“FAZENDA”, de Vidal França: O Coroamento da Arte Popular


            

No final de 2017 foi relançado, desta feita em CD, o disco “Fazenda”, de Vidal França,  com a inclusão de três faixas bônus. O LP original é de 1975, um marco na discografia brasileira, a respeito do qual cabe um breve esclarecimento, crucial, a respeito da concepção do trabalho: trata-se da coroação de uma ideia que diz respeito ao conceito de “cultura popular”. Nunca antes a pureza da arte simples do povo foi trabalhada com tamanha sofisticação e autenticidade. 
 

A cultura popular sempre forneceu um vasto material, pois jorra como água cristalina da fonte; em todas as épocas, artistas populares e eruditos recorrem a mesma, pois é fonte inexaurível. Sempre esteve presente em todas as manifestações artísticas, mas principalmente na música, forma de entretenimento básico nas culturas humanas, desde o sussurrar monótono das lavadeiras, o dolente canto de aboio, o murmurar das cantigas de ninar, as saltitantes cantigas de roda: em todas as sociedades, a musica sempre foi ponto de confluência, de encontro, de socialização.

Com a modernidade, não foram poucas as vezes que foi decretada  sua falência, sufocada pelas sucessivas vagas da indústria cultural. Porém, felizmente, os tentáculos do capitalismo não são tão absolutos como se pode pensar e sempre, em algum lugar, porções consideráveis da sociedade são excluídas do sistema, e consequentemente deixadas de lado e nesses nichos se formam culturas autônomas, que não brotam do nada, mas recorrem à tradições antiquíssimas, preservadas pelo inconsciente coletivo. A “arte popular” é como os lírios do campo que brotam, crescem, vivem sem que ninguém deles cuide: o mesmo se dá  nas periferias das grandes cidades ou nas lonjuras do campo, em todos os lugares; por todo o tempo, sempre haverá  manifestações genuínas.

Ao longo da história, poucas foram as vezes que os artistas de cunho autenticamente popular se tornaram protagonistas e mesmo assim, foram participações pontuais, onde se mostrava o elemento puro/bruto e em seguida retrabalhado/lapidado. O disco “Fazenda” rompe esse paradigma: o que ali foi feito, não foi apenas a “descoberta” por um pesquisador equidistante, mas é o próprio “povo” quem toma as rédeas, devidamente representado pelo “Bando Flor do Mato”, “Bando de Macambira” e outros: é a própria gente do povo quem produz de forma organizada a sua arte. Vidal, João Bá, os irmãos Eliezer e Chico Teixeira, são os roceiros que foram para a cidade e se tornam doutores. No caso, doutores em arte, em  musica. E é como “doutores” em musica que eles se reuniram para gravar esse trabalho antológico. 
O disco, a despeito de quaisquer rótulo que nele coloque, é um marco da discografia nacional, um verdadeiro “clássico”, segundo a concepção de Italo Calvino em “Porque Ler os Clássicos”; e como não poderia ocorrer senão com um clássico, “Fazenda” revoluciona na própria “simplicidade” arrebatadora que nos toma conta, com seus arranjos alegres e soltos, nos convidando a sair no terreiro a bailar. E por outro lado – mais uma comprovação que se trata mesmo de um clássico! -, é ousado ao propor e realizar uma antítese das imagens estereotipadas do nordeste: como lembra o autor do entusiasmado e lúcido texto do encarte, “...não é o nordeste da penúria, da miséria ou da violência como apresentado em Vidas Secas de Graciliano Ramos ou em Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. Não, pelo contrário, é o nordeste da fartura e da força, das festas e danças. (...)”.  De nossa parte, acrescentamos que  não é o nordeste alienado, da música bate-estaca despejando seus ruídos ensurdecedores para “inglês ver e ouvir”. É um disco de louvação do nordeste, mas não é ingênuo; não é o nordeste visto pelos olhos do sinhozinho ou do patrão; não é nordeste da apologia à perpetuação do status quo, seja ele qual for: é o nordeste mágico, permeado  por rica mitologia, por isso nostálgico (embora não faça parte do LP original, a impressionante “Facho de Fogo”, de João Bá e Vidal, cujo clima e imagens psicodélicas nos lembra as histórias de assombração e maldição, mas nas entrelinhas denuncia o ‘invasor’ sedento por nossas riquezas, ‘denúncia’ diluída no linguajar (cifrado?) do caboclo  “cantadô”, o ‘herói’ que pode ser Pedro Malazartes, Macunaíma, Chicó ou João Grilo.




