A QUARENTENA, O MUNDO JAMAIS SERÁ O MESMO






O blog ser-tao paulistano abre uma exceção nesse espaço onde durante anos nos dedicamos a falar de cultura. Cultura paulista, brasileira, mas sempre recebendo manifestações populares/culturais, venha de onde vier:  Afinal, o valor da Arte está justamente na sua capacidade de ser o ponto de intersecção entre os grupos humanos.

Estamos vivendo uma “quarentena”, fenômeno muito pouco comum entre nós. Na verdade, pouco comum na história recente  do mundo. O termo “quarentena” era algo que eu só conhecia na literatura, curiosamente nas obras de dois autores franceses: Albert Camus, autor de A Peste e Jean Marie Gustave Le Clezio, que escreveu A Quarentena. Ambos descrevem dois lugares, num caso uma cidade inteira, no outro um barco com passageiros, isolado numa ilha durante uma epidemia. Ambas as histórias, escritas por dois laureados ambos com o Premio Nobel, por mais pungentes e realistas que sejam, falam de algo que acontece “distante de nós”. Até hoje, epidemias de verdade, que ameaçasse o planeta como um todo, era-nos algo fora de cogitação, por mais dramático que fosse. Soubemos da epidemia do ebola, que até hoje em dia assoma países da Africa, mas..., restrito à Africa e no máximo, lamentávamos a triste sorte de quem foi vitima dessa doença terrível e impiedosa!

A História nos faz lembrar  da peste negra, flagelo mortífero que dizimou 1/3 da população européia. Mas..., a exemplo da Africa, aconteceu muito longe de nós, desta feita no tempo: séculos atrás. A última grande epidemia foi a gripe espanhola, um século atrás, também distante!
Epidemias sempre nos surgem, sazonais, locais, a quem damos o nome de surto epidêmico. Tivemos por aqui, entre nós, epidemias, contudo sendo a maioria fruto do descaso das nossas autoridades sanitárias: sarampo, tifo, meningite (que o governo militar tentou esconder da população) dengue, chikungunha, sarampo, e muitas outras, grande parte moldadas sob o rótulo de doença de país pobre, que obtém do mundo, na maior parte das vezes, apenas um olhar piedoso. Ou indiferente!...
No entanto, sofrimento em larga escala, atingindo populações inteiras, são comuns entre nós desde que o Brasil é o Brasil. O flagelo da seca no nordeste se exibe aos olhos do mundo desde sempre. Tema para romancistas,  desde Raquel de Queiroz, passando por Graciliano Ramos, Jorge Amado, etc.;  poetas como João Cabral de Melo neto e “Morte e Vida Severina”; estudos acadêmicos, sendo o mais conhecido, Euclides da Cunha e seu clássico “Os Sertões”. Vale citar a obra de José Calazans, que desvendou Canudos muito além da pena brilhante e eloquente de Euclides. Até as populares novelas de televisão visitaram o tema da seca, como nos primeiros capítulos de “Gabriela”, mostrando a protagonista numa caravana de retirantes, fugindo da seca.

Mas é na música que o tema da seca está mais ao nosso alcance e onde de facto alça dimensões que outros meios não conseguem. João Pernambuco se serve do sertão como tema, o próprio Villa-Lobos, sem falar em Luiz Gonzaga, o mais evidente e conhecido de todos. Até mesmo Elomar, que decididamente não gosta de tratar de dramas coletivos, preferindo em suas narrativas épicas tratar das “...vicissitudes do homem solitário”, em algumas de suas peças recorre ao secular drama da seca. (A seca é algo tão sério que tem até um  departamento federal especializado, o DNOCS - Departamento Nacional de Obras Contra a Seca, fundado em 1909 e que não é famoso pela eficiência, e sim por atender antes de tudo, interesses políticos e dos “coronéis” regionais).

DUAS cenas Elomarianas:
Na música (o autor prefere o termo Ária’) “Puluxia Estradeira”, que faz parte da Ópera “O Tropeiro Gonzalin”, infelizmente nunca gravada na íntegra, sendo algumas de suas peças/árias espalhadas por alguns de seus discos solos, lá pelas tantas, canta:

“...Gonzalin era um tropêro qui passô a vida andano
De janêro a janêro caminhava todo ano
Dêrna (desde)  que perdeu seu pai na fome do novetinha...”   
(Do album Na Quadrada das Aguas Perdidas, 1978. Também foi gravada por Xangai no disco Xangai Canta Elomar, selo Kuarup)




O “novetinha" referido é da terrívlel sêca que assolou o nordeste na virada do século, em 1899, que persiste até o dia de hoje na memória sertaneja. Meu pai, um sertanejo pernambucano (Floresta do Novio) que nasceu 11 anos depois, em 1910, referia-se ao “noventinha” com temor e respeito. Costumava me contar que conheceu muitos sobreviventes da terrível seca que matou muita gente e muito bicho de fome e sede.

