A CANTORA VANUSA

 


No último 8 de novembro o mundo artístico perdeu a cantora Vanusa Santos Flores, a Vanusa, dona de uma carreira de mais de 50 anos, ela que costumou ser bem sucedida em vários campos da carreira artística nos quais se aventurou. Quem a conheceu de perto e quem a viu em ação garante que sua intensidade e uma forte capacidade de dramatização, poderia ter tido uma vitoriosa carreira como atriz – chegou a participar de novelas (Cinderela 77) e teve presença no teatro, em 1999, num espetáculo com fortes traços biográficos.





                                                        A capa de seu primeiro disco

Algum dia algum biógrafo de respeito haverá de fazer justiça à sua rica história, sua trajetória estelar, como artista e como pessoa, uma vez que é difícil dissociar a artista da pessoa, no seu caso. Vanusa foi durante toda a sua vida ativa uma estrela que teimosamente insistia em brilhar. E seu brilho, mesmo não tendo sido constante, especialmente na etapa final da carreira, nunca foi fugaz, melancólico; sempre foi intenso. Fosse o auge de sua carreira ocorrido nos dias atuais, onde performances não coincidem exatamente com talento, Vanusa seria daquelas celebridades que viralizam instantaneamente, que abrem uma conta no twiter e em duas horas têm 2 milhões de seguidores...! Para se ter uma idéia dos impactos que sua presença causava, um jogador de futebol mediano, meia que jogou no Palmeiras e fez carreira na década de 1970, teve seu nome mudado de Toninho para Toninho Vanusa, por ele ser loiro de cabelos esvoaçantes! (Outro jogador do mesmo período que a carreira associada a uma cantora popular da época foi o ex goleiro do Cruzeiro e do Flamengo, Raul Plassman, que era chamado pejorativamente  pelas torcidas adversárias  de “Vanderléia” devido às roupas coloridas que usava, numa época em que goleiros de futebol só vestiam uniforme preto. “Vanderléia”, sabemos, é a eterna ”Ternurinha", Musa da Jovem Guarda...)

 Vanusa foi daquelas cantoras que nasceram prontas para o oficio. Sua carreira não foi programada, não teve uma preparação direcionada ao sucesso, ao contrário; fez-se artista por sua conta e risco, certamente contra os desejos da família. Aos 16 anos, em 1963, morando com a família na região de Uberaba, fazia parte de um conjunto local, os Golden Lions. Descoberta por um agente publicitário veio para São Paulo trabalhar na Agencia de publicidade  Prosperi, Magaldi e Maia. Em 1966, nos últimos anos do movimento Jovem Guarda, apresentou-se no programa do “roqueiro rural”, Eduardo Araújo (que era chamado o “Bom”. “Bom” no sentido, o “tal”, “o melhor”, “o porreta”!) e então a escalada na carreira musical foi fulminante: em 1968, aos 21 anos, lançava seu primeiro LP, seguido por outro no ano seguinte (1969) e seguiu-se uma carreira onde lançava em média um LP a cada dois anos até 1997. (Acresça-se que já nos primeiros trabalhos conseguiu emplacar e impor composições próprias , numa época em que as gravadoras tinham poder absoluto sobre o artista que praticamente faziam o que lhes era determinado. Não existia a figura do artista independente e tampouco trabalhos puramente autorais. Outro grande feito de sua autoria foi ter lançado “Paralelas”, de Belchior, em 1975. Seu prestigio deveria estar nas alturas, pois um ano antes, em 1974, lançara seu maior sucesso: “Manhãs e Setembro”. Como nem tudo é perfeito, o casamento com o homem de sua vida, Antonio Marcos, terminaria em  1976. Mas a música continuava sendo seu combustível – ao tempo em que igualmente a consumia: a vasta produção musical continuava, apesar dos transtornos em meio a vida pessoal conturbada. A partir de 1997 a produção de discos praticamente cessou, só voltando a entrar num estúdio em 2015, numa produção bancada por Zeca Baleiro.




Vanusa foi a personificação -  um quase clichê - do esplendor, da glória e da tragédia de uma artista que não tinha nenhum receio em se expor sem reticências, sem meios termos ou filtros, característica que deve ter lhe custado muito caro:  sendo uma incorrigível teimosa, jamais se submetia – nem sob violência e coação física – e o único elemento ao qual ela se submetia docilmente  era a Arte. Definitivamente era uma escrava da Arte e à mesma dedicava o seu melhor, com intensidade e paixão inigualáveis.

