JUCA DA ANGÉLICA, TRIO JOSÉ E A AFIRMAÇÃO DA POESIA

Há muito se ouve dizer que a poesia e a literatura oral tendem a desaparecer com a passar dos tempos e o avanço inexorável dos “aparelhos” na vida das pessoas, que cada vez mais rapidamente alcança os mais recônditos rincões; muito se fala disso, da predominância do “aparelho” sobre o homem: entenda-se como aparelho qualquer forma de instrumento que tenha como função auxiliar o ser humano, mas que aos poucos o torna dependente e num extremo, numa total inversão de valores, o transforma - o homem - numa espécie de escravo. É intrigante, irônica e – por que não?, reveladora, a afirmação do filósofo Vilém Flusser sobre o assunto: “...quando vejo um fotografo munido de um aparelho. Melhor dizendo, um aparelho munido de um fotografo. (Para o autor, a escolha livre do fotógrafo é uma ilusão, pois ele só pode fotografar o "fotografável", as determinantes influenciadas pelo calor, pela luz, pelo clima, cores, etc. O fotógrafo apenas "registra" a cena e não o processo, que é determinado pela máquina e por toda a cadeia existente por trás dela.)...”
Devo dizer que de minha parte não acredito nisso, na predominância da máquina sobre o homem, por mais que o sedentarismo o afaste do contato com a natureza. Conseqüentemente, também não acredito no fim da poesia e da literatura oral, pois se as mesmas acabarem, com elas se acaba a humanidade.
Isso porque a poesia é parte da natureza humana, antecede a consciência e inevitavelmente todo ser humano viveu, conscientemente ou não, a experiência da linguagem simbólica, mesmo que depois tenha sido substituída pela linguagem racional até o encobrimento quase total da linguagem ancestral; digo “quase” porque na verdade essa forma de linguagem não desapareceu, apenas ficou adormecida e tende a reaparecimentos esporádicos, com intensidades e freqüências variadas. No ser humano, a experiência poética se revela de inúmeras maneiras, seja como forma direta de expressão ou na simples contemplação: em qualquer dos casos predomina o exercício da sensibilidade poética, a nós inerente.
PUISIA
Ouvir o disco Puisia , do grupo paulista Trio José, baseado na poesia oral do mineiro Juca da Angélica é a prova inconteste da perenidade e imortalidade dessa arte cuja função excede o simples entretenimento. A poesia do mestre de 96 anos veio a lume graças ao trabalho solitário e quase quixotesco do poeta Paulo César Nunes, outro mineiro, radicado em São Paulo, que a muito custo transcreveu as formas poéticas do linguajar sertanejo até então restritas aos felizardos moradores do pequeno município de Lagoa Formosa, onde seu Juca vive até hoje na casa que ele mesmo construiu. Diga-se que Paulo Nunes registrou no livro “Meu Canto É Saudade” apenas uma pequena parte do imenso acervo poético de seu Juca, até então registrado unicamente em sua impressionante memória. “Ser poeta” para seu Juca é um ofício, uma função social, assim como participar das festas e “ofícios” religiosos. Sua poesia, portanto, não é algo apartado de si, é absolutamente impregnada do seu cotidiano: como disse certo dia o Paulo sobre o Juca e sua poesia, “...se o Juca pede um copo de água ou dá bom dia, soa como poesia!”
O CD, os arranjos e as melodias compostas pelo Trio José, com participação do Saulo Alves, Maria Fernanda Oliveira, do próprio Juca numa declamação e outros músicos, é o que podemos chamar de transcriação. Não é a tradução servil e restrita à partir da escrita ou da oralidade: executam uma sensível interpretação do universo de seu Juca, compreensível e admirável para todos os ouvintes, de qualquer lugar ou de qualquer idade; a interpretação nasce do sentimento, jorra direto dos corações como água fresca e não se baseia em mera retórica destinada ao consumo fácil, sob o rótulo de um exotismo qualquer, tão ao gosto do que chamam por aí world music.
