APELIDOS DA CACHAÇA

Em qualquer tempo ou lugar, seja entre a gente simples ou nas rodas de acadêmicos, ao se indagar qual a bebida brasileira por excelência, mesmo sem mencionar as alcunhas mais conhecidas – pinga, cachaça – imediatamente virá à cabeça de todos do que se trata: água que passarinho não bebe, branquinha e por aí vai. Que seja com conotação irônica ou agressiva, os apelidos repletos de dissimulação, é a cachaça, presente na vida de muitos seja de maneira trágica outras cômicas, ou como simples elemento de sociabilidade: seja no frio ou no calor, há pretexto para um gole; como estimulante de apetite, estímulo de coragem para os indecisos e até mesmo uso medicinal – quem já não ouviu dizer que um golezinho limpa a garganta ou cura rouquidão? Verdade ou não, pouco importa.
Subproduto da industria canavieira, consumida por séculos entre escravos e a população pobre, a preferência por seu consumo atravessou séculos – Colônia, Imperio, República. (Seria a cachaça a bebida da integração nacional, em vez da burguesia portuguesa na figura do Marquês de Pombal?).
Ao longo de muito tempo cachaça e cachaceiro foram sinônimos pejorativos, equivalente à degradação física e moral, quase um insulto. Porém, as referências à cachaça são muito antigas e ao que parece, existia, aparentemente um componente de nobreza como pano de fundo. De acordo com o folclorista Câmara Cascudo, a mais antiga menção com esse nome está na Carta II, que Sá Miranda dedicou ao seu amigo Antonio Pereira, ao elogiar a fartura de suas quintas:
Ali não mordia a graça
Eram iguais os juízes;
Não vinha nada da praça
Ali, da vossa Cachaça
Ali, das vossas perdizes!
(Provavelmente, a cachaça aqui designada não seja a bebida propriamente dita, nem mesmo creio que se refira à bagaceira, a aguardente portuguesa. Não consigo imaginar uma razão para o nome, talvez um termo popular para referir-se ao prazer de beber, etc. Esperemos que nossos amigos portugueses nos possam socorrer...)
Notícias do fabrico da Cachaça remontam a província portuguesa do Minho em princípios do seculo XVI, porém, não se tratava do destilado de cana-de-açucar e sim de resíduos de uvas pisadas. Os letrados vindo para o Brasil, recusavam-se a usar o termo, registrando-se sempre aguardente. Somente em 1873, no compêndio Tesouro da Lingua Portuguesa, Domingos Vieira grafou o termo Cachaça do Brasil (informes colhidos do livro Prelúdio da Cachaça, de Câmara Cascudo, obra que deve ter ajudado a tirar do limbo a cachaça, alçando-a ao patamar de bebida nacional por excelência). Auguste Saint Hilaire, o viajante que percorreu o Brasil de ponta a ponta, a qualificou como “a aguardente do do país”, como a vodca é para os russos, o conhaque para os franceses ou o uísque para os escoceses. Escreveu mais Câmara Cascudo: “...o brasileiro é devoto da cachaça mas não é cachaceiro”, observando que seu consumo não leva necessariamente à embriaguês. Contudo, nos nossos dias, a cachaça, embora aceita nas mais requintadas mesas, ainda possui um caráter, digamos secreto, e muitas vezes ao referir-se à mesma, seus consumidores, a exemplo das confrarias de iniciados, utilizem apelidos à guisa de código. Carinhosos, agressivos, cúmplices, de conotações das mais variadas.
A professora Maria Matilde Mariano pesquisou e escreveu um cordel contendo os mais variados apelidos em muitos lugares do território brasileiro, dos quais transcrevo uma pequena parte, abaixo:
APELIDOS DA CACHAÇA, por Maria Matilde (trecho):
Agora eu vou contar
Da bebida conhecida
Que tem muitos apelidos
É a cachaça querida
O povo bebe contente
Feita especialmente
Ypióca a mais pedida
Acaba tosse, água forte
Africana, arruaceira
Atitude, água maluca
Afiada, alertadeira
Alerta espríto , aguada
A que matou o guarda
Aquarela assombradeira
Acaba festa, azinhavre
Amansa sogra, arrupiada
Asiática, alma de gato
Acalma velho, azougada
Água de milícia, atebrina
Acorda anjo, aspirina
Água de coco, afamada
Bambidula, bota fora
Berdoega, bimbarrada
Birita, bisnaga, boneca
Bote um negócio, bribada
Briosa, bruta, bichinha
Bote uma, bolachinha
Briga de vizinho, bimbada.
(...)
Assim segue, não creio que a professora tenha pesquisado e encontrado todos, é provável que a cada dia se invente nova terminologia, a criatividade de seus admiradores e consumidores é infinita. Lembro-me da infância, de um velho lavrador, sujeito espigado e elegante, sempre bem barbeado, mesmo no eito. Gostava de pinga, mas recusava-se a tomá-la estando “de qualquer jeito.” Então, perfumado e vestindo a melhor roupa – tal qual fosse à missa! – dirigia-se à vendinha localizada na beira da estrada, entre as fazendas do Juriti e São Bento (onde morávamos) e os muitos pequenos sítios que abundavam a região. Lá chegando, dirigia-se ao dono do boteco e pedia solenemente: “Sirva-me, Vossa Senhoria, uma exata dose de “mamãe-sacode”, aquela!” Não era nenhuma marca especial: podia ser Tatuzinho, 3 Fazendas, as marcas mais comuns de então. Seu João, naturalmente era por todos denominado Mamãe Sacode, às suas costas, naturalmente!
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