VIOLA DE LATA QUE VALE OURO: O CLÁSSICO FUNDE-SE AO POPULAR




Um provável subtítulo para esse texto deveria girar em torno de indagações e considerações em torno do que se considera “erudito” e “popular”.  Essa aproximação, a meu ver, está mais do que consolidada. É assunto para especialistas, mas eu não sou especialista, porém o tema é da maior importância e minha intenção, antes de tudo é suscitar questões, mesmo tateando em meio a incertezas. 
Escrevo sobre musica, mas o que me move e leva a escrever é a emoção que a mesma transmite, além de outros conteúdos, notadamente referentes a vida das sociedades e os múltiplos contextos que se formam em torno dos folguedos, seja o simples entretenimento ou à maneira de rituais. Desta feita, o elemento provocador e estimulador foi a audição do CD recém lançado pelo violeiro que teve sua iniciação musical no rock and roll, Ricardo Vignini.



No livro O Som e o Sentido José Miguel Wisnik menciona, logo na apresentação do texto clássico que é possível que a musica considerada erudita e ocidental – entenda-se, a musica européia, baseada em Bach, Beethoven ou  Mahler, tenha completado um “grande arco” em seu desenvolvimento, que nos vem desde o cantochão antigo chegando a polifonia, ao tonalismo, finalmente ao atonalismo e a música serial, minimalista. E a partir de então, sugere o autor, resta-lhe a dispersão, a fusão, experimentos multifacetados, incluindo o rock, o jazz, a musica minimalista, de inspiração modal, a musica chamada comumente étnica, dos africanos, orientais. Afirma Wisnik que vivemos, talvez, um grande intermezzo, onde os parâmetros estritamente musicais haverão de sofrer grandes deslocamentos, para, quem sabe, em algum momento, se consolidar sob outros auspícios e outras  estruturas especificamente musicais.

Coincidência ou não, não é de hoje que uma aproximação já não tão furtiva, procura diminuir a distancia entre a “musica erudita” e “musica popular”; avanços consideráveis já foram feitos e nos dias de hoje, não é mais admissível  considerar seriamente a classificação de uma “musica superior” e  “musica inferior” ou menos nobre. São avanços históricos e culturais, que a musica acompanha ou reflete as mudanças sociais ao longo dos séculos, notadamente no XX,  que fizeram desaparecer  pseudos “argumentos” científicos que tornava legitima a exploração de povos inteiros por razões de raça ou desenvolvimento técnico/cultural. (Aqui, um tributo que todos devemos prestar a Levi-Strauss e sua obra. E os exemplos vividos de incorporação de elementos musicais pelos grandes mestres, vide Villa-Lobos, Bartok e a grande revolução, o grande salto provocado por Igor Stravinsky em 1913 com a Sagração da Primavera.)

MÚSICA, UMA LINGUAGEM COMUM  E UNIVERSAL

No desenvolvimento das sociedades, a musica, produto comum a todos os povos, é o elemento que torna possível e viável, o diálogo entre os povos, diálogo esse que acrescenta e não divide, pois é da soma que surge a força que nos torna capaz de transcender um  destino a principio, ordinario: agora, como foi ontem e será no futuro, estaremos sempre indagando para onde vamos! A musica não nos dará essa resposta, mas nos seguirá onde quer que nos leve a jornada da aventura humana ou de outras espécies que nos venham substituir (considero uma arrogância sem igual acreditarmos que somos uma espécie definitiva; o sapiens, talvez venha a ser uma espécie transitória. Por que não?).



