O OVO ESTATELADO: DE VOLTA ÀS RUAS

 


 

Embora exista certo esforço para fingir que nada está acontecendo na cidade, no país e no mundo, certa insistência de que tudo está “normal”, estamos, sim, sob os efeitos de um acontecimento raro na história humana: o bastante para saber que de uma Pandemia, ninguém sai incólume.

A cada vez que colocamos o nariz fora de casa, no agora território temível das ruas, um temor primitivo nos assalta; alguma coisa, no mais profundo recôndito de nossa alma, nos faz sondar o perigo, como o faria um coelho ao farejar o exterior da toca, num bosque cheio de predadores. N’algum momento, tudo voltará ao normal. Ou a algo “parecido” ao normal, afinal, tudo o que nos conduziu a esse estado de coisas, é-nos desconhecido: foi um mero acidente ou esse vírus altamente nocivo à vida humana surgiu seguindo um secreto roteiro, um roteiro que resulta de infindáveis erros? Encurtamos distâncias, eliminamos barreiras. O que talvez tenha faltado foi o bom discernimento de saber que algumas dessas barreiras o são de proteção. Falta e ainda falta a percepção de que a Terra é um organismo vivo e interdependente. Se esse percepção não for alterada/modificada, é muito provável que venhamos a conhecer outros adventos mortais, seja sob a forma de vírus ou de outros fenômenos. Contudo, mesmo divisando a formação de sombrias nuvens no horizonte do nosso tempo, vale a pena acreditar que será bom ter  nossa vida de volta. Como diria o saudoso amigo de todos nós, o poeta João Bá: “será tão bunito que só vendo!”

Para quem cumpre o isolamento social imposto pela quarentena contra a propagação do covid 19, sair às ruas é como desembarcar num outro mundo. Por mais formas de comunicação que possamos ter desenvolvido graças à nossa criatividade quase infinita, sem o contato direto, será sempre virtual.  E virtual, bem o sabemos, é tão somente um simulacro, por mais que seus efeitos, para o bem ou para o mal, sejam reais. Nada será como antes, e nada se compara ao olhar direto: não é a mesma coisa que dizer vida digital ou vida analógica. Ao dizer analógico ou digital, estamos falando da técnica, e não da vida, em si!




Embora viver sob isolamento tenha transformado radicalmente o nosso modo de ser, é certo que voltaremos ao velho modo de vida; será um mundo diferente, sem dúvida, mas as motivações que nos nortearão, serão as mesmas, pouco importando as alterações na nossa forma de nos relacionar com o mundo.

Para o bem ou para o mal, o “outro” será percebido de outras formas. Não creio que possamos regredir – apesar de certos acontecimentos provarem que, sim, é possível regredir, se não de forma total, ao menos pontualmente. Nos primórdios da civilização, numa das muitas Eras intermediárias do desenvolvimento do ser humano, o “outro” era potencialmente um inimigo, um hostil. Mas como existiam exceções, criou-se por essa época o hábito do “cumprimento”, geralmente um ou vários gritos que poderiam ser “olá!”, “quem vem lá?”, “aqui é de paz!”, hábitos que até hoje se reproduzem em alguns lugares do planeta, especialmente em lugares onde exista resquícios de vida pastoril. O grito ou o cumprimento era o aviso para não temer quem chegava ou quem recebia. Ou seja, de uma situação temerária resultou um avanço civilizatório. Quem conta essa deliciosa e pertinaz história do cumprimento é nada mais ou menos que José Ortega Y Gasset, um dos mais notáveis filósofos de todos os tempos,  em sua obra O Homem e os Outros. Assim o diz, textualmente: “a aproximação de um homem a outro homem foi, até pouco tempo, operação perigosa e difícil.” E se criou o cumprimento, , um preventivo contra mal entendidos fatais.




