A referência do título da postagem conduz diretamente ao filme
de François Truffaut, de 1977 – O Homem Que Amava as Mulheres (L'Homme qui aimait
les femmes) que mereceu uma versão americana, poucos anos
depois.
Juntar Rubens Ewald Filho (falecido neste
meado de junho de 2019) e François
Truffaut (morto em 1984) e imaginar os
dois trocando idéias, é sondar a possibilidade, puramente imaginária, podendo,
entretanto, avaliar com certa dose de certeza que a memória prodigiosa de ambos
é capaz de conter toda a história do cinema.
Rubens Ewald Filho
Não
falo da história seqüencial, ao alcance de qualquer estudante de jornalismo,
mas da história afetiva. Nada de vieses ideológicos. Ou de critérios pretensamente
definidores da “forma” ou do “sentido” do filme, como tão bem expôs Serguei
Eisenstein em dois textos básicos e
obrigatórios para se tentar compreender o prodígio da Sétima Arte. Não que a
ideologia, a forma ou o sentido do filme estivessem ausentes da obra de
Truffaut ou das análises criticas de Rubens Ewald; é que simplesmente o
elemento que os norteava – tanto o cineasta quanto o crítico – era um profundo
amor pelo cinema.
A paixão de Truffaut, por exemplo, era tão
notória que ele recusava as produções espetaculares, as pirotecnias, que para
ele afastavam as pessoas da reflexão necessária. Pois para ele, a idéia era mil
vezes mais importante que o “espetáculo”
em si, onde qualquer brilho exagerado e desnecessário poderia anular toda uma idéia,
num apuro técnico semelhante ao trabalho de ouvives de uma Clarice Linspector
que costumava cortar parágrafos inteiros de seus textos por... “excesso de
brilho”, o que ofuscaria o conjunto! No filme Atirem No Pianista, baseado numa
novela policial, ele faz de tudo para diluir a disputa entre mocinhos e
bandidos, trazendo o conflito para uma dimensão onde o espectador não se sente tão ausente como o seria no
universo gangster. São muitos e
muitos os artistas diretores e sua paixão explicita pela arte a qual dedicaram
a vida – Wenders, Kurosawa, Agnès Varda, Nelson Pereira dos Santos, etc. –
porém não conheço outro cuja afetividade estava a flor da pele como Truffaut,
cujo exemplo mais notório é “A Noite
Americana”, que perdi o numero das vezes que assisti. E pensar que tudo parte
da simples descrição de um diário de filmagem de um filme que poderíamos
classificar como B.
Truffaut dirigindo A Noite Americana
A mesma
forma cuidadosa de era exercida por Rubens Ewald, que via e analisava com o
mesmo interesse e cuidado um curta metragem do inicio do século XX e uma
superprodução do século XXI. Não obstante as distancias de tempo e lugar, o
cinema trata, fundamentalmente, da mesma coisa, da mesma ilusão. Mas uma ilusão tão poderosa que pode ser a própria vida.
Truffaut começou sua carreira como critico,
tornando-se depois cineasta, colocando em prática sua visão de mundo e sendo um
dos porta-vozes mais insinuantes de sua geração, que deu ao mundo a nouvelle vague, que não foi apenas um
modismo. Sua marca fundamental era a delicadeza com que tratava dos temas.
Rubens Ewald foi um crítico cujas
análises jamais se esgotavam em si mesmas. Ambos, distantes geograficamente e
no tempo, cada um a seu modo, iam além da estética; ambos, Truffaut e Rubens,
ajudaram incontáveis gerações a ver e compreender cinema. Não só “ver”, mas
especialmente sentir e assim ampliar o universo, como se a tela que começa
escura fosse a janela para outros mundos.
Vendo os filmes de Truffaut e ouvindo/lendo as
críticas de Rubens Ewald Filho aprendemos que na cultura cinematográfica, da
mesma forma que a cultura dos povos, não existe cultura superior ou inferior:
cada expressão cultural trabalha com os elementos disponíveis para a sua compreensão
e necessidade. Assim, cada técnica utilizada no cinema, em sua respectiva
época, responde às necessidades especificas de determinado publico, sejam as
pirotecnias possíveis hollywoodianas, as produções em massa do cinema indiano
ou filmes autorais de diretores africanos ou tailandeses.