Como sempre acontece com os que não cedem às normas, pagou caro: fosse ela uma artista cercada de assessores e de produtores, e muitos dissabores provavelmente lhe teriam sido poupados. A começar pelo triste episódio que quase manchou irremediavelmente a última etapa de sua vida/carreira: todos hão de se lembrar da ocasião em que ela, num evento secundário (para quem teve a carreira que ela teve),  esqueceu a letra do Hino Nacional. Tratava-se de um evento de funcionários públicos  na Assembléia Legislativa de São Paulo e a razão do erro da letra do Hino foi estar sob o efeito de medicamentos, coisa que qualquer assessor mais atento teria evitado... No ano seguinte (2010) novamente num evento secundário, no Parque do Idoso, Manaus, voltou a errar letras de musicas, desta feitas confundindo e misturando “Sonhos de Um palhaço” e “Como Vai Voce”, de autoria de seu ex-marido e certamente o grande amor de sua vida, Antonio Marcos.




Aqui, um breve parêntesis: sempre que se falar em Vanusa, imediatamente vem a mente Antonio Marcos. Uma desses artistas de apelo popular que fazem parte do Panteão da Música Brasileira – assim mesmo, com “M” maiúsculo – pois Antonio Marcos, grande cantor, boa pinta,  inteligente e talentoso no que se propunha fazer: música de apelo popular, mas com requintes de produção caprichada. Uma música inteiramente desvinculada de qualquer modismo de época ou engajamento político e/ou social. Autor de sucessos como “O Homem de Nazaré”, “Porque Chora a Tarde” e muitos outros, era também especializado em versões estrangeiras, como “Torneró”, de Santo Califórnia. Com Vanusa formava o “casal perfeito” -  bonitos, talentosos e bem sucedidos. Mas, infelizmente, a união dos dois terminou num desfecho muito apropriado para um dramalhão mexicano: o casamento chegou ao fim por conta do alcoolismo de que sempre foi dependente Antonio Marcos. Foi mais uma carreira destruída pelo uso desmedido do álcool, como Leminski e Raul Seixas, que em certa época não era tratado como doença. O legado que ficou: certamente foram muitos os casais que viveram seus melhores momentos embalados pelas canções de Antonio Marcos e Vanusa e isso é um feito de que deve ser respeitado.

(O pessoal que nos últimos tempos se encanta com os “breganejos” ou algo que chamam – não sei porque! - de “pagode” poderiam revisitar, vez ou outra, a um passado nem tão longe e ouvir, por exemplo, “Porque Chora a Tarde”:

“... a tarde está chorando por você

Ela sabe que o amor partiu pra sempre

A tarde entristeceu junto comigo

E eu preciso desta tarde como abrigo...”

...e talvez se perceba que não apenas a política e a vida social se deteriorou, a arte também! Contudo, ainda sou um entusiasmado pela musica brasileira, a melhor de todas!)

 

O RECONHECIMENTO DE BALEIRO

Por pouco e Vanusa seria marcada por seus erros no palco, pouco importando se estava sob o efeito de medicamentos. Justiça se faça a Zeca Baleiro, que bancou do próprio bolso a produção de seu último álbum, “Vanusa Santos Flores”, em 2015, aos 68 anos.

Zeca Baleiro tomou tal iniciativa, inconformado com o fato de uma cantora com seu valor arriscar-se a terminar a carreira manchada por erros na letra do Hino Nacional... Tais episódios, eventos meramente secundários, o da Assembléia Legislativa e do Parque do Idoso de Manaus, podem ser creditados mais a sua coragem ao se expor, mesmo sabendo que “não estava legal de saúde”, digamos assim.




Quem acompanhou sua carreira e sua vida sabe que ela o fazia por coragem e não desleixo/irresponsabilidade. Lembro-me de uma entrevista num popular programa de televisão onde ela incentivava as mulheres a “ir a luta na vida”, em tempos anteriores aos vários movimentos impulsionados pela Lei Maria da Penha, cuja implantação incentivou as mulheres a lutarem contra as tiranias de uma sociedade violenta  e machista. Na época, ela falava na verdade, de outras lutas, da necessidade de assumir um protagonismo. No entanto, apesar de ser livre e dona de suas decisões, não me ocorre que em algum momento de sua vida tenha sido uma “militante”, num sentido literal. Parece-me, no caso, que sua chamada à ação era mais num sentido pessoal, das conquistas do dia-a-dia, e não um engajamento mais amplo, social. Seu engajamento a meu ver, foi por assim dizer, casual, e não de forma elaborada. Seu “feminismo”, no caso, foi mais puro fruto da vivência social; ela tinha a coragem dos sobreviventes, pois,  aparentemente não media conseqüências  e nem se deixava levar pelo medo: o desafio surgia, ela o encarava com o que tivesse à mão e seguia em frente, indiferente às seqüelas. Numa de suas polêmicas entrevistas, declarou certa vez o arrependimento por não ter denunciado  a violência que muitas vezes sofreu de ex maridos.