VIOLA DE LATA

O CD  lançado por Ricardo Vignini, “Viola de Lata” é o elemento catalisador dessa discussão, pois, é um disco onde diversas tendências musicais, dentro do que podemos chamar "musica de raiz" ou "regional" se fundem: oriundo do rock, Ricardo tornou-se um mestre na viola caipira, graças principalmente a sua aproximação com o violeiro Indio Cachoeira, paulista de Junqueirópolis, cidade localizada no extremo oeste do estado de São Paulo, região movida por diversas tendências culturais, pois para lá afluiram no rastro colonizador gente de várias partes do país e de países próximos como Bolivia e Paraguai; por lá, guaranias e ritmos do altiplano boliviano são comuns. O Indio Cachoeira  desenvolveu um estilo muito próprio de tocar  o instrumento que ele mesmo fabricava, a principio por necessidade, depois por opção, ao descobrir-se luthier - a exemplo de "seu" Nelson da Rabeca. 
Que se ressalte que Cachoeira foi um fenômeno raríssimo, pois, literalmente, vivia “imerso em musica” da mesma forma que acredito o fosse com Bach. Era capaz de “construir” melodias instantaneamente, quase sem o perceber. Ricardo aproveitou muito bem a estadia de muitos anos com o mestre e nas vezes em que os vi tocando juntos, o modo como se tratavam e tratavam a musica, não havia distinção ou ou hierarquias, não seguiam códigos previamente determinados. Era algo parecido com os encontros entre “seu” Nelson da Rabeca e o suíço-brasileiro Thomas Rohrer, onde simplesmente “deixam-se levar” pela musica por horas e horas ininterruptas.

Vignini  pode ser considerado entre os melhores de sua geração – e olha que o time de violeiros em voga atualmente é de extraordinária qualidade. Digo sem pestanejar que encontramos violeiros de extraordinária qualidade às dezenas.  Existem os mestres consagrados  e a cada dia surgem novos nomes, uma vez que a viola caipira desperta grande interesse de jovens músicos e do   publico em geral. Nesse  disco, “Viola de Lata”, está presente o toque tradicional do berço caipira do interior de São Paulo e Minas e também elementos fortemente ligados à cultura musical nordestina, graças as citações de Ivinho e a presença em duas faixas da maravilhosa, ricamente criativa,  Socorro Lira.



A audição cuidadosa desse CD e te outros violeiros - o mercado independente é muito rico - nos autorizam a pensar  a musica como fenômeno verdadeiramente universal, pois...

       ...de todas as criações humanas, a musica deve ser a mais intrigante (isso ao considerar “musica” como sendo uma genuína “criação”, pois, poderia ser simplesmente um fenômeno “natural”, uma espécie de éter presente em todo universo, partindo da premissa de que “tudo na natureza  é som” ( para ser preciso e estar de acordo com os preceitos de Winisk, “tudo é som e silencio”). 
Mas, fiquemos com os exemplos diretos: o crepitar do fogo, barulho da água, o mar se chocando nas rochas, os milhões de sons das espécies animais, do vento. E quando termina o som, mergulha-se no silêncio e no fundo de cada silêncio profundo, principia-se outros sons, que se torna outra música... A música vem daí, dessa  pulsação. 
São  os movimentos contínuos de “som, silencio, ruído, silencio” que se tornam  o próprio ritmo da vida. Experimentos resultantes da análises de ondas sonoras dão conta de que uma música se propagando através de ondas “afinadas”, um côro de vozes por exemplo, pode instaurar um principio de harmonia no mundo, em contraste/oposição ao ruído desordenado, cuja representação gráfica seria uma mancha caótica, que em nada contribuiria para qualquer coesão, digamos assim. (E, no entanto, para que haja equilíbrio no mundo, carece existir o “som” harmonia e também o “ruído” desagregador, elementos dissonantes entre si, mas é esse equilibrio que impede o caos e a dispersão cósmica).
Entretanto, uma vez encadeado através de idéias, onde a dissonância possa ocupar um lugar, experimentos nos mostram que  os ruídos e barulhos desagradáveis – motores dos carros, tiros de canhão, matraquear de liquidificador -  podem ser incorporados a idéias musicais. Encontramos  exemplos na musica experimental, onde novos timbres, aparentemente desconexos/opostos, tem a função de provocar ouvidos e cérebros domesticados, excessivamente amaciados pelos padrões musicais convencionais.  (Vide os experimentos do Grupo Abaetetuba, de Thomas Rohrer e Panda Gianfratti, por exemplo).