Outra referencia Elomariana está na canção (ária) “Incelença Pra Terra Que o Sol Matou”, originalmente no álbum Fantasia Leiga Para Um Rio Seco (1981), gravado com Orquestra Filarmonica da Bahia, sob a regência do Maestro Lindenbergue Cardoso. Também presente no disco “Consertão”, álbum duplo gravado em parceria com Arthur  Moreira Lima, Heraldo do Monte e Paulo Moura.  A “Incelença” narra uma típica cena catingueira, que se explica por si:

“Levanto meus olhos
Pela terra seca
Só vejo a tristeza
Qui disolação...”



Enfim, os flagelados pela seca, das desolações, seja no sertão catingueiro do Nordeste secular (que também inspirou Ariano Suassuna e o Quinteto Armorial) ou  nos os sertões de Minas (especialmente  Urucuia e Jequitinhonha), sempre estão presente na imaginação de nossos artistas. Seja na forma lírica do violeiro Paulo Freire (“Sêca”, do seu disco de estréia “Rio Abaixo Viola Brasileira”) ou no protesto incisivo e contundente no menestrel Roberto Bach, como na obra baseada em Euclides da Cunha ou “Terra”, uma homenagem a Glauber Rocha.

 NOS TORNAMOS FLAGELADOS DO MEDO

Os flagelos da seca, como outros que atingem milhões de pobres em todo o mundo, em todas as épocas, seja na forma de doenças, guerras ou meramente como conseqüência de desigualdades sociais, sempre esteve presente na história humana, contudo, geralmente chama atenção a grupos restritos, circulo reduzido de pessoas, sem nenhuma comoção mundial.
O coronavírus mudou tudo isso. Quem diria, uma forma muito primitiva de vida – se é que seja vida! -  no espaço reduzido de alguns meses, pela primeira vez na história tornou latente a fragilidade humana e uniu nossa espécie de forma total: Nem nas guerras, tampouco nas grandes catástrofes naturais (terremotos, tsunamis, etc.) , nunca a existência humana esteve em tal grau de fatalidade iminente. Ninguém está totalmente seguro, pouco importa a raça, credo religioso ou classe social, todos oscilam entregues à própria sorte, sob o mesmo jugo do inimigo fatal e invisível.
A epidemia causada por um vírus, procedente da China, mas de desenvolvimento ainda difuso. Dizem, grosso modo, que o tal era comum a cães e gatos, mas que em contato com o ser humano teria sofrido mutações descontroladas. Propagou muito rapidamente, pois o contágio é facilitado na concentração de pessoas. A quarentena é conseqüência de não existir cura e enquanto a mesma não vem – apesar do esforço concentrado de cientistas por todo o mundo.

É o evento mais marcante dos últimos 100 anos. A epidemia não apenas marca uma geração, mas forja outra maneira de se situar no mundo: nunca fomos ameaçados tão diretamente. Não me refiro ao numero de vitimas – as guerras armadas matam mais, o transito mata,  fome mata. O problema é que o Coronavirus se espalha rápido e não tem cura, por enquanto e mesmo as formas de evitar são protocolos pouco seguros. A epidemia cresce à proporção do medo e da necessidade do isolamento. O isolamento forçado exerce sobre nós tremenda influência que hoje é impossível auferir com segurança. Durante o mesmo, toda a nossa vivência é calcada em recriações imaginárias, que realizamos seja do passado recém vivido, seja do futuro por vir. 
No isolamento nos deparamos conosco mesmos, somos forçados a “mediar”: mediação que protelamos por longo tempo, seja com nosso próximo ou com a natureza, pois sempre  tínhamos pronta uma justificativa para não parar, refletir.
E agora, de uma hora para outra, descobrimos que não temos para onde fugir. De repente, alheio à nossa vontade, somos obrigados a ficar confinados, realizando e consumindo apenas o essencial para a sobrevivência. Caos econômico, caos existencial. O ser humano que durante os últimos séculos foi instado a consumir, desta feita foi obrigado a fazer o caminho inverso. A sociedade moderna não estava  preparada para abrir mão de coisas e de direitos.