“Fazenda” é a materialização da lucidez intuitiva, a transformação em “realidade” concreta de algo que sempre esteve disperso: a cultura popular é algo frágil, imaterial, mas por outro lado possui uma força desconhecida. Como as "Folhas de Relva", o clássico de Whitman, a singela e frágil gramídea que se espalha e avança implácavel pelo solo. Ou, novamente parafraseando  a imagem bíblica, os lirios do campo que vivem por si, sem a necessidade de cultivo, de cuidados. O artista popular sobrevive hoje como tal há séculos, por toda a parte, por mais que tentem desmerecê-lo, desacreditá-lo, ele sempre dá um jeito de permanecer vivo.

“Fazenda” é o projeto tornado verdade, sem ser uma curiosidade antropológica – ao molde dos feitos de Mario de Andrade na viagem dos anos 1930 ou dos Lomax, John e Alan, pai e filho, que registraram a música do interior dos EUA, precioso material que ocupa lugar de honra na Biblioteca do Congresso. O disco fundamental de Vidal surge nos primórdios da produção independente, tendo a ousadia de transformar em produto comercialmente viável a pureza de que é formada a arte popular. O disco, embora seja oficialmente de Vidal França, é um trabalho coletivo, sendo impossível sua consecução sem a presença de cada um dos envolvidos, sem contar a colaboração dos inúmeros anônimos do presente e do passado, cuja ressonância renasce na memória das gerações.

A “arte popular” é o reino da simplicidade, ao tempo que oculta um imenso rol de complexidades em cujas entrelinhas escrevem a história das sociedade. A arte de tecer tapetes ou a confecção de colchas de retalhos são imagens muito próximas do significado e importância da “arte popular”; a colcha dada a sua singeleza  e simplicidade, cuja feitura não exige complexos conhecimentos técnicos, mas sim sensibilidade. Presente em praticamente todo o mundo, no universo rural, nas pequenas comunidades e nas periferias das grandes metrópoles, a colcha  feita com sobras de pano de diversas procedências e cores, devidamente harmonizados forma um conjunto de rara e única beleza e sua produção envolve algo mais que a confecção de um objeto útil;  está inserido na própria vida comunitária. Uma viva imagem que guardo da infância vivida na zona rural da região do Pontal do Paranapanema, municípios de Flora Rica, Irapuru e Junqueirópolis, é a singela competição entre as senhoras, minha mãe entre elas, de quem fazia a colcha mais bonita, cujo prêmio maior eram os elogios mútuos! Que doces eram aqueles tempos que lembram hoje uma espécie de pré-capitalismo, ou melhor, de vidas, muitas vidas que se desenvolviam à margem do capital...

Dércio Marques, mestre em arte popular, não a toa que inspirou o Projeto Dandô, de autoria  da sobrinha de Vidal, Katya Teixeira, tinha uma faceta de seu trabalho denominada  “canções bordadas”, onde versos de uma canção emendavam em outra... No álbum “Segredos Vegetais”, por exemplo, na faixa “Dandô-Vento Bandoleiro/Canto dos Ipês Amarelos – Roda Gigante”, junta duas músicas de compositores diferentes, João Bá e Guru Martins, e quem ouve sem as conhecer previamente não consegue desvincular uma cantiga da outra... O discípulo de Dércio, Erick Castanho, em seu disco de estréia, o Elemental, faz algo parecido ao mesclar em sequencia a tradicional “Riacho de Areia” com “Rio”, de Luiz Salgado. Dércio, bem sabemos,  artista e homem de cultura à frente de seu tempo, com esse simples procedimento – bordar canções – colocava em prática algo que um erudito teórico levaria tempos pesquisando e escrevendo páginas e páginas de grossos volumes, provavelmente sem abarcar a imensa rede social envolvida: para Dércio, arte não era algo apartado da vida. Sou levado a pensar, pelo pouco que acompanhei de seu trabalho,  que para ele todo mundo poderia ser artista, todos poderiam cantar e tocar, não importa se o fizesse certo ou não; seu “ouvido absoluto”, capaz de perceber na música em si as menores dissonâncias, era perfeitamente apto para captar a sinceridade e autenticidade – o que nasce da alma! -, que no fim, é o que conta.
As “canções bordadas” ou a colcha de retalhos tem o mesmo principio, a ideia-chave é a mesma, o improviso: o alinhavar de temas afins deve ser um dos segredos da perpetuação dos contos/causos populares. Se formos procurar descrever de forma erudita, é o que podemos chamar de “um tema e suas variações”.