Que lições podemos tirar da pandemia? São muitas as possibilidades e se prestarmos atenção, aqui e ali deparamo-nos com exemplos e/ou sugestões de como lidar melhor com a natureza, como nos prevenir, etc. Nossos comportamentos, há muito arraigado a um exacerbado  individualismo, lentamente deve tender para atitudes de solidariedade, etc. Tais saldos positivos não serão regra, pois o ser humano é contraditório. Muitos melhorarão, mas muitos piorarão; muitos reagirão positivamente, outros de maneira destrutuva. Nisso não reside lá muita novidade. O Homem de Neendhertal conviveu  muito tempo com o homo sapiens, mesmo sendo de níveis evolutivos completamente diferentes! Aliás, se repararmos com certa atenção, haveremos de verificar que alguns neendhertalis continuam entre nós até os dias de hoje! Repare bem... Mas, já pensando num mundo pós pandemia, temos desde  já de nos adaptar às inevitáveis novas situações.

 

NAS RUAS

Dia desses, deixei de lado a justificativa “sair só por necessidade” e sob o argumento de comprar comida pronta, saí por aí! Flanar, como dizem os franceses, bater perna em bom paulistanês. Meu bairro, como quase todos os bairros de Sampa, é repleto de lugares onde se serve refeições ditas “populares”. Atualmente, não obstante a variedade de ofertas, todos tem em comum a fatídica faixa com o aviso: “Apenas Para Retirada” e outra, menor e mais estreita, impede as pessoas de entrarem. Dentro, as mesinhas e cadeiras de madeira, abandonadas e vazias, pacientemente esperam sua vez de ser útil.

Até na pastelaria e caldo de cana, o atendimento é distanciado: “para retirar”. É a Nova Lei. Ora, a Lei! Lei para amigos e para os não amigos? Não são tempos para a burla de leis que podem salvar vidas. Lembrei-me de um poema:

A Lei do Quão

Deve ocorrer em breve

Uma brisa que nos leve

Um jeito de chuva

À última branca de neve.

 

Até lá, observe-se

A mais estrita disciplina.

A sombra máxima

Pode vir da luz mínima.


Com a Lei do Quão e com Paulo Leminski, Distraídos Venceremos! Nessa hora do lusco-fusco, distraído, caminho pela calçada.

Acostumamo-nos com as novas regras, os seres humanos são extremamente flexíveis e esse deve ser um dos segredos de se ter tornado a espécie dominante no planeta. E o medo? Também nos acostumamos com o medo? Ou somos indiferentes ao medo e ao perigo? Ou a fatalidade pode estar à nossa espreita, em cada esquina, em cada curva do caminho? Não vamos nós, nos tornar, como o personagem de um genial escritor, pouco conhecido entre nós, o paraguaio Roa Bastos, autor do conto “Contar um Conto”. Em inexatas palavras, um breve resumo:

Um sujeito sonha com o lugar onde morrerá e ao acordar, não se lembra onde é. Como ele tem intenções de escapar do terrível destino, procura de todos os modos se lembrar do fatídico local, para evitá-lo e assim enganar a Véia da Foice. Recorre a psicólogos, especialistas em hipnose, curandeiros, etc. e todas as tentativas resultam frustradas. Então ele resolve sair menos de casa, só o essencial. Cada vez menos tem necessidade de sair. Mal freqüenta  o quintal. Depois de algum tempo, nem ao quintal se aventura, fica só no interior da casa. Pra que? Tem empregados que lhe fazem tudo. Chega ao ponto de não mais sair do quarto, aterrorizado. Roa Bastos assim descreve: “Ele acabou encerrando-se dentro de sua própria casa. Uma noite lembrou-se bruscamente do lugar do sonho. Era o seu próprio quarto.

Não pensem que estou minimizando ou falando da inutilidade de tomar cuidados. Pessoas continuam morrendo às centenas, aos milhares e ainda sabemos muito pouco da doença. Sabemos que não tem cura, por ora. Mas também sabemos de alguns procedimentos básicos para se evitar o contágio e com tais regras, nos guiamos. Não evitaremos o fim do mundo, mas podemos adiá-lo, como diz Ailton Krenak em seu instigante livrinho “Idéias Para Adiar o Fim do Mundo”.

