Bruno
Sanches, violeiro nascido em Regente Feijó, oeste paulista, segue as pegadas dos
também violeiros Índio Cachoeira e Júlio Santin e do sanfoneiro Eujácio Rocha.
Todos sinônimo de festanças animadas e lirismo, comuns em toda região do Pontal
do Paranapanema e adjacências ao longo das décadas de 1960 e 1970. (O nome
“pontal” vem da localização numa “ponta” do estado, fazendo divisa simultaneamente
com Mato Grosso do Sul e Paraná; Paranapanema é o rio que divide São Paulo e
Paraná – o outro curso d’água, separando São Paulo e Mato Grosso, é o Rio
Paraná, o “Paranazão”). A arte musical ali produzida é um desfecho, a coroação possível
de uma longa e dinâmica história que ajuda a compreender o Brasil do interior.
O sociólogo Antonio Cândido escreveu em 1980 no texto de encarte do álbum duplo
“Caipira – Raízes e Frutos” que a figura do caipira estava destinada a
desaparecer. Mais de 40 anos se passaram e o caipira resiste, teima em
continuar fazendo parte do cenário da vida brasileira.
O
lançamento do CD “Do Barroco às Barrancas do Rio”, do jovem Bruno Sanches
surpreendentemente revela essa continuidade. O caipira de hoje não é,
naturalmente, o mesmo caipira de 50 ou 70 anos atrás. O caipira de hoje deve usar apetrechos tecnológicos – necessários ou
não. Entretanto, continua firme, povoando imaginários e sua figura
está intrinsecamente ao nosso povo, ao ser brasileiro. Antes de falar do trabalho em si, conheçamos um pouquinho da história da região que nos serve de cenário:
OS PRIMEIROS HABITANTES
O extremo oeste paulista, desde que
foi ocupado principalmente por grileiros ainda nos primeiros decênios do século
XX, atraiu forasteiros de muitos matizes, atraídos por oportunidades e com o
intuito de desbravar matas e ocupar a região, ora despovoada. Mas não fora
sempre assim. Os habitantes originais, os índios Kaicangues, caiuás, xavantes, guaranis e outras etnias,
tinham sido expulsos décadas atrás e dos mesmos restaram nomes de lugares e
breves referências geográficas, como o Ribeirão Kaicang, Ribeirão dos Índios,
Jaciporã, etc. Dos índios, sombras, ecos de vozes e nomes. O que poderia ser singelas
homenagens aos primeiros habitantes não ocultam que os anos que marcaram as
expulsões não foram nada românticos, nem cordiais. Como noutros lugares, desde a chegada dos europeus,
os índios, sempre estiveram às voltas com extermínios, seja físico ou cultural.
Porém, são, insistentes: traços da
cultura pré-colombiana, seus costumes, sua música e dança persistem até os dias
de hoje; hábitos como a coivava, a
preparação da terra para o plantio, a conversa ao pé do fogo, comum na "casa dos
homens” se mesclaram aos grupamentos humanos que chegaram depois.
UM
MUNDO MOVIDO À MÚSICA
Desde
que deixou de ser “terra de bugre”, nome depreciativo dado aos povos originais
para distingui-los dos cristãos, durante décadas o Pontal foi um lugar isolado,
distante. E a música era a forma de diversão mais acessível, o ponto de partida
para as demais trocas de experiências da vida social. A música atendia à reza e
a dança, à missa e ao baile. Uma sociedade onde a música estava sempre presente.
Assim a pratica musical se solidificou ao
longo do tempo, o suficiente para que criasse sólidas raízes que no futuro geraram frutos capazes de
resistir às intempéries. O isolamento e a distância propiciou aos músicos
locais desenvolver estilos e traços peculiares. Influências externas por certo existiam,
porém, de caráter somatório e não invasivo. A midia dominante na época era o
rádio de pilha, que reproduzia os programas da então Rádio Nacional (hoje
Globo), que a cada noite da semana apresentava uma dupla sertaneja. Tonico e
Tinoco, Tião Carreiro e Pardinho, Cascatinha e Nhana, e outras. Os programas noturnos, animados
pelo inequívoco Edgar de Souza, eram audições obrigatórias e serviam de
inspiração.
Naquelas
paragens, grandes mestres violeiros jamais saíram das fazendas onde viviam como
trabalhadores volantes, arrendatários, meeiros um ou outro pequeno proprietário.
