“POEIRA DANÇANTE”, DE SOL BUENO



“Poeira Dançante”:  a imagem evoca o interior profundo dos sertões do Brasil. De imediato traz-me  à mente imagens nostálgicas de outros tempos, tempos idos que a modernidade avassaladora assegurou ter ficado para trás, quando os caminhões fizeram desaparecer as boiadas e os carros de bois. “Poeira” , poeticamente falando, nos é possível ao ouvirmos o clássico sertanejo de autoria de Luiz Bonan e Serafim C. Gomes, consagrada pelo Duo Glacial, gravada por muita gente, destacando-se a versão de Pena Branca & Xavantinho – seria a versão definitiva?

“Um  carro de boi lá vai / Gemendo lá no estradão / Suas grandes rodas fazendo / Profundas marcas no chão...”

 “Poeira” é a imagem de um tempo perdido, de um tempo que se foi? Ledo engano. A Poeira da terra é de fragilidade apenas aparente: modernidades vem e vão, como todas as modas. A tradição perpetuada, por mais que a tentem destruir, sempre dá um jeito de renascer, pois suas raízes são profundas, transcendem a alma. “Poeira Dançante” é o título do álbum de estréia da mineira de Pitangui, Sol Bueno.



“Poeira Dançante” – atenção para a imagem roseana, e aqui pediria licença aos guardiães de nossa querida língua portuguesa para escrever dansante. Sim, com “S” e suas sinuosidades, “s” de sensível. “s” de sensual!
Dansa com “s”existiu na cabeça de Guimarães Rosa, que achava o “S” mais adequado para exprimir a liberdade do corpo dansante, ao contrário da quebra de continuidade que o cedilha (Ç) sugere.

Ouvir “Poeira Dançante” e ver o belíssimo tratamento gráfico dado ao encarte, é dar-se conta que é musica para ver e ouvir. Musica e imagem sugerem mais que nostalgia e poesia; as partículas de terra são “sinais” que se seguimos ao embarcarmos e nos embrenharmos pelos sertões mineiros, em busca de um Brasil que muitos julgam desaparecido: é a “Poeira Dançante” dos pés descalços ou de alpercatas de couro, dos pés caminhantes dos andarilhos, dos trabalhadores, dos meninos que caminham longas distancias para chegar à única escola num raio de muitos quilômetros; é a poeira levantada pelos pés dançarinos nos terreiros da aldeia krahö, nos pontos de jongo. Tão tênue quanto os grãos de pó que se ergue é esse Brasil esquecido, mas viçoso e real, vibrante, embebido de suor, repleto de vida e história.





Se se pode dizer de um trabalho que o mesmo é uma extensão da pessoa que o idealiza, que se diga com todas as letras que o trabalho de Sol Bueno é a personificação da pessoa em forma de arte. A cantora, compositora, instrumentista é uma agregadora da arte de viver. Salta aos olhos a naturalidade e singeleza com que desfila suas vivências com os recursos disponíveis – vocais, corporais,técnicos, etc. Para ela, arte não é um fazer, mas um viver; nela arte e modo de viver se confundem,  se imbricam.

Como ela mesma diz num texto de divulgação do trabalho, expressa um sentimento de “poesia necessária”, ou seja, mais que recursos estéticos ou técnica apurada, sua música tem frescor e alegria e justamente por conta disso, carrega toda a força da ancestralidade, sua e de seu povo, do lugar onde nasceu e vive.

O CD compõe-se de 13 canções, 13 símbolos que remetem à paisagens, pessoas, situações triviais da labuta cotidiana e também da poesia com cheiro de flores silvestres, inigualáveis pores de sol. A bússola que a guia aponta para perdidas memórias que ela pressente pulsante nas mais fundas camadas de seu ser e do seu povo. O canto puro, aureolado por violas, rabecas, caixas, tambores, violões que se fundem aos sons de pássaros, dos rios, dos ventos, testemunhos vivos da força pujante do cerrado e da bacia do Velho Chico. História viva.
Que não se enganem com a doçura do canto; é musica forte e densa, inquebrável: uma tremenda força oculta-se em seu corpo e alma de cabocla, de fragilidade apenas aparente, como a densa poeira que sutilmente se impregna.

“(...)
Não se sabe de como sua chegada,
mas o estar ali da borboleta.
Soprava delicadamente nos olhos,
uma doce afronta de querer voar,
de acreditar na dança bailada de quando a
poesia voa das coisas,
da necessidade de arriscar sonhar.
Mesmo que breve, mesmo que pouco,
mesmo que ainda semente,
e ainda asfalto.

(...)

Foi assim, desde o primeiro sopro,
o primeiro casulo, o primeiro pó.
A borboleta no asfalto, poesia do
Improvável, era também eu asas.
Eu coragem.

(...)

Eu memória da terra
eu o vaso grande,
eu escritas de sonho do era guardado em mim.
Eu sino da memória...
acordada de mim.
Eu em todos os outros,
todos de tudo em mim.
Era eu Poeira Dançante.”


(TRECHO de “Canto Leve”, segunda faixa do álbum)


O DISCO

O CD foi produzido através de financiamento coletivo – uma nova modalidade de produção que dá aos artistas e público interessado uma oportunidade de ir à luta. Foram muitas as participações, ela mesma conta:

 “A capa foi feita por meu irmão, Ronaldo Bueno, e por ele conhecer meu amor pelas ervas, assim ele pintou a arte: com café e chás... o CD físico tem também esse cheiro, que a gente pôs de um a um. Amarrado com embira de bananeira. Embrulhado na chita que minha mãe costurou...” 



A direção e produção musical é dela própria e do gaúcho Giancarlo Borba, o “cantor militante”, sobre quem já escrevemos nesse Ser-tão Paulistano. As gravações se deram entre Minas Gerais e Rio Grande do Sul e contaram as participações de Sérgio Pererê, Meninas de Sinhá, Erick Castanho, Letícia Leal, Rodrigo Salvador, Ana F., Gladson Braga e Marcelo Taynara, João Paulo Torres. Participação especial da Dona Bela, já falecida, rainha na guarda de Moçambique. 



As Faixas:

1    Floração Derradeira
2    Canto Leve
3    Sino do Rosário
4    Ladainha do Viver
5    Tribuzana
6    Estação
7    Águas Batuqueiras
8    Ó Deus Salve o Meu Cerrado
9    É de Côco
10 Ori
11 Mbari
12 Debaixo da Meia-Noite
13 Cantiga do Moinho


O disco vem coroar sua militância cultural mais que ativa dessa integrante do Dandô – Circuito de Música Dércio Marques, do qual é Coordenadora em Minas Gerais.
O Projeto Dandô, idealizado por Katya Teixeira, é uma ousada proposta envolvendo artistas de todo país, que já ultrapassa nossas fronteiras, tendo alcançado terras chilenas, uruguaias, argentinas. Brevemente estará desembarcando na Galícia, na Peninsula Ibérica.



A propósito, Sol Bueno estará em São Paulo em agosto, no Instituto Juca de Cultura (IJC), quando teremos oportunidade de conhecê-la ao vivo e adquirir o CD.
Oportunamente o blog divulgará a data exata.



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