No último 8
de novembro o mundo artístico perdeu a cantora Vanusa Santos Flores, a Vanusa,
dona de uma carreira de mais de 50 anos, ela que costumou ser bem sucedida em
vários campos da carreira artística nos quais se aventurou. Quem a conheceu de
perto e quem a viu em ação garante que sua intensidade e uma forte capacidade
de dramatização, poderia ter tido uma vitoriosa carreira como atriz – chegou a
participar de novelas (Cinderela 77) e teve presença no teatro, em 1999, num
espetáculo com fortes traços biográficos.
A capa de seu primeiro disco
Algum dia
algum biógrafo de respeito haverá de fazer justiça à sua rica história, sua
trajetória estelar, como artista e como pessoa, uma vez que é difícil dissociar
a artista da pessoa, no seu caso. Vanusa foi durante toda a sua vida ativa uma
estrela que teimosamente insistia em brilhar. E seu brilho, mesmo não tendo
sido constante, especialmente na etapa final da carreira, nunca foi fugaz,
melancólico; sempre foi intenso. Fosse o auge de sua carreira ocorrido nos dias
atuais, onde performances não coincidem exatamente com talento, Vanusa seria
daquelas celebridades que viralizam instantaneamente, que abrem uma conta no
twiter e em duas horas têm 2 milhões de seguidores...! Para se ter uma idéia
dos impactos que sua presença causava, um jogador de futebol mediano, meia que jogou
no Palmeiras e fez carreira na década de 1970, teve seu nome mudado de Toninho
para Toninho Vanusa, por ele ser loiro de cabelos esvoaçantes! (Outro jogador
do mesmo período que a carreira associada a uma cantora popular da época foi o
ex goleiro do Cruzeiro e do Flamengo, Raul Plassman, que era chamado
pejorativamente pelas torcidas
adversárias de “Vanderléia” devido às
roupas coloridas que usava, numa época em que goleiros de futebol só vestiam
uniforme preto. “Vanderléia”, sabemos, é a eterna ”Ternurinha", Musa da
Jovem Guarda...)
Vanusa foi a
personificação - um quase clichê - do
esplendor, da glória e da tragédia de uma artista que não tinha nenhum receio
em se expor sem reticências, sem meios termos ou filtros, característica que
deve ter lhe custado muito caro: sendo
uma incorrigível teimosa, jamais se submetia – nem sob violência e coação
física – e o único elemento ao qual ela se submetia docilmente era a Arte. Definitivamente era uma escrava da
Arte e à mesma dedicava o seu melhor, com intensidade e paixão inigualáveis.
Como sempre
acontece com os que não cedem às normas, pagou caro: fosse ela uma artista
cercada de assessores e de produtores, e muitos dissabores provavelmente lhe
teriam sido poupados. A começar pelo triste episódio que quase manchou irremediavelmente
a última etapa de sua vida/carreira: todos hão de se lembrar da ocasião em que
ela, num evento secundário (para quem teve a carreira que ela teve), esqueceu a letra do Hino Nacional. Tratava-se
de um evento de funcionários públicos na
Assembléia Legislativa de São Paulo e a razão do erro da letra do Hino foi
estar sob o efeito de medicamentos, coisa que qualquer assessor mais atento
teria evitado... No ano seguinte (2010) novamente num evento secundário, no
Parque do Idoso, Manaus, voltou a errar letras de musicas, desta feitas confundindo
e misturando “Sonhos de Um palhaço” e “Como Vai Voce”, de autoria de seu ex-marido
e certamente o grande amor de sua vida, Antonio Marcos.