O que podemos dimensionar, frouxa e precariamente, à guisa de tema para discussão, é que toda crise, em qualquer campo de atividade, traz consigo a possibilidade de mudança. Mudança de hábitos, de costumes, de paradigmas. Durante as crises geralmente descobrimos que nenhuma verdade é insofismável;  toda certeza e toda segurança ruíram quando se descobriu que nem tudo depende unicamente de nossa de vontade e mérito: a liberdade de escolha pode nos ser tolhida a qualquer momento, por fatores alheios à nossa vontade! O preço da liberdade é a eterna vigilância? E quando sentimos na alma e na pele que nem nossa vigilância, transitória ou duradoura, pode ser capaz de salvaguardar a preciosa liberdade? Para tal, teremos de descobrir o outro!

O SERTÃO POR TODA PARTE

O sertão é uma metáfora. Falo do sertão de Guimarães Rosa. Nós, do blog ser-tão paulistano, acostumados desde sempre a vagar por essa cidade de São Paulo, terra de tropeiros e viajantes por excelência. Nós paulistanos, naturais ou por adoção, gostamos de andar a esmo descobrindo seus encantos e peculiaridades. E, de repente fomos proibidos de flanar por aí. Se serve de consolo, é assim por toda a parte, praticamente pelo mundo inteiro, pois o tal vírus fatal não se faz de rogado e se mete onde não é chamado e tem a mania de se adaptar facilmente a qualquer situação: não tem preferência ideológica, nem por sexo, nem por classe social, nem por clima.

A Redação do Ser-tão Paulistano, sob a segura direção da Fernanda, se alvoroçou: Sem shows, nem exposições, nem botecos para jogar conversa fora, nem o chopp com amigos no fim de tarde? Mas como?!
Sem chance:  A ordem vinha das instancias superiores, de  autoridades dos mais altos calibres, e foi clara: Zé Maria (alcunhado Guru do Ser-tão), Giba da Viola, Fernanda de Aragão Y Ramirez (a lenda viva do ser-tão) e Joca Ramiro (andarilho por natureza!) a ordem seca: Nada de bater perna! Vão pra casa e se comportem! Usem a imaginação para viajar pelo mundo. Todo mundo entocado, até segundas ordens!

A VOLTA DE ZÉ MANGABEIRA

Recebi dia  uma mensagem de meu amigo Zé Mangabeira, convocando-me às pressas para uma importante arreunião. Zé mangabeira, para quem não o conhece, é um velho conhecido nosso, já tendo participado de algumas aventuras.

Ele faz questão de lembrar que não tem nada a ver com outro Mangabeira, professor de Harward – aliás, nosso Zé Mangabeira  garante que esse é um impostor, pois usa o nome Mangabeira  para auferir prestigio.!Mangabeira”, ele faz questão de dizer, “só existe UM, eu, herdeiro do trono da Família Real Brasileira!” Ah, sim, ele se diz verdadeiro herdeiro do trono brasileiro, que lhe foi tomado por aqueles lá, os Bragança! Mas um dia, garante, ele retornará glorioso. Montado em cavalo branco ou num motorizado Mustang, pouco importa! Desde sempre ele me nomeou seu Assessor Para Assuntos Diversos e Aleatórios, função que aceito meio relutante. Fora seus delírios de poder, Zé Mangabeira é um sábio, a quem costumo consultar sobre os mais variados assuntos.
E como estava curioso para saber o que pensava sobre esse tal de Coronavirús, lá fui eu! Tive de contornar  a severa vigilância (não posso contar como, por razões de segurança) e assim, fui parar num começo de noite numa casinha simples, em rua sem asfalto, num bairro distante da periferia paulistana.

Chegando e ultrapassando o portão, dei de cara com outro portãozinho, na entrada da varanda. Zé Mangabeira pôs a cara numa janelinha e orientou-me:
- Meu nobre e fiel assessor para assuntos diversos e aleatórios! Seguindo as normas de segurança, deixe seu par de sapatos aí do lado e calce as sandálias que estão separadas pra ti! Em seguida, tire as roupas e coloque esse roupão dependurado num prego aí!...
- Quer dizer que... tu quer que eu tire a roupa? Toda ela? Quer que eu fique nu, aqui, aos olhos do povo que passa na rua?!
- Dexe de bestage, homem, que é noite, a rua é mal iluminada e despois, tua nudez há tempos deixou de causar alvoroços! No máximo causaria risos!
Pensei em respostar à altura esse atrevimento do Zé, mas o homem se diz Prinspe! E com Prinspes não se questiona, pois tem o dom da palavra real! Isto é, o que dizem passa a ser “realidade”. Por isso são chamados Sua Alteza Real. Assenti as regras da casa, afinal, ele estava certo em seguir as recomendações sanitárias, pois mais que muita gente não concorde. Ele é Principe e o tal vírus não respeita Reis ou Prinspes!

