Algo um tanto
fortuito e outro tanto aleatório, levou-me a uma descoberta que, a principio,
mostrava-se apenas como curiosidade, mas que a seguir revelou-se sumamente
interessante. Tinha em mãos um pequeno livro que, se não era propriamente de um
tesouro, era um mapa do tesouro.
Muita gente
certamente conhece o violonista brasileiro Turíbio Santos. Além de concertista
de renome internacional, tendo atuado na Europa por aproximadamente 20 anos
seguidos, realizando uma média de 100 concertos anuais, o que dá a bagatela de
mais de 2.000 concertos e a impressionante média de um concerto a cada três
dias, aproximadamente. Digo esses números, inexatos, apenas para situar quem
não conhece Turíbio Santos. Além de concertista erudito, Turíbio é um dos
maiores divulgadores e estudiosos da música instrumental brasileira. São
notáveis suas gravações de Chôro, especialmente para o Selo Kuarup,( que para a
alegria geral, está de volta, mas até hoje eu tento descobrir como adquirir
discos de seu acervo, pois no site não mostra como).
Voltando ao
nosso personagem: foi durante 15 anos diretor do Museu Villa Lobos e em 1983
fundou a Orquestra Brasileira de Violões. Oficialmente ele deve ter uns 70
discos gravados. Esta é uma apresentação bastante sucinta, mas não é de sua
música que quero falar aqui e sim do escritor de memórias.
A obra está na praça desde 2002 e nela o maranhense de São Luis nascido em 1943 conta episódios de sua longa carreira. Alguns picarescos, outros curiosos, outros engraçados, divertidos, daí o curioso título: “Mentiras... ou Não? Uma Quase Biografia”. Faz sentido, pois muitas das histórias parecem de fato pilhérias divertidas e se não forem verdades, deveriam ser. Se entram, por acaso, no rol das coisas lendárias, então definitivamente são histórias reais! Com certeza podemos chamar de “crônicas” de uma longa carreira de mais de 60 anos (na época em que foi escrito ele completava 40 anos de carreira. Agora está completando 60 e seria bem vinda uma continuação ou pelo menos uma nova edição aumentada. O que não deve faltar é coisa pra contar em tantos anos de atividade).
São
histórias leves e importantes, que revelam a construção de um artista brasileiro que se sente perfeitamente a
vontade seja numa sofisticada e luxuosa sala de concerto ou numa roda de choro.
Não são meras metáforas: dividiu palco com Andrés Segóvia, provavelmente o
violonista mais respeitado que já existiu, não apenas por sua técnica
fenomenal, mas por ter colocado o violão, o simples e acanhado violão, num
lugar de honra na história da musica universal; Rostropovich, Yehudi Menuhim,
Jean Pierre Rampal, etc. E também com Ismael Silva, Clementina de Jesus, Aracy
de Almeida e outros. Do rigor erudito ao improviso, este é Turíbio Santos.
A GLÓRIA EM
PEDRO OSÓRIO, A CONVITE DE SANTANA
Turíbio
Santos declara e não existe nenhum motivo para duvidar, que uma apresentação na
pequena cidade gaúcha de Pedro Osório a convite do Santana, está, pelo menos,
entre as cinco mais espetaculares que realizou ao longo da vida (e olha que não
foram poucas, entre elas uma raríssima apresentação no Petit Chateau Marie Antoniette, em Versalhes. Diz a lenda que em
200 anos, apenas quatro concertos se realizaram no local, um deles, uma
apresentação solo de Turibio).
Santana é uma figura icônica, uma lenda para os que o conhecem. Como toda lenda, possui a aura do implausível, se considerarmos a música do ponto de vista do show business. Tão tenho dúvida em afirmar – sempre de acordo com relatos que me contam – que Santana é um destruidor de paradigmas. Empregado num posto de gasolina, conhecedor e apaixonado por música brasileira, sua estória merece ser contada em prosa e verso. Tem o respeito, carinho e admiração de todos.
E Santana, nalgum belo dia teve o pensamento doido de levar grande nomes da música pra Pedro Osório. E os grandes nomes de nossa música cismaram de endoidecer também e essa santa loucura se ampliou e contaminou a todos, a ponto de um dos mais encantadores loucos que já existiu, Dércio Marques, ter se referido a ele como "doido". Logo ele!
