Uma verdade
irretocável: música é coisa que os brasileiros sabem fazer direito.
Sem qualquer
rompante ufanista, é uma verdade reconhecida mundo afora. Junta-se ao
patrimônio – material e imaterial – onde são acrescidos belezas naturais,
posição geográfica privilegiada, clima agradável, condição geopolítica
relativamente tranqüila, uma vez que temos relações tranqüilas com nossos
vizinhos.
Nesses
tempos de pandemia, privados que estamos do contato social, a arte tem sido nossa
melhor companhia. Somos lhes gratos pelas lives,
pelos trabalhos produzidos na quarentena, que tem sido o nosso bálsamo,
conseguindo realizar o milagre que transforma a desolação desses tempos
difíceis em esperança, amor e paz. Não,
não estou recitando nenhum manual de
auto-ajuda; estou falando da experiência direta de quem acredita no que faz e
gosta. Nesse sentido, é inspirador.
O CD Tempo
de Paz, de Amauri Falabella, projeto contemplado pela Lei Emergencial Aldir
Blanc, é o quinto trabalho de um artista que se move nas entranhas da cultura
musical brasileira com a familiaridade de quem conhece cada centímetro quadrado
desse vasto território, do qual o grande público conhece apenas uma pequena
parte, pois a Arte consumida pelas “massas” geralmente obedece a padrões
maleáveis à ouvidos condicionados ao consumo rápido e contínuo.
A música de
Amauri requer corações e mentes abertos; ele traz um universo dentro de si e
por isso sua arte flui como o deslizar tranqüilo de um riacho cristalino.
“Malungo”, que sempre caminhou com gente como Vidal França, João Bá, Kátya Teixeira, Consuelo de Paula, Elomar,
Dércio Marques, e tantos outros, pois tem enorme facilidade de dialogar artisticamente
com variados parceiros.
“Tempo de
Paz” é um disco curto, tempo justo para breve pausa, se abastecer de energia
boa e prosseguir a caminhada. São 9 faixas, com voz e violão, com sabor de manjar preparado com requinte cuidadoso, sem
pressa. Nascido de parcerias variadas, como o profícuo Chico Branco (assina 3 músicas
em parceria); o irrequieto Levi Ramiro, que compõe em qualidade e quantidade
assombrosas; a mineira de raiz, Sol Bueno. Completam o time de parceiros Marco
Túlio de Oliveira Reis, Marcelo Lavrador, Helton Gomes e Joshen Rique.
A execução
das faixas, com voz e violão, soa como se o artista estivesse na sala de casa,
fazendo o tempo passar despreocupadamente, com leveza. Cada faixa pode
literalmente ser chamada “trilha”, pois são caminhos que percorremos, desde veredas sertanejas, trilhos urbanos, viagens
siderais, serenatas em tranqüilas vilas interioranas.
Todas as
composições são inéditas, com exceção de “Maria, Estrelas e Geraes”(Chico
Branco e Amauri), que foi gravada pela primeira
vez por Kátya Teixeira no seu “Feito de Corda e Cantiga”, de 2011. É a faixa que abre o disco e o faz em grande
estilo, pois “Maria, Estrela e Geraes” está destinada a ser um clássico de
nosso cancioneiro. Junto com “Noites do
Sertão”, de Tavinho Moura e Milton Nascimento, as cantigas tratam do universo
mítico de Guimaraes Rosa. “Noite do
Sertão” é inspirada na novela homônima, a terceira parte de Corpo de Baile;
“Maria Estrelas e Geraes” remete diretamente ao Grande Sertão: Veredas. As
referencias mais explicitas são o Liso do Sussuarão e sua paisagem mítica e “Maria” (primeiro nome da personagem
Diadorim, filha e vingadora do grande
chefe Joca Ramiro, cujo nome completo é Maria Deodorina da Fé Bettancourt). Puro
Guimarães Rosa, decifrado em harmonia e verso, por quem conhece os segredos:
Esse que vos
escreve teve a oportunidade rara de ver essa canção nascendo. Por meados de
2010 /2011, quando de minhas andanças pelo famoso “Bar do Frango”, do Tatau –
aquele que é para poucos! – encontrei Chico Branco. Sabedor que sou leitor do
Grande Sertão: Veredas, humildemente pediu minha opinião sobre uns versos que
estava compondo, inspirados pela obra, de quem é leitor devoto. Começou ele, declamando
os versos iniciais do poema que nem nome tinha:
“Certas canções serão veredas / Certas veredas serão reais /
Certas canções serão divinas / Certas minas serão gerais...”