Na musica, o profano e o sagrado se revezavam nos planos da existência:
celebrava-se com devoção a obrigação religiosa, os benditos, novenas,
encomendação de almas, e com entusiasmo animavam folguedos: casamentos,
batizados, nascimentos, aniversários, tudo era motivo para celebração.
Por
toda parte, um mosaico de sotaques: baianos, cearenses, mineiros, alagoanos,
etc. E nos entornos, as pequenas propriedades, a maioria de imigrantes
espanhóis, italianos, japoneses, sírios-libaneses. Os gaúchos ou paraguaios
comumente se dedicavam a lida do gado, sendo chamados campeiros. A variedade de sons e cores se entranhava entre nós tão naturalmente, que fortalecia
uma imagem do Brasil como sendo a terra onde tinha de tudo um pouco e para
todos.
Praticamente em cada casa existia um ou
vários instrumentos musicais: a viola caipira, o violão, um raro acordeon, gaitas
de boca, reco-reco, pandeiros, zabumbas, tudo parte dos objetos da vida
cotidiana assim como as ferramentas de trabalho. Nas fazendas e sítios sem luz
elétrica, aos sábados, bastava estender uma lona sobre quatro estacas, acender
um lampião à querosene, juntar uma dupla de cantadores sobre rústicos estrados de madeira e estava
pronto o arrasta-pé que durava até o raiar do dia. Música em estado puro,
cantores e instrumentistas que conheciam seu oficio tão naturalmente como
respirar. Manipulavam com destreza seus instrumentos não obstante as mãos
calejadas da lida na lavoura ou no trato com gado.
As atividades musicais não se limitavam aos
fins de semana. Durante a semana, após a janta, nas humildes moradias eram
comuns as violadas ou “contação de causos”. Cantando ou contando, todos se
empenhavam com esmero, numa lúdica disputa, que era mais que mero entretenimento: Arte e Vida misturadas.
Era
comum o fabrico dos próprios instrumentos musicais, uma vez que instrumentos
eram caros. Sendo a música o elemento impulsionador das relações, agregava uma efusiva
mistura de paixão, fé e dança: a música como o principal meio de permuta social,
onde as diferenças eram amenizadas. Penso nas sensações que a fraternidade se causava em nós e à ideia
de musica se juntam as imagens dos animais, das estrelas fulgurando no céu, os
perfumes das inesquecíveis noites interioranas...
Até
meados da década de 1970, esse universo mágico foi o centro da vida das
comunidades que se espalhavam na zona rural. Com o declínio da produção do
café, que permitia outros cultivos concomitantes, a situação mudou
drasticamente com a advento da plantação de cana-de-açúcar, cujo cultivo
utiliza poucos trabalhadores. Tornados descartáveis, trabalhadores com suas
famílias foram forçados a emigrar para as cidades.
O
EXODO AO LONGO DOS ANOS 1970
O
declínio do café, a crise do petróleo de 1973, tudo isso culminou na crise que
expulsou milhares de trabalhadores. Os novos tempos, tangidos pela monocultura
da cana-de-açucar, teve o efeito de um lento e agonizante “arrastão”. Acabou-se
o tempo onde existia um espaço onde o individuo podia se mover livremente, movido
por certo sentimento de pertencimento. O “arrastão” metafórico não foi
explícito, mas destruiu por onde passou. (Chama-se “arrastão” quando dois
potentes tratores ligados por uma gigantesca corrente arrasam tudo à sua
passagem. Essa prática é comum na Amazônia.)
O
“correntão” ou “arrastão” por certo aniquilou muitas microrregiões. Mas algumas
conseguiram sobreviver e nestas o legado misteriosamente frutificou.
Tornaram-se nichos de resistência, plataformas a partir das quais se permite
vislumbres que revelam aspectos da vida que um dia floresceu vicejante naquela
que foi a última região do Estado a ser desbravada. Tais aspectos, culturais e
históricos, nos ajudam a compreender as sociedades e nos damos conta que a
riqueza vem da diversidade e não da uniformização aniquilante. Provavelmente seja essa a grande lição que o
resgate nos proporciona.
