O VIOLEIRO

“Passando pelas banda
Do meio do sertão
Passei por Alagoinha
Meu companheiro no volante
Desviano das borboleta
Naquele verdume de mato
Gado mugindo no curral
Nessa estrada chegamo
In Ribeira do Pombal...”

(Luiz Carlos Bahia, “Viajano Cum Xangai”,do CD Pote da Memória)




E assim, relembrando os versos de um dos melhores trabalhos autorais da MPB do século XX, o épico Pote da Memória, de Luiz Carlos Bahia, caminhava pelas ruas do Ser-tão paulistano, precisamente ali pela Barão de Itapetininga...
Em meio à azáfama de tipos humanos, de sons, de aromas – são 1001 atmosferas se entrecruzando – sempre há um tempinho pra refletir, meditar. Assuntar. Refletir.
Pensar o Brasil, que esse país é mesmo um ajuntamento caótico, uma fervura. E não por acaso, estou andando pelo Centrão, cuja mistura aleatória de estilos arquitetônicos (clássico/helenístico/rococó/moderno) confundiu a mente então cartesiana do futuro antropólogo Claude Lévi-Strauss, que em terras brasileiras descobriu sua verdadeira vocação acadêmica, que culminou com a descoberta de uma teoria que viria modificar para sempre o conceito de cultura, o estruturalismo (Levi-Strauss demonstrou que não existe cultura inferior ou superior; que existe uma cultura humana, fundada em estruturas comuns, apesar das incontáveis diferenças). O Brasil, São Paulo em particular sempre desafiou e encantou Lèvi-Strauss.




Lèvi-Strauss nunca refletiu em seus trabalhos sobre o sertão, embora tenha o tenha conhecido. Seus olhar era outro, voltava-se para outros contrastes.Se tivesse debruçado sua atenção sobre esse mundo que aprincipio não passa de uma corruptela da expressão “desertão” teria, talvez, se espantado e igualmente se encantado, pois o “sertão” é único.

O sertão é um enigma. É um lugar? Um estado de espírito? Um jeito de ser?
As palavras e os sons: sertão, ser tão, ser-tão.
O sertão é um enigma que salta aos olhos,  um mundo de mistérios seja o sertão imaginário ou o real, que os cientistas denominam semi árido...
Pensar o Sertão é tão enigmático quanto a palavra que inicia a saga do grande romance brasileiro, “Grande Sertão: Veredas”:  Nonada.
 Mas nonada é a palavra-em-si. Quem convive com os mistérios reais e imaginários dos sertões reais e imaginários, compreende o significado de “nonada” e a primeira regra é: não há explicação lógica ou plausível, nonada é intraduzível e tem a simplicidade de uma pitanga madura. (E os dois pontos colocados logo a seguir  de Grande Sertão, o que realmente querem dizer? Ou: no sertão nada é o que parece;o sertão é semovente, uma dansa. Com S!)
Compreender o “sertão” não é para qualquer um. Mas não é matéria somente para doutos, não é para elitistas; compreender o sertão é para quem está disposto a mergulhar. “Que recolha as asas quem teme a vida”, escreveu o escritor húngaro Gyula Krudy, não por acaso, representante de um idioma que tanto fascinou Guimarães Rosa, que afirmou ser o húngaro a língua ideal para a poesia!)
O sertão está dentro da gente, a frase tão conhecida - repete-se ao longo do livro como um mantra – ajuda a compreender: o sertão é um mundo, está por toda parte, é um jeito de ser, um lugar. Metáfora da vida!

E não é que em meio a esses devaneios, não é que sou assaltado por um som, uma música, coisa tão fenomenal que por um momento julguei estar delirando???

“Sou violeiro caminhando só
Por uma estrada caminhando só
Sou uma estrada procurando só
Levar o povo pra cidade só”
(Sidney Miller, A Estrada e o Violeiro)


Pois bem, acredite quem quiser: e não é que um trinado chamou minha atenção por um instante? Um instante, mas  suficiente para deter a caminhada.
Era um toque de viola, soando cristalino na tarde de sabado. As notas escorriam pelo ar como se resvalassem em cristais invisíveis, ocultos na atmosfera turbulenta da metrópole. Era triste e também alegre. Bonito!
Fui na direção do som e lá estava o violeiro, um senhor já de idade avançada, de posse da violinha caipira. Os dedos rudes desfilavam pelo instrumento com uma inaudita delicadeza, extraindo sons que só um profundo mergulho numa cultura pode ser capaz de captar, de descobrir caminhos e segredos. Mãos calejadas, mãos cevadas na lida, mãos de camponês.