Entrei na casa, casinha simples, adornada por pouquíssimos utensílios e outro espanto: Zé mangabeira  cumprimentou-me oferecendo o cotovelo para que eu o tocasse igualmente com o meu! Nada de abraços ou apertos de mão! Puxa, Zé Mangabeira estava mesmo levando a sério esse negócio. Notando meu olhar para a pobreza do ambiente, ele tratou de explicar:
- Estou aqui disfarçado de pobre, meu caro assessor! Preferi deixar meu Palácio acomodando umas pobres famílias que foram despejadas por conta de não pagarem o aluguel, sabe como é... Então vim pra essa casinha, onde ninguém me conhece! Bom, vamos ao que interessa! – disse, apontando-me a única cadeira da sala.
- Não, sente-se Vossa Alteza, eu sou apenas um...
- Nada disso, a você, meu fiel assessor, cabe o conforto. Está cansado da longa caminhada. Bom, te chamei aqui porque tenho uma estratégia para deter esse monstro que ameaça o mundo! Como tu sabes, cabe aos Prinspes defender o povo. Chamei-te aqui porque preciso de vossa valiosa opinião...
- Meu Prinspe, isso é assunto para tratar com os sábios do Reino, com os cientistas...
- Tenho na minha equipe os melhores, não se avexe!...
- Então?...
-Olhe, meu assessor para assuntos diversos e aleatórios! Esse tal de Corona não me engana! Ele é um salafrário torpe, mal afamado vilão, que tem pretensões de se tornar Rei do mundo! Isso mesmo! O safado quer fazer o que nenhum Império da Antiguidade ousou! Nem Alexandre, nem Gengis Khan, nem Kubai Khan! Nem o Imperio Romano, com toda a sua magnitude ousou! Sem falar nos Imperios de Nossa Era, muito menos os Faraós, os Czares ou os modernos Impérios capitalistas!

Eu o ouvia intrigado, sem saber até onde ele iria. Fez-me um discreto sinal, pedindo-me para acompanhá-lo casinha adentro. Contiguo à humilde cozinha tinha um quartinho, guardado por um velho cadeado e um pedaço de corrente meio enferrujada. Ele abriu com uma velha chave, mas eu estava certo de que a chave era desnecessária... Acendeu uma lampadazinha:
- A pouca luz é por motivos óbvios. Sabe como é, o segredo! Aqui, meu assessor, é minha Sala de Armas! É daqui que combaterei o Monstro do Corona! – E dentro do pequenino quarto, menos de três metros de uma parede a outra, pendurado nas paredes e espalhadas pelo chão, toda sorte de armas velhas: garruchas, clavinotes, mosquetões, chumbeiras de carregar pela boca, cartucheiras, punhais, adagas, canivetes, peixeiras, facões, etc., a maioria coberto de ferrugem.  Ante minha estupefação, ele prosseguiu:
- O tal Covid, é um dissimulado! Mas ele que apareça no nosso ser-tão! Enfrento-o  na bala ou na faca! E a razão que te chamo aqui é que... dada a urgência e extrema  necessidade da nossa missão, te convoco para ser o meu chefe de operações!
- Mas eu sou um pacifista!
- É uma batalha pela paz! Tu não deve se furtar ao justo dever!
- Espere um pouco, Prinspe Herdeiro! Se Vossa Alteza está seguro e certo de que se trata de um combate de ordem militar, porque então essa operação de assepsia, a entrada de Vossa moradia?
- Protocolo, meu assessor Especial. Foi estabelecido um protocolo pelas autoridades sanitárias e como bom cidadão, cabe-me cumprir o dever! Dever de cidadão, levar em conta o interesse coletivo! Um Prinspe deve dar o exemplo... Mas, cá entre nós, a você, meu assessor especial, posso revelar. Seguro morreu de velho e eu não nasci ontem! Sei que esse cabra, esse Covid covardão, às vezes se disfarça e pode tentar entrar sorrateiramente em minha Casa Forte. Se se meter por aqui, vai se dar mal, pois estou é preparado! Aciono minha armadilha secreta e o afogo em álcool gel!

Nisso, Zé Mangabeira olha o relógio:

- Pausa agora na discussão. Vamos acompanhar pela internet, a Quarentena Violada! Tu sabes, não é? Os violeiros são meus aliados e graças à minha influência de Prinspe, tivemos essa magna idéia! Violadas pela Internet! Eh, meu assessor! Vou providenciar uma Comenda pra EU MESMO!




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