“Fazenda”, o trabalho de Vidal e seus companheiros, não foi o nascedouro dessa ideia-chave, agrupando tantos ritmos, gêneros, danças, poesias, teatro sertanejo, “causos” contados à beira do fogo, cantos de louvor, incelenças, festas; foi o filtro capaz de captar as alegrias, as dores, as gingas. A verdadeira origem é imprecisa e remota, se perde no tempo, seu rastro não é possível distinguir entre as inúmeras linhagens de artistas anônimos, que ao longo dos séculos mantiveram viva a arte do povo.
O pioneirismo contido em “Fazenda” se refere ao fato de que foi ali, naquele hoje longínquo 1975, que toda a bagagem que todos eles traziam na pele, no sangue e na alma pôde ser de algum modo sistematizado e organizado; se em algum momento da história da música independente houve uma base, por assim dizer, conceitual, começou ali; Vidal palmilhou um caminho que muitos  seguiram, inspirados por ele direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente. Todos, publico apreciador de MPB (nome genérico que não quer dizer muita coisa, pois não abrange a totalidade) e especialmente os artistas, seus colegas e companheiros de jornada, todos devemos muito a esse marco, verdadeiro tronco que só não chamo fundador porque  tem raízes muito profundas e entrelaçadas, ligando-se a outros “troncos”, continentais ou intercontinentais.

“Fazenda” é Vidal França,  Elizer e Chico Teixeira, Mazé Pinheiro, João Bá. Tem a participação de Katya Teixeira, ainda criança. Mas também tem outros, muitos outros, presenças “invisíveis”, que poderiam perfeitamente ter participado: Hilton Accioly, Papete, Chico Maranhão, os irmãos Dercio e Doroty Marques, Noel Guarani, todo o pessoal, amador ou profissional que participou da coleção da gravadora Marcus Pereira que reuniu em 16 memoráveis LPs um mapa musical brasileiro, quatro discos para cada região: Nordeste, Centro-Oeste, Norte e Sul.





O relançamento de “Fazenda” surge num momento bastante oportuno da vida brasileira, como o foi na época do lançamento original, quando a musica tradicional brasileira produzida pelas grandes gravadoras passava por um processo de esgotamento e o país se preparava para o fim da ditadura que viria alguns anos depois. Havia no ar uma motivação oculta. Importantes fatias da sociedade brasileira ansiava pelos novos tempos – talvez algo diferente dos arranjos políticos que propuseram uma transição da ditadura para a democracia que prometia ser indolor, como se isso fosse possível (seria o caso de perguntar: combinaram com as vítimas? Talvez por isso, a transição indolor, com o passar dos anos, revelou-se injusta e esse impasse inglorioso, a sensação de impunidade, é algo ainda colado a nossas peles e consciências...). Quem sabe o relançamento de “Fazenda”, com seu vigor e alegria, trazendo consigo o mesmo frescor e a marca da verdade, seja um sopro vigoroso, necessário para nos deslocar da pasmaceira que nos torna imobilizados?

Com seu estilo único de tocar, seu jeito característico de empunhar o instrumento encarando o interlocutor com olhar determinado, Vidal França transforma a viola ou o violão em espada, em cutelo, no melhor estilo dos menestréis, nos fazendo lembrar Victor Jara e Woody Guthrie -  não por acaso tem em comum um mesmo ideal de liberdade e justiça.



Victor Jara


Woody Guthrie

Eu não conheço o LP original, nunca sequer o vi. Mas posso assegurar que o relançamento em CD é um passo a frente, pois vem acompanhado de três faixas bônus: "Vale do Jequintinhonha" e outra versão de "Chamando Cheia", que fizeram parte de um compacto simples lançado por Vidal em 1980. E uma versão novíssima de "Facho de Fogo", que foi gravada  por Diana Pequeno e seu compadre João Bá. O encarte é belamente ilustrado pelo artista plástico Sakae Tokumoto, que nos remete a todos os sertões, o de Rosa incluído.