Fim de mundo que não é simples metáfora. O comportamento de nós, humanos, tem muito a ver com tudo isso. É impossível nos desvincularmos da responsabilidade, porque somos interdependentes, somos todos -  seres vivos ou inanimados - como elos de uma mesma corrente: o Planeta é nossa casa e todos somos seus moradores. Seja rico ou pobre, o destino que nos aguarda é comum. Com relação à Pandemia, por enquanto os cuidados são relativamente simples: higienizar mãos, ao sair de casa usar máscara e manter distanciamento social. (Dizem que a Terra entrou num novo período, o Antropoceno, termo criado pelo químico holandês Paul Crutzen. Vamos torcer para não ser o último ou o mais breve).

Fingir que a pandemia não existe e agir como se nada estivesse acontecendo, é tão surreal quanto o personagem de Roa Bastos que acreditava conseguir ludibriar a morte. Entretanto, autoridades agem assim, brincando perigosamente de roleta russa com a vida da população, tanto no Brasil como em outros países mundo afora. E por falar em “mundo exterior”, causa espanto que justamente na nação mais rica e com maior acesso às mais refinadas técnicas que a ciência pode disponibilizar, seja o país com maior numero de mortos e infectados: os EUA. Aparentemente tal se deve ao comportamento errático e insano de seu líder máximo, mas também pode ser indicativo de que algo de muito errado ocorre na terra do Tio Sam. Ou, pelo menos indica que nem tudo é tão perfeito: a Terra dos Sonhos pode ser tão somente um invólucro, uma distopia? Os arredores de Detroit, que parece ter sido arrasada por intensos bombardeios, tem muito de simbólico; pode ser a simples fissura de um sistema carcomido que se rompeu. Ou o mundo maravilhoso e lustroso pode ser apenas uma miragem, um cenário miraculoso. O recrudescimento violento de parte de sua sociedade, justamente os mais ricos, pode ser um sinal de que o mundo cenográfico pode desabar a qualquer momento...

Sob as máscaras vozes ecoam, abafadas. Chegam a mim trechos de conversas. Dois velhos falam de um certo senador:

- É, compadre! Tinha um dinheirim bom, bem guardado!

- Bem guardado nada, compadre! E fiofó é lá lugar de guardar dinheiro? – Do pouco que ouço, a história é contada com ares de pilhéria, de ficção. O segundo homem arremata: - Tem quem pense que a gente é burro, só porque usamos essa focinheira!- aponta para a máscara -  Que trein estranho, homi!

Sigo em frente e  também confesso minha estranheza à vida sob isolamento, apesar de muitos dos novos hábitos, rigorosos, terem já se tornado rotineiros. Desenvolvi, entrementes, outras habilidades: aprendi, por exemplo, a reconhecer pessoas pelo olhar ou pelo formato do pescoço, as partes descobertas da cabeça. E também não consigo dissimular a sensação de estranheza que me assola a cada vez que tenho de defrontar com o mundo do lado de fora. Ora, sei que existe um vírus mortal pronto para apanhar o primeiro descuidado. E também é estranho correr de máscara! Vai contra todos os princípios que a idéia de correr nos infunde: liberdade!

Porém, mesmo em meio a tanta perplexidade nesse mundo que literalmente virou de ponta cabeça, ainda vale refletir: Entre as gentes simples, que lutam pelo pão de cada dia, é comovente o esforço e a coragem de quem sabe do perigo, mas igualmente sabe das  necessidades e conscientemente decidem enfrentar. Tal decisão  resulta de uma combinação de força, coragem, medo e fé; já entre os não necessitados e sobretudo àqueles que procuram auferir vantagem  da tragédia – seja política ou econômica – além da falta de empatia, da incapacidade de se colocar no lugar do outro, existe um componente de sordidez inominável, que faz de nossa espécie, provavelmente os seres mais contraditórios do Universo, capaz de oscilar entre a grandiosidade  e a mesquinhez.

E entre tantas outras estranhezas que se avolumam na sociedade em crise, há os que negam. E a negação é o que há de, digamos, mais estrambótico e extravagante, seja por ignorância ou má intenção. Há também os cínicos e esses tais são perigosos, pois fazem cálculos macabros sem qualquer constrangimento: transformam vitimas em meros números. E pode acontecer de todas essas nefastas características se juntarem numa mesma pessoa ou num grupo de pessoas: há quem seja ao mesmo tempo ignorante, mal intencionado, cínico e cruel.