Não obstante o mundo das artes ficar mais
pobre sempre que um grande artista se vai, há que considerar o legado
produzido. François Truffaut se foi há mais de três décadas e sua obra continua
a ser estudada e apreciada; de Rubens Ewaldo Filho, uma amiga da rede social
escreveu que ele “possuía um conhecimento absurdo de cinema” e isso é muito
verdade: um conhecimento mesmo absurdo que ele fazia questão de compartilhar
com o público como se aquilo fosse mais que um oficio, mas sim um dever social.
Ou um sacerdócio.
Não era saudosista nem amante de novas
tecnologias. Cinema para ele, em qualquer tempo ou lugar, era simplesmente o
ponto nevrálgico daquele instante preciso daquela determinada civilização.
Talvez por isso, por essa capacidade de aglutinação, o cinema deva ser chamado
a Sétima Arte ou a arte que reúne todas as outras: teatro, literatura, musica,
artes plásticas, etc. e que na sua
confecção, exige trabalhadores manuais e técnicos especializados em diversos
níveis. È uma Arte e uma Indústria.
Aprendi a gostar de filmes e cinema
assistindo, lá por meados da década dos 1980, na TV Cultura de São Paulo um
programa dominical onde eram mostrados filmes da dupla O Gordo e o Magro e
também outros astros do cinema mudo, como os curtas de Chaplin, Buster Keaton
ou Harold Lloyd, o comediante que nunca ria, entre tantos outros. Cada filme
era delicadamente comentado, destrinchado em seus mínimos detalhes, em
linguagem técnica, porém, acessível. Isso nos permitia acompanhar a evolução da
Arte cinematográfica tanto em termos do artesanato específico como da própria idéia
de arte ou de vida, pois tudo se misturava. Aos meus ouvido de rapazote
recém-chegado do interior de São Paulo, ansioso por novidades, aquelas
descobertas tinham um fascínio ainda hoje difícil de discernir, explicar.
Paralelo semelhante só encontrei quando assisti pela primeira vez o filme O
Espírito da Colméia, do espanhol Victor Erice, onde uma menina vivendo numa
paupérrima aldeia espanhola tem sua visão de mundo completamente modificada ao assistir Frankstein...
O Espirito da Colméia, 1973
O cinema, a arte explicita da Ilusão, tem essa
capacidade de confundir limites entre realidade e ficção – onde começa um
termina o outro? Se o movimento que
vemos na tela é falso, se é uma mera sequência de fotografias registrando o
movimento, nossa própria visão é igualmente ilusória, pois capta as imagens que
vemos de modo invertido, obrigando o
nosso cérebro a interpretar cada quadro, das milhões de imagens que registramos
sem parar.
Rubens Ewald e o carinho com que ele “explicava”
o cinema, fazia dele um “contador de histórias”, nos conduzindo pelos
bastidores revelando detalhes surpreendentes. Como não se encantar com a
revelação que o sapato que Carlitos/Chaplin literalmente comeu no clássico” Em
Busca do Ouro” era de chocolate? Ou como não se surpreender com a revelação que
o cowboy John Wayne e o Gordo Oliver
Hardy por pouco não formaram uma dupla quando rodaram em 1949 o filme Estranha
Caravana (The Fighting Kentuckian), não se configurando o acerto por detalhes contratuais? Rubens
era uma pessoa encantada pelo cinema – reza a lenda que chegava a assistir 5
filmes por dia – e conseguia transmitir tudo isso, um feito raro, mesmo para um
comunicador.
Não menos importante foi seu trabalho de
ficcionista, escrevendo roteiro para novelas e miniséries de televisão, além de
peças teatrais. Destaque para as novelas “Um Homem Muito Especia”l e” Drácula,
Uma História de Amor”, ambas de 1980. Também trabalhou como ator.
E assim foi para o “andar de cima” o homem que amava o cinema e amava ensinar a
gostar de cinema. Fez-me recordar Truffaut e seu clássico O
Homem Que Amava as Mulheres. Tal referência não foi fortuita nem um jogo de palavras. Fantasia e
realidade carecem uma da outra para se fazer existir. Tanto o cinema de
Truffaut como o trabalho crítico de Rubens Ewald nos ensinaram que existe uma
conexão entre a arte cinematográfica dos
primórdios, desde a primeira exibição publica dos Irmãos Lumière e a ilusão
aterrorizante produzida no público, até o cinema que deverá ser produzido daqui
a milênios. O cinema sempre será ilusão e sempre será vida.