"Fazenda"  foi relançado porque tem muito a dizer. Sem nenhum apoio institucional, apenas na garra, na força, mas com a valiosa cooperação dos amigos. Conforme concerne a um “clássico”, sempre permite novas leituras, e a cada nova audição é um prazer renovado. Segue seu destino revolucionário. E tanto agora como o foi antes, nesses momentos de tremenda incerteza e confusão que estamos vivendo, surge a contrapelo, provocante. Em tempos extremos, pode ser visto e ouvido como antítese. É um chamamento, uma tour pelo Brasil, um passeio onde nos são mostradas festas, quermesses, forrós, vaquejadas, dramas, luta e alegrias.

O relançamento do álbum em CD revelou-se uma empreitada tão heróica quanto foi na época, em Long Play. . Não por acaso, a ideia nasceu no Bar do Frango, do Tatau - aquele que é para poucos - um verdadeiro centro de resistência cultural em São Paulo, há quase três décadas sobrevivendo graças ao empenho de uns tantos abnegados, e por cujo pequeno palco já se apresentaram alguns dos nomes mais importantes de nossa música, como Socorro Lira, Dércio Marques, Kátya Teixeira, Antonio Pereira, Dani Lasálvia, João Bá, Levi Ramiro e tantos outros. Foi lá no Bar do Frango que ocorreu o lançamento numa feliz noites em fins de 2017; foi lá n Bar do Frango, centro de resistência cultural brasileira que "Fazenda" alçou novos vôos, seguindo seu destino de revelar ao mundo o valor de nossa terra e de nossa gente.

DEPOIMENTO:

Ao contrário da leveza e alegria que o disco de Vidal me proporcionou, não foi fácil escrever sobre ele. Vasculhei na imprensa e não li nada sobre ele e o grande acontecimento, o relançamento do disco antológico; isso me chocou: onde estão os grandes críticos musicais brasileiros? Para escrever sobre Vidal seria  preciso alguém de peso: Tinhorão,  Zuza Homem de Melo, Amir Labaki, Luiz Antonio Giron,  Enio Squeef, Luis Nassif, entre outros, os grandes críticos que sempre nos servem de referência. De facto, é possivel que muitos deles tenham escrito a respeito, mas não consegui acessar. Em todo caso, quem deve de facto é a grande midia, os jornalões, o rádio e TV, que tem obrigação ética de noticiar,. 
A qualidade e o valor da obra de Vidal é indiscutível. Todas as vezes em que se apresenta em programas de TV, faz um sucesso estrondoso, as pessoas ficam em estado de extâse. Porém, no e para o mercado discográfico, é como se  inexistisse.

E estamos falando de nossa  cultura, de nossa alma, que devemos defender e divulgar com todo o empenho possível. Enaltecer nossos valores, é uma obrigação, cidadã, eu diria, a despeito de quaisquer outros pontos de vista, seja estético ou ideológico. A arte verdadeira, seu maior valor está em nos abrir os corações, sair a campo com o coração disponível para acolher as emoções. Como é praxe para mim, abdico  de qualquer tentativa de análise de cunho técnico, pois Vidal faz musica para o povo ouvir, refletir, se divertir. Para tentar ser fiel a ele e ao seu trabalho, deixei-me guiar pelos acordes e cantigas seguindo as trilhas invisíveis da intuição, como se aquela massa de sons vocais e instrumentais fosse o caminho seguro e iluminado. E de fato vi que era uma sólida e iluminada trilha,  que me levou mais uma vez a compreender e amar cada vez mais essa arte, o canto popular, sua força e energia sublime que só as grandes obras universais são capazes de produzir...
 
 A Arte de Vidal,do Bando Flor do Mato, Bando de Macambira, Mazé Pinheiro, Katya Teixeira, João Bá, Gonzagão, Dércio Marques, Ely Camargo, Inesita Barroso, Cartola, Nelson Cavaquinho, Mercedes Sosa, Agustin Barrios, Atahualpa Yupanqui, Violeta Parra e centenas, milhares de outras vozes, são portas da percepção para acolher nossa sensibilidade , amplos portais  onde a mais pura Arte que o ser humano pode conceber, viceja!

(JJoca Ramiro!)


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