sagrada, seus praticantes asseguravam que o próprio Jesus gostava. E Gonçalo, sentindo-se perfeitamente à vontade tornou-se freqüentador assíduo das festas e tomando tanto gosto pela viola, tornou-se um exímio violeiro. Conhecendo a realidade das pessoas freqüentadoras dos bailes, decidiu tomar para si uma missão que pode ser considerada complementar ao oficio de outro santo parceiro, Santo Antonio: enquanto aquele cuidava de arranjar casamentos para as moças solteiras jovens, Gonçalo, sem abandonar seu trabalho evangélico e pastoral, tomou para si a missão de casar as solteironas. E piedoso e generoso que era e aproveitando sua habilidade como violeiro, tratava ele mesmo de animar as festas tocando noites inteiras. Como o ambiente dos bailes profanos era algumas vezes freqüentado por moças de, digamos, má fama, diz a lenda que nos bailes que onde ele tocava, lá elas não tinham nem tempo de pensar na profissão, tão empolgadas ficavam, só tratavam de sambar e se divertir. E, algumas, até mudavam de vida...
Seria inexato, no entanto, afirmar que no Novo Mundo São Gonçalo “caiu na gandaia” ou coisa do gênero: continuou tão virtuoso como sempre foi. Sem resvalar em nacionalismos, ufanismos e outros ismos, queremos ressaltar que são coisas deste gênero que fazem eco as afirmações do professor Darci Ribeiro que acreditava ser plenamente possível acreditar que o Brasil tem potencial para pensar grande, por exemplo, uma nova Roma! Modéstia a parte, faço coro, pois nos nossos breves 500 e poucos aninhos de história produzimos algo completamente novo e original; força, pujança e alegria entusiástica: em que outro lugar do universo se conceberia um santo violeiro? Ou uma santa, com atributos, digamos, além de divinos? Refiro-me, respeitosamente, à Iemanjá, cuja aparição nas praias, em magníficas vestes brancas esvoaçantes, provocaria arrebatamentos místicos fervorosos de milhões e outro tanto de suspiros... Olê, Olerê!
Fiquemos, por ora, com a belíssima história que Katya Teixeira, Luiz Salgado e Paulo Nunes, mais uma trupe de músicos de primeira, cantam e contam de maneira admirável. Diria que São Gonçalo é uma ponte segura entre os dois mares, português e brasileiro: luzes sobre a história que não está nos manuais escolares.
MEU SÃO GONÇALINHO (Katya Teixeira e Luiz Salgado. As três ultimas estrofes, assinaladas, são de domínio publico)
Meu São Gonçalo
Que vei lá de Amarante
Minha viola
É de sua devoção
Não tenho ouro
Nem tenho prata nem diamante
O meu tesouro
É a viola na mão
Minha viola
Carrega a função reiseira
Rosa vermeia
De enfeite e proteção
Das minha sina
A viola é a premera
Meu São Gonçalo
Daí-me a sua benção.
Ora vira, ora viva
Meu santin de devoção
Não isquece as muié véia
Qui também tem coração
Preteje as moça pura
E também as que não são
E ao entrar no paraíso
Seje de viola na mão
*Os anjo faz trupe
Quando morre um violero
Esse aí não vai pro céu
Porque foi desordeiro
Arresponde São Gonçalo:
Esse foi meu companheiro
*Quando for pra eu morrer
Quero deixar um aviso
Encorda minha viola
Com as corda que for preciso
Pr’eu com São Gonçalo
E os anjo no paraíso
*Ora e viva ora e viva
Ora e viva, ora e viva
Viva São Gonçalo, viva
Oh, viva São Gonçalo, viva.
SÃO GONÇALO DO BRASIL – O SANTO QUE MUDOU DE VIDA (Paulo Nunes e Katya Teixeira)
São Gonçalo do Amarante
Cansado de tanto frio
Convidou seus bons amigos
Treis Reis Santo e santo Antonio
Empregou-se num navio
Como santo protetor
No alto mar descalçou as botas
Fez Cabral errar de rota
E assim fugiu para o Brasil
São Gonçalo aqui chegou
Já esquecido do frio
E da vida que levou
Chapéu, fitas e uma capa
Mais alegre então vestiu
Jogou sua vara fora
Aprendeu tocar viola
Misturou-se com os índios
No cateretê caiu
Benzadeus a viola, e viva
São Gonçalo do Brasil.
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