UM OVO ESTATELADO

Outro diz, num afrouxamento involuntário das regras de isolamento e distanciamento, vi-me diante de um restaurante onde serviam refeições para viagem. Quis provar algo diferente do meu tempero e solicitei duas refeições e ali fiquei, à segura distancia de outros que igualmente aguardavam.

Nisso chegou uma moça, aparentemente uma adolescente tardia, devido a seus gestos nervosos, estabanados, como se houvesse certa incongruência entre o que o cérebro ordenava e o corpo cumpria, sempre esbarrando em algo ou alguém. Pálida, aparentemente seu exercício favorito era estar diante da televisão ou do computador. Era a própria imagem do conflito consigo própria.

Chega o atendente e ela, lendo um papel que desamassou, apressadamente diz o que quer:

- Bife a rolê, bife a parmeggiana, lagarto ao molho madeira. Acompanhando arroz, feijão, batatas cozidas temperadas e três ovos estatelados.

- Ovos, como?! - – o atendente espicha o pescoço curto.

- Estatelados, ué,...

- Bem, eu não conheço. Perá um pouco... – chama um colega:

- Como é que se faz ovos... Como é mesmo moça, o ovo que você quer?

- Eu quero ovos estatelados, pô! – o segundo rapaz ergue os ombros, confuso. A menina fala ao celular: - Esse ovo que vocês querem... Como é mesmo? – Passam alguns segundos, ela exclama: - Por quê não disse logo, pô! Ninguém sabe o que é ovo estatelado? O quê? Ora, vá a m...! - Chegam mais pessoas, a fila aumentando e aquele pedido emperrado. Não me contenho e dou o meu palpite:

- Ela quer ovos fritos...

- Ah! – faz o atendente, - Ah, bom! – e se dirigindo a ela: - São “ovos estrelados”.

- Estrelados? – a moça arregalou os olhos – Estrelados? – alguns em torno riem. A menina fica rubra.

 Não resta dúvida, ela está tensa. (Como não poderia deixar de ser, pensando bem.)

 São dias em que os nervos estão à flor da pele. Em alguns bairros paulistanos houve “barraco de granfino” em restaurante. Espero que tal costume não se espalhe, pois nada pode ser tão patético como “barraco de granfino”, onde discussões banais se tornam guerra de classe, cada lado disputando quantos anos estudaram na Europa e nos EUA...

Voltando à nossa pequena questão, a dos ovos. A confusão em torno de ovos fritos ou estrelados ou estatelados foi resolvida e, felizmente, em volta as pessoas riem.

Um momento de descontração. Quer dizer, “felizmente” para o bem geral, pois a menina não gosta nem um pouco de estarem rindo, pensa que estão a caçoar dela. O atendente, muito sério, chama a próxima pessoa, é um senhor de idade. A moça se afasta se coloca ao lado, esperando, emburrada

 E nessa, dos tais “ovos estrelados”, eu faço côro com ela, pois não consigo entender a lógica de se dizer “ovos estrelados”. De fato, entre “estrelado” e “estatelado” não vejo grande diferença...

Porque “estrelado”? Mistérios de nossa rica língua portuguesa. Segredos enigmáticos de nossos regionalismos que faz o inocente pãozinho ser chamado Brasil afora de “pão cacetinho”(Rio grande do Sul), “pão careca”(Pará), “pão carioquinha”(Ceará), “pão Jacó” (Sergipe) e por aí vai!

 

Pensei em enriquecer a interessante discussão acrescentando que também poderia ser “ovos estalados”, mas as demais pessoas que aguardavam na fila não pareciam lá muito interessadas no colóquio linguístico...


 um perfeito ovo estalado. Estrelado. Frito. Ou estatelado!

Mas o impasse secreto não me abandonou, permaneceu vívido. Já li e ouvi muitas vezes a expressão “ovo estalado”. Estalado... De estalar?

Porquê “ovo estalado”? Teria a ver com o chiado que o ovo faz ao ser fritado, que pode lembrar vagamente o “estalar” de algo? As origens misteriosas de diversas expressões de nossa língua pode ter as explicações mais singelas e prosaicas possíveis. Alguém sabe o que significa “sem eira nem beira nem tribeira”?...

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