Os rapazes do Trio José são perfeitamente urbanos, não lhes é estranha a linguagem do jazz e da música moderna de modo geral. Assim eles o são, rapazes urbanos que viajam ao interior profundo do país, conhecem e se identificam, e de certo modo, navegam nas mesmas águas e partilham do rico manancial. Compreendem que insistir numa suposta fidelidade, tão a gosto dos puristas, poderia soar vazia e anacrônica; eles não precisam imitar canhestramente os modos de falar característicos de “um outro tempo e lugar” para convencerem o ouvinte da qualidade literária e do lirismo inspirador do autor. O que resultou desse encontro de gerações foi algo maior que uma simples preservação. Em contato com a arte popular autêntica, sabemos que a mesma não é extática, que ao longo do tempo incorpora, absorve valores e novos elementos: assim são constituídas as Epopéias. Diz Roa Bastos, o célebre escritor paraguaio: “O povo Homero compôs a Ilíada!
O encontro do Trio José com seu Juca da Angélica é, assim, uma soma de experiências, linguagens que dialogam entre si, o que fica evidente ao constatar o resultado final: a poética sertaneja, pura, simples, lírica , elegantemente vestida de instrumentação moderna. Um festivo encontro, uma festança que aproxima as gerações, os tempos, os lugares, as pessoas, enfim.
A arte de seu Juca se confunde com sua vida. É um retomar de saberes que fazem parte da essência mesma do ser, que nasce da capacidade de observar e sentir o mundo que palpita em torno de si: o céu, o escoar monótono de um riacho cristalino, o sacudir de um ramo sob o vento, uma garça voando, os animais no pasto, o som de porteiras batendo, sons de insetos e animais noturnos, o lamento dos carros de boi, o cheiro e o sabor do café e do pão assando no forno de barro,os amores, os amigos, as festas, de tudo isso é composta a poesia de seu Juca. Esses saberes, ele não os inventa e tampouco “caem do céu”; estão ao alcance de qualquer um que se de ao trabalho de simplesmente observar e sentir.
Os jovens do Trio Jose - e quem quer que entre em contato com o universo do Juca - foram “contaminados” como se é contaminado por um “veneno do bem” de que eles se deixaram “inocular”. E como todo “veneno do bem”, uma vez inoculado, significa “cura”, cura agora ao alcance de quem ouvir o disco.
A ARTE E A CURA
Num passado distante da humanidade, os primeiros médicos defendiam o principio da “totalidade do ser”, onde as curas das moléstias não se restringiam ao combate dos efeitos das doenças, mas sim em harmonizar ou reeducar o organismo. Os médicos da Antiga Pérsia, os discípulos de Ibn Sin (latinizado como Avicena) que forneceram a base da medicina moderna, necessariamente tinham de ser músicos, de preferência alaudistas. (Porquê o alaúde? Em árabe, significa “madeira”, instrumento de madeira e foi uma criação divina. A principio tinha quatro cordas e as mesmas se referiam aos quatro elementos da natureza, Terra, Fogo, Água e Ar, e a maneira de como cada uma delas era vibrada, invocava na natureza o respectivo espírito. Por volta do séc. X de nossa Era, um sábio sufi, médico e músico, introduziu a quinta corda, que chamou “corda da alma”).
Nestes nossos tempos atuais, onde a violência e a incompreensão são uma tônica trivial, seja nas cidades ou nos campos, não é difícil imaginar que uma doença invisivel e implacável crassa e corrói o mundo: obras como a Puisia, resultado de múltiplos pontos de vista inspirados pelos versos sinceros e singelos de Juca de Angélica e as sensíveis melodias, delicadamente emolduradas pelos acordes predominantes das violas caipiras, é um potente antídoto, luz e esperança contra as trevas que ameaçam corromper a frágil, porém, imorredoura beleza do mundo.
SOBRE O TRIO JOSÉ:
O grupo paulista Trio José pode se desdobrar em quarteto, quinteto ou até mais, mas seu núcleo central são os jovens Victor Mendes e Danilo Moura. Colaboram com eles, entre outros com o pesquisador e cantor Saulo Alves, Marcão Godói, Maria Fernanda, alem do próprio Paulo Nunes. Surgiu na cidade de São José dos Campos, daí a denominação Trio José. Em sua formação flertam com o jazz, a música latina, a musica regional de várias vertentes, a musica popular brasileira de modo geral.
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