
Com as mãos trêmulas – era um disco famoso, que todos comentavam e ninguém o tinha, poucos tinham ouvido – coloquei na minha velha vitrola e me deleitei com verdadeiros tesouros de nossa música: Natureza, toada brejeira de Dino Franco [tem cd aqui], com a famosa Orquestra de Violeiros de Osasco; Arrumação, de Elomar; uma magnífica versão de Tonta (Companheiro, me ajude/ Eu não posso cantar só!/ Eu sozinho canto bem, com você canto mió...), de “seo” Chico de Ubatuba; Leito do Gavião, impressionante introdução para Chula no Terreiro, também de Elomar; as cantigas infantis Era Uma Vez e entre outras obras primas, uma dolente cançoneta que soava perfeita na voz no eterno-menino Dércio: Cantiga de Embalar, de um misterioso – para mim – compositor português de nome José Afonso.
A muito custo encontrei num sebo o LP Que Venham Mais Cinco, em muito bom estado, ao mesmo tempo em que encontrava pessoas que sabiam algo dele... Qual não foi meu espanto quando descobri que aquela voz doce e frágil pertencia a um ativo e – de certo modo – incendiário simpatizante do PCP (Partido Comunista Português). Era oficialmente apenas “simpatizante”, pois nunca quis se filiar, ao contrário do amigo também cantor e compositor Adriano Correia de Oliveira.) Os comunistas brasileiros falavam dele com reverencia e respeito – na música Alípio de Freitas ele fez uma única referencia ao Brasil, às Ligas Camponesas e ao líder Francisco Julião.... Meu amigo e colega universitário, grande colecionador de música de todos os gêneros, o Agnaldo Mori, ex-militante do Partidão, dizia com orgulho que eu precisava algum dia ouvir Vila Morena, a música que foi escolhida como senha para os tanques do exército português saírem às ruas, aos 20 minutos do distante 25 de abril de 1974.... (Por essa época, eu e meus pais deixávamos o sertão caipira, lá no Pontal, para nos aventurarmos no sertão paulistano, onde mil aventuras me aguardavam, montado na sela do meu Murzelo Alazão, anos depois...)
A música desse português, José Afonso, o Zeca, é assim, capaz de embalar crianças de colo e também fazer tanques de guerra rolarem pelas ruas e derrubar ditaduras. Tem um caráter universal e talvez por isso ressoa tão bem nos sertões de nossas almas e por muitos outros rincões. Por toda parte, onde exista opressão, lá está a música e a atitude do Zeca, inquietando, mesmo 20 anos depois de seu desaparecimento físico. Existe entre sua obra e a cultura brasileira algo que soa além dos lugares-comuns, dos clichês tipo país-irmão, língua-madre, essas coisas. Era um artista que não negava suas origens ibéricas e igualmente mergulhava fundo nos ritmos africanos e tinha um olhar e ouvidos argutos, sempre buscando ver algo novo no horizonte tanto em termos musicais como a valoração da Fraternidade entre os povos, na qual ele acreditava piamente.
A disseminação da técnica permite-nos hoje em dia ter acesso a quase totalidade de sua obra. Entre a avassaladora quantidade de informações atualmente à nossa disposição, vale a pena debruçarmos-nos um pouco sobre sua obra. Katya Teixeira gravou Alegria da Criação e Adeus Ó Serra da Lapa no seu segundo CD, o Lira do Povo. Recentemente tive o privilégio de vê-la cantar lá no SESC Santana, dentro do projeto “Feitas Por Nós”, As Sete Mulheres do Minho, com singela energia e beleza que certamente obteria a aprovação do Zeca, auto-acompanhada de viola-de-cocho – um instrumento que um amigo português, o Alexandre, jura ser de origem portuguesa, pois, segundo ele, tem afinação semelhante à viola braguesa.
Violas-de-cocho, violas-braguesas, fados, modinhas, lundus, rimances ou romances medievais: A Nau Catarineta, versos recolhidos por Suassuna [livros aqui] no nordeste e que Antonio Nóbrega brilhantemente musicou e gravou, tem suas origens na região do Algarve. Senhora Rainha, bela e vigorosa gravação do Lira do Povo, com Kátya e mestre Zé da Ernestina, igualmente tem ecos lusitanos. Outros exemplos se multiplicam, como a gravação de Ana Salvagni para Macelada... Nosso abraço, portanto, aos caros murrugas, ao português da padaria do Zeca Baleiro, que nos ajudaram em algo mais que a simples transplantação da língua: sua cultura igualmente mestiça – mouros, judeus, etc. – por aqui encontrou eco e solo fértil nos nossos sertões....
Veja os vídeos abaixo, graças ao gênio de nossa Editora-Chefa, mestra nesses mistérios enfeitiçantes da técnica. Quem desejar saber e ver mais, é só clicar no link: http://delta02.blog.simplesnet.pt/ onde se pode acessar um rico material sobre o Zeca....
Canção de Embalar (José Afonso)
A morte saiu à rua (José Afonso)