A musica também é imagem e tem o poder de evocar e traduzir imagens e idéias em ondas sonoras harmoniosas: cavalos correndo pelo campo; pássaros voando (o Voo do Besouro, de Rimsky-Korsakov;  O Voo da Perdiz, de Renato Andrade; O Voo das Garças, de Zé Côco do Riachão). 
O espetáculo da vida, pois, é musica, uma vez que tudo o que existe pode se tornar musica. Seria, nesse caso, o musico, apenas o organizador – ou o decifrador – de algo que sempre existiu ou existirá independente de nossa ação? 
Antes da existência do ser humano, existia musica no universo; e depois do desaparecimento provável da espécie humana (ou sua transformação) sempre existirá musica. A poesia, parceira intrínseca, é musica; a voz humana é poesia e consequentemente, musica. O poeta mexicano Octavio Paz escreveu que “...a poesia é a linguagem primeira do ser humano, anterior à palavra”, esta devendo ser chamada de linguagem racional
A poesia, desde Homero até os poetas modernos, são tentativas, de certo modo vacilantes, de traduzir imagens e sentimentos em linguagem compreensível. Essa tentativa de compreensão também são tentativas de comunicação: compreensão do mundo e do sentido da vida – condição que nos separa dos demais viventes.

O fascínio provocado pela musica é inigualável, inexplicavel, não obstante a enorme dificuldade em conceituar e definir o processo musical (criação, execução), segundo padrões racionais. Na vida prática, excetuando tentativas de elucidação lógica que obrigaria a recorrer a termos técnicos ineficazes para a compreensão de não especialistas, devemos considerar o milagre de ser a música em si o elemento de comunicação mais rápido que existe. Coloque-se num palco, numa sala, num terreiro, onde quer que seja, músicos de diferentes nações e cada qual falando apenas seu idioma, que “musicalmente” acabarão por se entender, se comunicar e da maneira mais rápida. Ao fim se entenderão perfeitamente.
Mesmo para quem não é músico, perante a música, a reação é inevitável. O corpo reage imediatamente, bem como os sentimentos e os estados de espírito: e muito mais que qualquer estimulante  ou seu contrário, o narcótico. Musica provoca movimentos involuntários das mãos, dos pés, da cabeça, do quadril; musica provoca alegria, tristeza, reflexão. Uma giga de origem celta, uma cançoneta, um malambo, uma polca, um cateretê, uma mazurka, uma valsa, um samba,um moteto, uma sonata, uma milonga, uma danza podem dizer em minutos  sobre o povo de uma região ou de uma época o que um pesquisador erudito teria de escrever  páginas e paginas para descrever a história de uma comunidade, um povo, até de um país. Muito antes de ser um fenômeno industrial, a musica é um fenômeno sócio-cultural. Se algum dia o modelo capitalista sair de cena e desaparecer a “industria musical”, a musica continuará existindo da mesma forma como existiu antes do advento do capitalismo.

O livro de Wisnik, de amplo alcance para leigos e especialistas – críticos e músicos – é uma interessante ferramenta, pois é uma obra que extrapola aspectos históricos/antropológicos (sem os negar, entretanto) e impõe a musica como fenômeno universal, à parte modismos, subjetivismos. Serve a análise do especialista e ao deleite do leitor/ouvinte cujo “envolvimento musical” é no sentido de apreender de forma prazerosa esse catalizador de emoções – um dos aspectos da musica, um dos aspectos de como ela nos atinge, influencia.
Nas festas populares, nos bailes.  Nos eventos religiosos ou políticos. De onde vem tanto poder da musica?
Tentativas de definição esbarram em algo indefinido, incompleto, impreciso. Uma ária; um moteto de Bach; um completo movimento orquestral; um passo de dança popular. Na musica, através da musica, muito mais que a compreensão dos  idiomas, os “tempos”, as sociedades, os povos, tudo se interliga e de imediato se compreende.