É provável que  as  crises de depressão, momentos em que foi dependente de álcool e drogas, fossem resultante de traumas não resolvidos. Entretanto, não se rendia e reagia com discos que produzia profusamente enquanto teve condições,  nos livros autobiográficos, de títulos significativos: “Vanusa – Ninguém é Mulher Impunemente”. E “A Vida Não Pode Ser Só Isso”. Seu feminismo, como se vê, foi algo mais intuitivo, conseqüência de sua vivência.



Quando faleceu, internada numa clínica em Santos, em em 8 de novembro do fatídico ano de 2020, foi daqueles casos em que se diz: descansou. Descansou de uma vida intensa, seja em glória ou atribulações. Deixou para os fãs um rico legado, que não se resume somente a musica, mas aos livros e aos exemplos por suas posturas honestas e corajosas.

Importante ressaltar, especialmente para o publico de hoje que não a conheceu no auge, é que Vanusa foi, como artista e como pessoa, um verdadeiro furacão e quem quer que tenha cruzado seu caminho, não o fez impunemente - para o bem ou para o mal: a violência – hoje, infelizmente, banalizada – sofrida de ex-maridos ,a marcou, mas também deixou estimulou a ter coragem, tal como se deu no espetáculo “Ninguém é Loura Por Acaso”, produzido  pela jornalista Léa Penteado.

 

São poucas, muito poucas as palavras, insuficientes,  que escrevi aqui sobre Vanusa. Quando criança e adolescente, o escriba aqui  ouvia suas músicas e assistia suas apresentações na televisão por mero deleite! Era mais um dos milhares de fãs, apaixonados por sua beleza, sua voz, seu encantamento. Foi com pesar que soube dos episódios dos erros das letras, das chacotas  que muitos fizeram.

O escriba quis  lembrar no blog sertão-paulistano, que a grande cantora Vanusa não foi esquecida. Neste momento algum coração deve estar pulsando, enternecido, estremecido ao som de sua voz, cativado por sua paixão!...

E assim, nossa memória vai perdendo a vitalidade e sua carnadura real para se transformar em História. Há, nisso, algo de melancólico, mas a melancolia, de fato está em nós que lentamente vamos perdendo as referências com o desaparecimento, prematuro ou não, de nossas referências. Lá se foram Aldyr Blanc, Sérgio Ricardo, Nicete Bruno, só pra falar dos mais recentes.

Vanusa é de uma geração anterior à minha. Ela se formou como pessoa em plena ditadura militar, eu cresci sob a ditadura. éramos, entretanto, de ambientes diferentes: ela urbana, eu menino de roça. Ambas gerações, bem como todas as gerações a seguir, foram marcadas pela presença sombria da ditadura.  As marcas de uma ditadura nem sempre são visíveis, a maioria são invisíveis, quase indeléveis, mas se engana quem pensa que não são profundas... Conheço gente de minha geração diz ter passado incólume pelo periodo ditatorial, não tendo presenciado nenhum tipo de opressão, que havia normalidade geral, que não se falava em corrupção (portanto, não havia), que as escolas eram melhores, que não havia violência, etc. Há nisso um implacável e gigantesco engano, a começar pela incapacidade de perceber o que se perdeu, ou seja, a consequente perda de análise critica: era preciso estar numa bolha impenetrável para não se dar conta de que algo, no mínimo estranho, pairava no ar. 

De maneira simbólica, dá para pressentir razões por ter esquecido a letra do Hino, algo que normalmente deveria soar em nossos espíritos como uma oração, portanto, dificil esquecer, especialmente nossas gerações que eram obrigadas a cantar o Hino Nacional diariamente... Ter esquecido o Hino pode ter sido uma reação tardia, protesto inconsciente por terem-no usurpado de nós de maneira tão vil... Tal afirmação é por minha conta e risco, mas quem tem a rebeldia no sangue e na alma, sempre há de revelar, de um modo ou de outro.




 DISCOGRAFIA:

 

           1968 - Vanusa

           1969 - Vanusa

           1971 - Vanusa

           1973 - Vanusa

           1974 - Vanusa

           1975 - Amigos Novos e Antigos

           1977 - Trinta Anos

           1977 - Cinderela 77

           1979 - Viva Vanusa

           1980 - Vanusa

           1981 - Vanusa

           1982 - Primeira Estrela

           1985 - Vanusa

           1986 - Mudanças

           1988 - Cheiro de Luz

           1991 - Viva Paixão

           1994 - Hino ao Amor

           1997 - A Arte do Espetáculo

           2004 - Diferente

           2015 - Vanusa Santos Flores

 

 

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