O cachê? Santana paga do próprio bolso, de seu salário de empregado do posto de gasolina, o que me faz pensar que ele deve ter uma capacidade de convencimento fora do comum... Dizem que é seu amor pela musica, o que o faz digno de constar num livro chamado "Mentiras? Ou não..." Eu tenho uma suspeita: Santana escreve muito bem. Já tive oportunidade de ver alguns apelos que ele fez a alguns artistas conhecidos meus. Demonstra antes de tudo um conhecimento e uma sensibilidade fora do comum. Tenho pra mim que o artista quando toma conhecimento da existência de uma pessoa com aquela capacidade intelectual emoldurada por tanto paixão pela arte, não há quem resista. Não tenho conhecimento se ele já levou para Pedro Osório alguma "vaca sagrada" da MPB... Realmente, não sei! Se não levou a culpa não é dele nem da "vaca sagrada". Culpa, se houver, é da multidão de produtores e assessores que ficam em torno da "vacas sagradas", impedindo-os, as vezes, de entrar em contato com o mundo lá fora. Duvido que uma vaca sagrada, em pelo e presença, sensível como é, não se renda ao apelo de Santana.
A verdade é que são poucos os produtores
musicais do país que auferem um prestigio próximo ao de Santana, prestígio que
respeitosamente desdenha, não por qualquer coisa que lembre orgulho, mas por
sua própria postura perante a arte musical, sua Musa Maior e Absoluta. Não o
conheço pessoalmente e nem conheço detalhes de sua vida e atuação, mas a mim
parece que Santana deve ser uma espécie de monge para quem a música, seja
popular ou erudita, é algo sagrado.
A cantora,
compositora, pesquisadora Kátya Teixeira certa vez me disse: “Joca, você precisa
conhecer o Santana!”
De outra
feita, numa das poucas vezes que conversei com Dércio Marques, ao ouvir meu
entusiasmo pela musica brasileira – que, sem sem exagero, considero a melhor do
mundo -, disse mais ou menos assim:
“Joel! Tu precisa conhecer um doido!”
Na época, eu
ainda não conhecia o prestigio de Santana, a principio nem sabia de quem se
tratava. Mas ouvir aquilo de Dércio, de quem se pode contar saborosas e
inacreditáveis histórias – Mentiras... Ou não? – só me veio a mente uma frase
como resposta:
“Bom, se tu
diz que o homem é doido, deve ser doido mesmo!”
Quem
conheceu Dércio sabe o que isso significa. Poeticamente, Dércio era conhecido
por todos como o “eterno menino”, mas se o chamassem “moleque tranquina” talvez
estivesse mais perto mais perto da verdade do que a pureza do “menino de roça”!
Ele era um incorrigível presepeiro e adorava pregar peças, cujas “vítimas” por
vezes não achavam nada engraçado.
Bom, é de
coisas assim, ao lado de informações preciosas sobre o mundo da musica, que o
livro de Turíbio trata. Isso nos oferece uma dimensão humana raríssima, vindo a
tona, integralmente o ser humano e o artista: “carnadura humana”, como diria o
escritor paraguaio Roa Bastos. As histórias de Turíbio se misturam às que
contam de Dércio e de Santana, pois são navegantes com passagem livre em qualquer
meio social. São seres que se expressam na pura entrega, que reflete fielmente
sua visão de mundo, que acreditam na Arte autêntica, sem falsas roupagens. Sua
postura perante a Arte é tão pura que é mais ou menos como ver um gênio trabalhando
em seu laboratório secreto. Sobre o concerto em Pedro Osório, nas palavras de
Turíbio:
“...Santana conseguiu fazer da
apresentação em Pedro Osório – cidade de 15 mil habitantes – um momento de
afeto, amizade, cultura, música e otimismo como raras vezes vivi em toda a
minha vida.”
E para
terminar, como ninguém é de ferro, os fazendeiros locais, tomados pelo
entusiasmo, ofereceu um gigantesco churrasco para toda a cidade. Santana tornou
o evento num convívio democrático, repleto de sincera harmoniam eclipsando as
diferenças sociais.