Ao lado as pessoas passavam, a maioria indiferentes; uns poucos detinham o passo apressado um momento atraídos magicamente pelo som, mas algo os arrastava e seguiam em frente: a correria da vida os espera... 
Como eu estava desocupado nessa tarde de sábado que avançava preguiçosamente, fui ficando. O velho violeiro desfilava os clássicos do cancioneiro caipira com autoridade e sem floreios. Tronco ereto, rosto compenetrado, segurava a viola e tocava suas cordas como se pedisse licença à Sua Majestade. A cada musica que finalizava, notava-se a satisfação em seu rosto. Uma senhorinha de sorriso adorável o acompanhava, por vezes cantarolava as musicas mais conhecidas.

Num intervalo fui falar com ele. De nome Marquinhos da Viola, forma dupla com Ana Maria e faz lembrar os inesquecíveis Cascatinha e Nhana.
Senti-me um viajante do Tempo, nos primeiros anos da infância ouvindo a Radio Nacional (predecessora da Globo) com o apresentador Edgard Souza e a cada noite uma dupla ou grupo se apresentava: cartas de ouvintes, anúncios de shows (geralmente em circos), os “reclames”, e musica, muita musica: Tonico & Tinoco, Vieira & Vieirinha, Zilo & Zalo, Leôncio e Leonel, Pedro Bento, Zé da Estrada e Celinho, Tião Carreiro & Pardinho, tantos e tantos outros. Miguel e Aninha, o famoso Duo Glacial. (Sempre me pergunto porque eles eram o “Duo Glacial”. Acho que devem ter gostado do nome, como João do Vale que gostou da expressão “vento norte” e a colocou no seu clássico Asa do Vento “...deu mea noite/ a lua faz um trato/ eu assubo nos ares/ vou brincar no vento leste...” Segundo seu parceiro Luiz Vieira, João não tinha a menos idéia do que seria o “vento leste”... Ou viu um locutor falando da previsão do tempo, mencionou “vento leste”, achou bunito e mandou ver!)
Marquinhos da Viola e Ana Maria devem ter se forjado ouvindo e reouvindo toda essa gente que era o que de melhor poderia existir. Ele não disse expressamente, mas tenho por mim que eles cantam e tocam em homenagem e reverência a esses artistas que, de alguma forma, ajudaram a construir uma identidade nacional. Seu repertório é vastíssimo, dominam uma incrível variedade de estilos e ritmos – cateretê, toada, cururu, moda de viola, rasqueado, etc. Até um catira ensaiaram, mas só valia palmas, não dava o sapateado... Não perguntei (devia tê-lo feito!) se tinham composições próprias. Acredito que não.
Num dado momento, perguntaram se queria ouvir alguma em especial. "Qualquer uma do Tião Carreiro", eu disse e cantaram a clássica Pagode em Brasilia.  Que privilégio o meu!
A pequenina caixa de som só captava o instrumento, de modo que as vozes sumiram, mas foi o bastante para perceber que tocavam com dignidade e respeito pela tradição.

Felizmente tinham CDs para vender. 
Comprei um e me arrependi! Me arrependi de não ter comprado mais para distribuir aos amigos. Disquinho simples, singelo, onde interpretam 12 clássicos do nosso cancioneiro caipira, como Casa de caboclo, Couro de Boi, Tristeza do Jeca, Ultimo Adeus, Chico Mineiro, etc.
Se alguém ver por ai um violeiro de nome Marquinhos da Viola acompanhado de sua prenda, a simpática Ana Maria, por favor, oiçam! É o que de mais autentico pode existir da verdadeira arte popular, nosso maior tesouro musical! São o que de mais genuíno podemos chamar de “músicos amadores”. Amadores no sentido de verdadeiramente apaixonados pela musica. São frutos que ao fim e ao cabo se converteram em verdadeiros troncos, de sólidas raízes. Com eles ocorre a metamorfose: de tão imersos na tradição, acabaram por se converter na própria!

Asseguro e dou fé, conforme escreviam (ou ainda escrevem?) os bacharéis cartoriais das cidadelas do interior do Brasil!
Marquinhos da Viola & Ana Maria tem autoridade. E como eles, devem haver muitos outros. Quem compareceu a alguma das edições do “Caipirapuru”, o festival de viola idealizado pelo violeiro Julio Santin e amigos em  Irapurú, pequena cidade da região do Pontal do Paranapanema, sabe o que quero dizer. Por lá ainda há lares (casas de caboclos!) onde a viola é acessório obrigatório na casa. Da mesma forma que a faca de picar fumo, o café de coador e a broa de milho.

É nossa cultura viva, o que há de melhor em termos de pureza, autenticidade! Garanto e dou fé! E tomo emprestado o que escreveu de Lisboa o meu amigo Alexandre Silva: "Parece sentir-se o prazer da audição desses temas tão únicos e tão intrinsecamente ligados à história e à memória de um povo."
E quem puder, compre o CDzinho deles. Os 10 reais valem demais a pena!




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