A
ESPERANÇA RENASCE
Os
grupos sobreviventes, pequenos sítios e chácaras que conseguiram manter-se
produzindo na terra, manteve os hábitos e costumes que são a “alma” de qualquer
comunidade. Esses grupos escaparam do “correntão”. Muitos deles restritos a núcleos
familiares que lentamente foram se expandindo pelos arredores. E assim, foram se
espalhando, tal como “folhas de relva” de Walt Whitman, aparentemente frágil,
porém, insistente, persistente. É preciso palmilhar os caminhos sentindo a
força e a delicadeza da “relva”. O resgate histórico e cultural, é possível,
pois está além muito além da curiosidade antropológica ou arqueológica. A
cultura autêntica pode ficar submersa, mas permanece viva, bastando ser
estimulada para ressurgir em plenitude.
(
Nas músicas das periferias dos grandes centros urbanos, vez outra nos deparamos
com ecos surpreendentes de “côco de embolada”, ora transformado em hip-hop! É o
despertar de algo que sempre esteve latente no subconsciente dos povos. Nada
surpreendente, pois as periferias são, na maioria, originárias da zona rural
brasileira.)
Bruno
Sanches, nascido em 1988, e que pertence à novíssima geração, retomou o
invisível fio da meada. Em sua música ressoam as sementes espalhadas nos longos
anos anteriores ao seu nascimento. Frutos que conservam o sabor original. As
inevitáveis e avassaladoras mudanças sócio-culturais não foram o suficiente
para fazer desaparecer o espírito do
tempo. Embora muito tenha se perdido irremediavelmente, algo permaneceu,
flutuando na atmosfera daquela terra de amplos horizontes e estações bem
definidas: no inverno frio de rachar o cano, no verão calor de rachar mamona!
A
riqueza musical que por ali sempre proliferou exuberante, se deve às influências
de várias partes do Brasil e dos países próximos, Paraguai, Argentina, Bolivia.
O violeiro Índio Cachoeira, de Junqueirópolis, audidata e luthier, tem entre suas composições
peças que retratam a influência andina ou do Paraguai: Terra dos Andes, Bailado Andino, A Viola e a
Harpa, etc. Regiões fronteiriças tem características especiais. Que o digam
os habitantes da região missioneira, no extremo sul brasileiros. O Pontal, que num
passado nem tão distante, foi lugar de passagem de tropeiros, bandeirantes e aventureiros
de toda espécie, ao se sedentarizar, criou raízes mestiças peculiares. A música
de Bruno Sanches é mestiça, dialoga com várias linguagens. Desde a faixa
inicial soa como um reencontro!
RAIZES E FRUTOS
Fazendo
lembrar o saudoso Antonio Candido, célebre estudioso da cultura paulista, que
escreveu um belo texto para o LP duplo Caipira
- Raízes e Frutos (gravadora Eldorado,1980), Bruno Sanches, filho da
região, é fruto e herdeiro das velhas tradições, miscigenadas com inúmeros
sotaques. Neto de portugueses, faz parte da leva de imigrantes europeus que se
juntaram aos núcleos estabelecidos.
Bruno ouviu dentro de si e nos arredores do ambiente onde cresceu, o eco das antigas vozes. Isso é perceptível quando o ouvimos tocar: sua música é de dentro para fora e não somente reflexos de técnicas aprendidas nos conservatórios. É daqueles para quem não basta tocar, mas vivenciar. Como diria o saudoso rabequeiro Zé Gomes: não basta só tocar!
Seu
CD de estréia, “Do Barroco às Barrancas do Rio” (2019), é uma mostra de
aprendizados e vivências artísticas e pessoais. Tem o dom de transformar em
música o que sente e o que vê em torno de si, como o seu modo de marcar presença
no mundo. Condensou vários mundos e os traduziu para as cordas da viola,
abarcando um largo período em onze faixas cuidadosamente selecionadas e contextualizadas:
é vasto o mundo que tem como ponto de partida o barroco europeu e viaja por um
Brasil praieiro, por interiores, por largos horizontes, por montes e vales, infinitos
mundos de tempos e espaços. Passado e presente demarcam experiências humanas,
delineando futuros a partir das raízes
fincadas no Tempo.
