O MOSCA BRANCA




Esse disco? É mais fácil você encontrar uma mosca branca!”

Era uma resposta comum destinada aos buscadores de discos raros nos sebos quando iniciei minha prática de rato de sebo ali pelos meados dos inicios dos anos 1980. (O correto é mesmo dizer “o” mosca branca, não “a” mosca branca.) 
Cabe esclarecer que não se trata do inseto de mesmo nome, cientificamente denominado Bemisia Tabaci, que ataca especialmente lavouras de soja. A propósito, o dito cujo, embora seja chamado mosca branca não é da família daquelas que conhecemos ordinariamente.

Quem alguma vez já procurou um disco mais ou menos raro, em qualquer formato (78 rotações, compacto simples ou duplo ou Long Play), conhece o significado da expressão “mosca branca”: a mesma se explica por si. São muitos os discos em vinyl que sequer pude ver, um deles o “Fazenda”, de Vidal França, felizmente relançado em CD. Foram muitos os “moscas brancas” tornado lendários, até os dias de hoje: às vezes foram relançados, mas com capa diferente e de qualidade inferior, tornando o original ainda mais precioso.
Histórias envolvendo colecionadores em geral são sempre muito ricas, quando não bizarras, absurdas, conquanto, sob alguns aspectos, encantadoras e também prova de amor, abnegação, obsessão. Um dos episódios da famosa série produzida para a TV polonesa, o “Decalogo”, do grande diretor Kieslówiski, toma a história da descoberta de uma valiosa coleção de selos (Decálogo X, Não Cobiçarás as Coisas Alheias) e das estripulias de que os envolvidos são capazes num jogo de ganância e cobiça sem limites.





Nos dias de hoje o acesso ao material raro está grandemente facilitado. Por mais raro que seja um disco, em algum lugar do mundo alguém sempre tem a gentileza (ou o orgulho) de postar e disponibilizar publicamente uma obra rara, em detrimento do artista que não ganha um centavo por seu trabalho. Os raríssimos “moscas brancas” perderam um pouco do glamour, mas ainda resta o fetiche de possuir a obra. É o culto a obra em si, a obra física, que guarda em si a “aura” da obra, tal como definiria Walter Benjamin, para quem a obra, uma vez reproduzida em escala industrial, perderia a “aura” (e o que diria ele, se soubesse que nos tempos atuais a obra é convertida num mero link, algo impalpável, virtual?).
Embora não seja um fanático radical na defesa da “aura” da obra de arte musical, compreendo esse ponto de vista. Ter a obra verdadeira em mãos é uma sensação completamente diferente. Ouvir musica pode ser uma experiência, dependendo do quão está impregnado no objeto a energia do autor: existem artistas que executam  cerebral e maquinalmente sua arte e existem aqueles que doam algo a mais, que entregam de corpo e alma algo que só é perceptível quando  existe sintonia entre ouvinte e artista. Nesse caso, a troca envolvida pode ser algo além da experiência de simplesmente executar a música tecnicamente. Será possível essa mesma experiência ser almejada simplesmente acessando o link? Acredito que não, mas nisso não existem afirmações categóricas: a mera lembrança de uma melodia pode evocar sensações inesperadas. O que se sente musicalmente falando só pode ser revelado no momento da execução, por isso a musica, em qualquer tem o estranho poder de emocionar e fascinar; por isso Bach é sempre universal e sempre tem frescor de coisa nova e surpreendente. Talvez por isso, na musica reproduzida, especialmente em escala industrial, algo se dispersa, no que tange a emoção e os sentimentos envolvidos. E não me refiro somente a natural perda que os processos de armazenamento compacto comportam; os deuses da musica podem ser caprichosos e não apreciam ser impunemente subjugados por processos técnicos: aquela ranhura, que detectamos nas peças violonísticas no deslizar dos dedos, aquele imperceptível chiado que se nota nos discos de vinyl e desaparece na reprodução em CD, muito pode revelar da natureza emocional do artista no momento da execução. De tudo isso também é composta a mística da obra de arte, notadamente musical.

UMA HISTÓRIA QUE SÓ ACONTECERIA NUM SEBO:

Não vou contar com requintes de tolo orgulho a experiência de umas poucas aquisições, mas apenas uma breve história capaz de ilustrar algo da loucura e das manias que acometem o espírito dos “caçadores de moscas brancas”, digamos assim.

Estava eu certa vez, lá pelos inícios dos anos 1980, fazendo uma costumeira e descompromissada  visita aos sebos  na região de Pinheiros. Adentrei a uma conhecida loja e de cara vejo exposto, em lugar de destaque, o disco Taperoá, de Vital Farias. Era um desses discos raros, muito comentado e poucos tinham ouvido (lembro-me de certa vez ter ido a casa de uma  colega de faculdade unicamente para ouvir algumas faixas que tinha gravado em fita K7). Ao ver o disco, imediatamente dirigi-me ao mesmo, quando o dono, a quem conhecia de vista foi alertando, com seu conhecido sotaque estrangeiro:

- Esse disco não está a venda! É parte de minha coleção particular!
- Se não está a venda, porque o expõe?
- Este estou mostrando que tenho!