SEGÓVIA EM
PERNAMBUCO
Outro episódio
que vale a pena ser mencionado: o grande violonista Andrés Segovia iria dar um
concerto no famoso teatro Santa Isabel, no Recife. Mas eis que ele, andando pelo teatro percebeu barulhos externos
poderiam entrar no teatro durante o concerto. Ora, é notório o zelo que os
espanhóis tem em suas apresentações e Segóvia simplesmente decidiu que não
faria a apresentação. Quem achava João Gilberto chato, não sabe o que um
violonista espanhol é capaz de fazer para garantir a lisura de sua arte em
irmanada parceria com o amado violão. Os ingleses chamam um de seus grandes
guitarristas de “deus da guitarra”. Isso é simplesmente fora de questão em se
tratando de espanhóis: seria mais coerente o espanhol tratar seu violão como um
“deus” – que perdoem a possível blasfêmia, mas não encontro outro termo.
Inconformado e profundamente irritado, Andrés Segóvia fechou-se em seu camarim.
Algum tempo
de passou, o diretor do teatro bate a sua porta;
- Maestro, dez minutos para o concerto.
- Não vou
tocar. O barulho do bonde incomoda – responde Segóvia
- Perfeitamente, Maestro. – responde o
diretor imperturbável. Segóvia estranha, pois o mesmo em nada tentou
argumentar... Cinco minutos depois,lá vem o diretor:
- Maestro,
cinco minutos...
- Já disse
que não vou tocar. Explica ao público!
- Perfeitamente, Maestro. – e se afasta
tranquilamente. Segóvia fica preocupado, não sabe como reagir, pois, mesmo
tendo temperamento explosivo, era um cavalheiro. Era bizarro. Daí a pouco,
retorna o diretor:
- Maestro, o público o espera. – E com um
sorriso no rosto, abre caminho para o gênio do violão dirigir-se ao palco.
Aperreado
com o murmúrio do público que chega até ele, Andrés Segóvia decide ir ele mesmo
dar a nóticia. Turibio não conta exatamente assim, mas eu suponho que Segóvia
pega o violão e leva consigo como quem quisesse junto a si seu fiel
companheiro. Vai enfrentar seu maior desafio, avisar que não vai tocar. Violão em punho, sobe ao palco, onde a multidão o acolhe fervorosamente. Tomado pelo
entusiasmo, Segóvia se sente na obrigação de ao menos dar algumas dedilhadas...
suponho. Mas eis que o concerto prossegue, impecável, contagiante. Os aplausos
são comoventes e Segóvia está feliz. Num momento, alguém da produção se
aproxima dele:
- Maestro, o senhor percebeu que o diretor é surdo?
É provável que Andrés Segovia tenha se lembrado lembrado do querido amigo Heitor Villa-Lobos, que parecia possuir a incrível capacidade de absorver, em si, algo que podemos chamar brasilidade, a impressionante junção de opostos que nos une, apesar da multiplicidade de cores e sotaques.
Mentira... Ou não? De fato, não importa, mas, evidentemente, não! É a mais pura verdade! E, modestamente, muitas histórias (ou lendas) deixaram de ser mencionadas. Uma delas: Turibio foi realmente professor do João Omar, o filho do Elomar? Ou deu algumas aulinhas, como costumava dizer o Elomar, ao apresentar o filho, exímio violonista?
Turíbio
Santos é um artista com ressonância planetária que nunca deixou de ser
brasileiro. É o que se chama fiel às raízes musicais e de alma. É daqueles
brasileiros que verdadeiramente nos representam. É um gênio ao qual se juntam
Villa-Lobos, Tom Jobim, João Pernambuco, Egberto Gismonti, Luiz Gonzaga,
Dorival Caymmi, Noel Rosa, Cartola, Vital farias, João Pernambuco, Chiquinha
Gonzaga, Elis Regina e tantas outras estrelas.
São dotados
de talento, paixão, alegria e entusiasmo pela vida. Isso os torna capazes de
realizar proezas que resistem a qualquer lógica cartesiana. Essa “biografia” um
tanto delirante de Turíbio Santos poderia ter sido escrita a quatro mãos com o
mestre Ariano Suassuna. Seria um livro
enorme, mas a gente iria ler com prazer,
orgulho e alegria. O mestre paraibano de nascimento e recifense por adoção seria capaz de dosar ironia, deboche, paixão,
alegria e amor pela vida, sob os aplausos de Darci Ribeiro.
Nossos artistas, de todas as artes, do romance
aos estádios e palcos, exercem simultaneamente muitos outros ofícios, mas
especialmente o de garimpeiros e ourives. Mas também poderiam Alquimistas, pois
descobrem e fabricam tesouros!
Viva a Cultura, a Arte e o Povo Brasileiro!