Vários
mundos cabem entre o Barroco e as Barrancas do Rio: da mítica Canários, de Gaspar Sanz ao paraguaio
igualmente mítico Agustin Barrios, !Ha
Che Valle!; J. S. Bach em Prelúdio da Suíte I para violoncelo
(adaptada para viola caipira) a Dorival Caymmi, A Jangada Voltou Só, dialogando com a urbana Senhorinha de Guinga e Paulo Cesar Pinheiro. O disco é completado
por cinco composições próprias (Catira do
Vale, Elementais, Capricho Perfumado, Enlace e Amantikir) e uma inusitada
fantasia sugerida por um dos maiores clássicos sertanejos, Boi Soberano, onde o elemento forte é a história cantada com tanta
profusão de detalhes que parece um causo, até mesmo dispensando a parte
instrumental. Bruno faz uma transcrição puramente instrumental que transforma a
dramática história do Touro que salva a vida de uma criança durante um estouro
de boiada numa história universal: o Soberano e sua impactante presença pode se
passar em qualquer lugar do mundo: pode ser um Leão, um Elefante, uma Orca, bem
ao feitio da melhor tradução oral!
A
simples audição despreocupada do disco de Bruno já é o bastante para
recomendá-lo. Mas logo que se começa a audição se torna inevitável o convite
para seguir viagem, guiado pelo violeiro que carrega no bojo da viola os
espíritos do tempo que ali se aninham e
se revelam na ocasião apropriada. Se fosse defini-lo, diria que é aquele que
absorve atmosferas.
Chegou
à viola caipira influenciado por Ivan Vilela depois de estudar violão popular e
clássico. A viola foi uma escolha deliberada e nada casual. Leva para o instrumento
uma bela bagagem, riqueza que deverá ser explorada em futuros trabalhos. A
viola caipira (ou brasileira), a singela violinha, discretamente cada vez mais
vai se impondo, se afirmando no cenário da musica instrumental, provando estar
muito além do caipira. Bruno explora o variado material escolhido com tal segurança
que qualquer peça que executa na viola caipira parece ter sido criada
originalmente para esse instrumento. Assim acontece, por exemplo, com Canários,
de Gaspar Sanz, que adquire sob sua batuta certos coloridos que lembram a dança
campestre que influenciou o observador. É como se tivesse acabado de ser
composta para... viola caipira! Ora, dança rural e viola! Tudo a ver!
Não
obstante as enormes distâncias entre tempos e espaços, sua música tem algo de
familiar: retrata a presença humana nos lugares. Nem alegre nem triste nem
arrebatadora, apenas a musica perene, repleta de imagens primordiais
transitando entre o hoje e o ontem, abolindo diferenças entre o erudito e o tradicional.
Vem ao encontro do que a viola caipira representa enquanto potencialidade.
Bruno
Sanches é um clássico e um caipira erudito, não apenas pela formação, mas pela
própria índole, o que o fez empreender estudos etnomusicais (é formado pela
ECA-USP) que resultaram na produção de dois DVDs (Acordai Irmãos das Almas e Fandangos
Caipiras) sobre o universo fandangueiro, que continua vivo e ativo em
muitos lugares do Brasil Profundo.
Bruno
é um continuador da arte musical que junta o sagrado e o profano,
respeitosamente. Sua música é um reencontro com o passado, remonta ancestralidades
julgadas perdidas, porém, uma vez revividas ultrapassam a linguagem discursiva
e se reinserem nos tempos que ora vigem, nos fazendo lembrar o que somos, complementando
e nos apontando caminhos, a nós que somos o presente e o futuro...
“Um
povo sem cultura
é
um povo sem memória.
Um
povo sem memória
é
n um povo sem futuro.”
(De um mestre
Fandangueiro)
Nascido na pequena Jaciporã, devo minha formação “cultural e humanística” àqueles cantadores e violeiros, além dos contadores de “causos”, que povoaram minha infância. Os causos são um caso a parte. Eletrizantes aventuras culminavam as noites em volta das fogueiras ou das rústicas mesas lavradas a golpes de machado. Eram histórias de príncipes e princesas, aventuras picarescas, animais e árvores falantes; nossos heróis e heroínas, animados ou inanimados, todos estavam à nossa volta! O incógnito, se houvesse, ficava por conta dos mistérios espirituais, fora do alcance da compreensão terrena! O incognoscível, ou seja, divino ou não divino, não se discutia. (Joca)
“...mestre
João Baaraboz, o Jurucundo toca com as mãos de prata e canta histórias de reis
e rainhas dos reinos de além-mar, lendas antigas da música se desenhando no ar.
Além das serras, rios e mares. Longe, muito longe, tão longe que tudo se cala e
se perde nas palavras."
Ricardo
Guilherme Dicke, em Rio Abaixo dos Vaqueiros