Mal acreditei no que ouvia. E não nego que fiquei com raiva e jurei a mim mesmo que ainda me vingaria daquele sujeito com leve sotaque estrangeiro! Minha intenção inicial era encontrar um LP original em melhores condições – “zerinho” no nosso jargão – passar por lá mostrar para ele, seguido da frase: “Yes, eu também tenho!”

Mas minha tentativa de vingança malogrou completamente, não o encontrei em parte alguma. Mas a possibilidade de vingança surgiu de modo igualmente inesperado. Soube por amigos colecionadores que aquele mesmo vendedor estava com um excelente estoque, e que forças além das conhecidas davam conta que havia posto à venda parte de sua coleção pessoal...

Chegando a sua loja, não deu outra, lá veio ele, o detestado que tinha prazer especial em “humilhar” os não possuidores de raridades. Lá veio:
- Meu amigo! Você chegou na hora certa! Lembra daquele disco do Vital Farias que você queria levar outro dia?
- E que você teve a pachorra de declarar que o expunha apenas para mostrar que tinha?
- Sim, pensei melhor e decidi desfazer-me dele. Afinal, estará em boas mãos, sei que você cuidará dele direitinho... – disse isso retirando-o da prateleira, fazendo gestos automáticos de limpar um pó inexistente. Olhei para o “gringo” e disse a mim mesmo: “É agora que tu me paga!”

Então, sorri, não escondendo uma dose de escárnio e pouco caso e disse a frase fatal:
- Ah, que pena! Adquiri um “zerinho” semana passada! A bem dizer, nem o ouvi direito ainda!

Senti um aperto no coração ao dizer essa mentira. Sabia que estava renunciando a posse de um dos discos mais buscados por colecionadores amadores, como no meu caso. Abateu-me o peso descomunal de que poderia acontecer de nunca mais ter a chance  de ter aquele disco! Mas a breve, singular satisfação de ver a decepção no rosto do gringo  valeu todo o risco. Dei uma olhadinha displicente em outros discos, denotando uma crucial indiferença e mesmo desinteresse. Dei tchauzinho e arremeti do lugar, maldizendo a mim mesmo e meu tolo orgulho. Aliviava-me, contudo, o estranho prazer de ter ensinado àquele gringo que não se brinca com o desejo dos outros.

Felizmente, alguns anos depois adquiri o disco, cuja foto reproduzo abaixo:




E fica o consolo de saber que o tolo orgulho – dele, vendedor, e meu comprador – não teve conseqüências por demais desagradáveis. Felizmente não nos arrependemos amargamente por causa de uma bobagem! Eu acabei por encontrar e desfrutar a arte de Vital num Taperoá em excelentes condições, ele certamente fez a alegria de um felizardo, fazendo a felicidade geral da nação brasileira, um povo que decididamente é musical.
Não posso afirmar que somos o povo mais musical da terra – seria uma bravata desnecessária! Mas gostamos de música, mais do que de futebol! Afinal, de musica mantemos sempre o alto nível. Já o futebol...
Falar nisso: que indiferença brutal sinto nas ruas pela Copa da Russia que começa amanhã.




Alguns sebos musicais em São Paulo:

Eric Discos
R. Artur de Azevedo, 1813 – Pinheiros

Ventania Discos
Rua 24 de Maio, 188 117, Em Centro, em São Paulo

Sebo Sem Nome
Av São João 569, Centro

Sebo do Messias
Praça João Mendes, 140

Sebo Liberdade
Praça carlos Gomes, 124 – Liberdade


Tem mais, muito mais e na internet encontram-se inúmeros endereços. Citei somente alguns e que vendem discos/LPs

Breve explicação para o significado da palavra Sebo:

refere-se a livros usados. Antigamente, mas bem antigamente mesmo, quando inexistia luz elétrica, as pessoas liam à luz de vela, que eram feitas de "sebo" de origem animal. Consequentemente, o ambiente fumacento se tornava "sebento", daí se chamar a loja de livros usados, já lidos por outrem, de Sebo.

O equivalente do termo Sebo em Portugal é Alfarrábio. No caso, é uma alteração do nome do filósofo muçulmano, do Turquestão, Al-Farrabi (nome completo Abü Nascr Muhamad ibn Muhamad Färäbi). Uma justa homenagem para esse estudioso de Platão e Aristóteles, e que também era músico.
Não se sabe exatamente porquê, a designação "alfarrábio" assim expressa em bom português, significa  livro grande e velho. Mistérios e viva demonstração da força viva e mutante da lingua. (Informação cedida por nosso amigo Alexandre Silva, nosso seguro informante das coisas que envolvem a cultura da nossa terrinha lusa, a pátria-Mãe!)



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