Que mistério oculta as notas graves das Suítes para Violoncelo de Bach, compostas por ele e certamente nunca ouvidas por ele, pois na época não existia o instrumento com os recursos que posteriormente viria ter, pois, dados históricos e arqueológicos atestam que o cello da época era o Piccolo, de notas limitadas? Que “musica” foi aquela que Bach “ouviu” dentro de sua cabeça?
E para não ficar em exemplos de outras eras apenas, lembremos de nosso tempo: Villa-Lobos e as bachianas. Ou: ragas hindus, compostas para cada período do dia. Ou ainda o encantamento que até hoje nos surpreende quando ouvimos, pasmados, “Cruz Del Sur”, o malambo eternizado por Atahualpa Yupanqui, com perceptíveis ecos de “Canários”, de Gaspar Sanz, a quem o compositor espanhol Joaquim Rodrigo homenageou no Quarto Movimento de sua “Fantasía Para Um Gentilhombre”. Em Cruz Del Sur, Atahualpa Yupanqui esgota os recursos disponíveis nas cordas e ao fim, como que numa busca instintiva para expressar a pureza dos sentidos, apela para percussão, no tampo do violão, como o som primitivo, percussivo, como se ao fim de tudo, retornássemos ao inicio.
“Canários” certamente é uma danza camponesa recolhida por Gaspar Sanz em suas andanças pelo interior da Espanha. A incorporação por Rodrigo em sua Fantasía é um exemplo perfeito da interação clássico/popular, já no século XVII. A propósito, Gaspar Sanz é especialmente conhecido por ter sido o primeiro estudioso das cordas a sistematizar na Espanha do século XVII um método de tocar violão (guitarra espanhola) utilizando rasqueados e ponteados. Vem de longe, portanto, os diálogos aproximativos entre esses gêneros, que muitos puristas, de cada lado da história, por vezes tentam invalidar. Em muitos Conservatórios (abstenho-me de citar nomes) negavam terminantemente estudar viola caipira a sério e por outro lado, existem  violeiros “fechados” em sua redoma, que não admitem que ninguém de “fora” macule seu mundo (igualmente abstenho-me de citar exemplo, por não conduzirem a nada, obviamente, além de intrigas ridículas). 

O importante, o que vale mesmo  salientar aqui, é que o universo musical, através de suas poderosas ondas vibratórias, interpenetra-se e a tendencia a longo prazo é que tal venha a aproximar as pessoas, o  temor dos puristas – de cada lado da história.

Gaspar Sanz


Atahualpa Yupanqui

Joaquim Rodrigo

O disparo dado na direção do fechamento do “grande arco” da musica ocidental a partir do campo tonal parece estar se concluindo num lento processo, durando décadas, sutilmente dispersando-se em atonalidades, na musica eletrônica (em Cage, mas cujos primórdios podem ser rastreados até Edgar Varèse, Stravinsky ou Schomberg).
 Alguém pode imaginar, sondar, fantasiar como seria a musica do futuro? A musica feita para o cinema, deliberadamente associada ao poder das imagens, poderia algum dia se tornar musica de massa. Com ou sem qualidade. De qualquer forma, uma modalidade, uma expressão de realidade.

Retornando ao nosso universo, onde a viola caipira é por nós, seus aficcionados, dotada de  um interesse especial,  e principalmente por ser dado a certo desconhecimento de suas possibilidades, discos como Viola de Lata, de Vignini, devem ser ouvidos com atenção. Com mais atenção que afeto, eu diria, pois de fato aponta para possibilidades inovadoras.

Viola de Lata, é uma interessante amostra dos recursos de um determinado tipo de viola, a dobro, até aqui mais conhecida entre os norte americanos. A viola e suas possibilidades são portas que se abrem. E por ela entram outros  elementos, outras linguagens. Portas e janelas, às vezes ruidosas, outras harmoniosas. Que o universo violeiro seja invadido por  jovens com experiências trazidas de outros campos musicais. Notáveis são os tratamentos sinfônicos dados a viola pelo maestro Jaime Além, pelo pernambucano Adelmo Arcoverde, pelo gaúcho Valdir Verona, pelo grupo Violas ao Sul. O lirismo violeiro de Paulo Freire, de Fernando Deghi, a juventude de Pedro Vaz, de Erick Castanho. São tantas e tantas histórias maravilhosas e miraculosas em torno da viola. Levi Ramiro que o diga.

Estejamos atentos às  possibilidades de fusão criativa. A música com fundamento na realidade social, nascida dos anseios populares, será sempre necessária, vital, para os tempos que chegam. Ricardo e os violeiros de sua geração são tradutores das novas linguagens que a viola proporciona. Sua Viola de Lata é como a Viola Que Vale Ouro, clássico de Tião Carreiro. A propósito, o velho Tião está sendo redescoberto não como o criador e rei do pagode (com seu parceiro Pardinho), mas como musico. Atenção para o trabalho que está sendo realizado já a algum tempo entre a Banda Blues Etilicos e o violeiro Noel Andrade...


"A música ensaia e antecipa aquelas
transformações que estão se dando, 
que vão se dar, ou que deveriam se dar, 
na sociedade"

José Miguel Wisnik, O Som e o Sentido



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