Aqui, um
breve parêntesis: sempre que se falar em Vanusa, imediatamente vem a mente
Antonio Marcos. Uma desses artistas de apelo popular que fazem parte do Panteão
da Música Brasileira – assim mesmo, com “M” maiúsculo – pois Antonio Marcos,
grande cantor, boa pinta, inteligente e
talentoso no que se propunha fazer: música de apelo popular, mas com requintes
de produção caprichada. Uma música inteiramente desvinculada de qualquer
modismo de época ou engajamento político e/ou social. Autor de sucessos como “O
Homem de Nazaré”, “Porque Chora a Tarde” e muitos outros, era também especializado
em versões estrangeiras, como “Torneró”, de Santo Califórnia. Com Vanusa
formava o “casal perfeito” - bonitos,
talentosos e bem sucedidos. Mas, infelizmente, a união dos dois terminou num
desfecho muito apropriado para um dramalhão mexicano: o casamento chegou ao fim
por conta do alcoolismo de que sempre foi dependente Antonio Marcos. Foi mais
uma carreira destruída pelo uso desmedido do álcool, como Leminski e Raul Seixas,
que em certa época não era tratado como doença. O legado que ficou: certamente
foram muitos os casais que viveram seus melhores momentos embalados pelas
canções de Antonio Marcos e Vanusa e isso é um feito de que deve ser
respeitado.
(O pessoal
que nos últimos tempos se encanta com os “breganejos” ou algo que chamam – não sei
porque! - de “pagode” poderiam revisitar, vez ou outra, a um passado nem tão
longe e ouvir, por exemplo, “Porque Chora a Tarde”:
“... a tarde está chorando por você
Ela sabe que o amor partiu pra sempre
A tarde entristeceu junto comigo
E eu preciso desta tarde como abrigo...”
...e talvez se perceba que não apenas a política e a vida
social se deteriorou, a arte também! Contudo, ainda sou um entusiasmado pela
musica brasileira, a melhor de todas!)
O
RECONHECIMENTO DE BALEIRO
Por pouco e
Vanusa seria marcada por seus erros no palco, pouco importando se estava sob o
efeito de medicamentos. Justiça se faça a Zeca Baleiro, que bancou do próprio
bolso a produção de seu último álbum, “Vanusa Santos Flores”, em 2015, aos 68
anos.
Zeca Baleiro
tomou tal iniciativa, inconformado com o fato de uma cantora com seu valor
arriscar-se a terminar a carreira manchada por erros na letra do Hino
Nacional... Tais episódios, eventos meramente secundários, o da Assembléia
Legislativa e do Parque do Idoso de Manaus, podem ser creditados mais a sua
coragem ao se expor, mesmo sabendo que “não estava legal de saúde”, digamos
assim.
Quem
acompanhou sua carreira e sua vida sabe que ela o fazia por coragem e não
desleixo/irresponsabilidade. Lembro-me de uma entrevista num popular programa
de televisão onde ela incentivava as mulheres a “ir a luta na vida”, em tempos
anteriores aos vários movimentos impulsionados pela Lei Maria da Penha, cuja
implantação incentivou as mulheres a lutarem contra as tiranias de uma
sociedade violenta e machista. Na época,
ela falava na verdade, de outras lutas, da necessidade de assumir um protagonismo.
No entanto, apesar de ser livre e dona de suas decisões, não me ocorre que em
algum momento de sua vida tenha sido uma “militante”, num sentido literal.
Parece-me, no caso, que sua chamada à ação era mais num sentido pessoal, das conquistas
do dia-a-dia, e não um engajamento mais amplo, social. Seu engajamento a meu
ver, foi por assim dizer, casual, e não de forma elaborada. Seu “feminismo”, no
caso, foi mais puro fruto da vivência social; ela tinha a coragem dos sobreviventes,
pois, aparentemente não media
conseqüências e nem se deixava levar
pelo medo: o desafio surgia, ela o encarava com o que tivesse à mão e seguia em
frente, indiferente às seqüelas. Numa de suas polêmicas entrevistas, declarou
certa vez o arrependimento por não ter denunciado a violência que muitas vezes sofreu de ex
maridos.
É provável
que as crises de depressão, momentos em que foi dependente
de álcool e drogas, fossem resultante de traumas não resolvidos. Entretanto, não
se rendia e reagia com discos que produzia profusamente enquanto teve condições,
nos livros autobiográficos, de títulos
significativos: “Vanusa – Ninguém é Mulher Impunemente”. E “A Vida Não Pode Ser
Só Isso”. Seu feminismo, como se vê, foi
algo mais intuitivo, conseqüência de sua vivência.
Quando
faleceu, internada numa clínica em Santos, em em 8 de novembro do fatídico ano
de 2020, foi daqueles casos em que se diz: descansou. Descansou de uma vida
intensa, seja em glória ou atribulações. Deixou para os fãs um rico legado, que
não se resume somente a musica, mas aos livros e aos exemplos por suas posturas
honestas e corajosas.
Importante
ressaltar, especialmente para o publico de hoje que não a conheceu no auge, é
que Vanusa foi, como artista e como pessoa, um verdadeiro furacão e quem quer
que tenha cruzado seu caminho, não o fez impunemente - para o bem ou para o
mal: a violência – hoje, infelizmente, banalizada – sofrida de ex-maridos ,a
marcou, mas também deixou estimulou a ter coragem, tal como se deu no
espetáculo “Ninguém é Loura Por Acaso”, produzido pela jornalista Léa Penteado.
São poucas,
muito poucas as palavras, insuficientes,
que escrevi aqui sobre Vanusa. Quando criança e adolescente, o escriba
aqui ouvia suas músicas e assistia suas
apresentações na televisão por mero deleite! Era mais um dos milhares de fãs, apaixonados
por sua beleza, sua voz, seu encantamento. Foi com pesar que soube dos
episódios dos erros das letras, das chacotas
que muitos fizeram.
O escriba
quis lembrar no blog sertão-paulistano,
que a grande cantora Vanusa não foi esquecida. Neste momento algum coração deve
estar pulsando, enternecido, estremecido ao som de sua voz, cativado por sua
paixão!...
E assim, nossa memória vai perdendo a vitalidade e sua carnadura real para se transformar em História. Há, nisso, algo de melancólico, mas a melancolia, de fato está em nós que lentamente vamos perdendo as referências com o desaparecimento, prematuro ou não, de nossas referências. Lá se foram Aldyr Blanc, Sérgio Ricardo, Nicete Bruno, só pra falar dos mais recentes.
Vanusa é de uma geração anterior à minha. Ela se formou como pessoa em plena ditadura militar, eu cresci sob a ditadura. éramos, entretanto, de ambientes diferentes: ela urbana, eu menino de roça. Ambas gerações, bem como todas as gerações a seguir, foram marcadas pela presença sombria da ditadura. As marcas de uma ditadura nem sempre são visíveis, a maioria são invisíveis, quase indeléveis, mas se engana quem pensa que não são profundas... Conheço gente de minha geração diz ter passado incólume pelo periodo ditatorial, não tendo presenciado nenhum tipo de opressão, que havia normalidade geral, que não se falava em corrupção (portanto, não havia), que as escolas eram melhores, que não havia violência, etc. Há nisso um implacável e gigantesco engano, a começar pela incapacidade de perceber o que se perdeu, ou seja, a consequente perda de análise critica: era preciso estar numa bolha impenetrável para não se dar conta de que algo, no mínimo estranho, pairava no ar.
De maneira simbólica, dá para pressentir razões por ter esquecido a letra do Hino, algo que normalmente deveria soar em nossos espíritos como uma oração, portanto, dificil esquecer, especialmente nossas gerações que eram obrigadas a cantar o Hino Nacional diariamente... Ter esquecido o Hino pode ter sido uma reação tardia, protesto inconsciente por terem-no usurpado de nós de maneira tão vil... Tal afirmação é por minha conta e risco, mas quem tem a rebeldia no sangue e na alma, sempre há de revelar, de um modo ou de outro.
DISCOGRAFIA:
1977 - Cinderela 77 |
1986 - Mudanças 1988 - Cheiro de Luz 1991 - Viva Paixão 1994 - Hino ao Amor 1997 - A Arte do Espetáculo 2004 - Diferente 2015 - Vanusa Santos Flores |