- Que tal,
Joca? – perguntou, referindo-se a meu pseudônimo (Joca Ramiro), justamente em
homenagem ao personagem do livro. Naturalmente fiquei espantado, pois esses
versos iniciais do poema pareciam ditados diretamente pelo Rosa! Tudo ali
estava repleto da sabedoria do mago de Cordisburgo! Aldeanamente
mineiro e ao mesmo tempo universal, onde nada era afirmado peremptoriamente; o
modo de dizer é um meneio, um oscilar que não é de hesitação ou dúvida: o
interlocutor é levado a matutar, a refletir. A palavra “certas”, que inicia
cada verso, é um “negaceio”, uma aproximação cautelosa - existe jeito mais mineiro,
esse dizer que não nega o desdizer? “Certas canções, serão veredas” oculta
nas entrelinhas que nem todas as canções
o serão! E assim prossegue, como se fosse o próprio Riobaldo narrando em seu
prosear dançante. E nas semanas seguintes, Chico Branco sempre me mostrava a
evolução dos versos, desdobramentos de outros. Até que numa das noites, encontrei-o
acabrunhado, aborrecido. Ao me ver, um tanto constrangido, desabafou:
- Empaquei,
Joca Ramiro. Não consigo terminar. Vou passar o cajado pro Amauri, ele vai
saber o que fazer...
...e foi
assim que se concretizou a parceria. Quando, meses depois, ao ouvi-la completa,
com melodia, senti-me guiado através do universo e fez sentido o que o próprio
Rosa dizia: “O sertão é o mundo.” Ou seja, o sertão está em toda a parte!
Muitas
cantigas foram escritas inspiradas no Grande Sertão e em outras obras do
Guimarães, muitas ainda serão escritas e cantadas, mas “Maria, Estrelas e
Geraes”, certamente é um hino roseano, até aqui conhecido pela voz de Katya Teixeira, acompanhada por
Ricardo Vignini na viola e Thomas Rohrer na rabeca... Agora, na voz de um dos
autores, acompanhando-se ao violão, faz desdobrar em nossa imaginação, “outro
sertão”, um sertão de profunda solidão. Talvez, ao ouvir a cantiga, Rosa
dissesse: São Ser-tões.
“Almas”,
segunda trilha vinda a seguir, parceria com Helton Gomes, com agudas e certeiras
referências à natureza. Em tempos como os que vivemos atualmente, nem é preciso
explicar muito, né? Basta ouvir e, se puder, concordar com os autores: “almas
de guerra, almas de paz”.
A terceira
faixa: ”Vau da Ilusão”, parceria com o espevitado Levi Ramiro. O arranjo lembra
um trotezito em lombo de cavalo manso, a percorrer trilhas e veredas,
completamente cercado por uma natureza pujante, idílica. Vamos com eles, de
garupa, numa Terra onde ainda é possível pôr-e-nascer de sol!
“Casa da
Criação”, quarta trilha, parceria com Marcelo Lavrador: caminhada sem pressa de chegar. Um vagabundear
numa prainha litorânea, repleta de refêrencias afro-brasileiras. Um alegre
bailado, um tempo reencontrado, reencontrar de memórias e assim seguimos rumo
ao Quilombo-Brasil, liberto!
A quinta
faixa, “Feito Tatuagem”, com Marco Túlio de Oliveira Reis. Poema denso e atemporal,
num cenário que pode ser qualquer lugar entre a cidade ou sertão. O sentimento
é universal, se crava no corpo e na alma,
feito tatuagem. O sentir é um “tipo
de encanto”.
Na trilha de
nº seis, “Valsa da Pequenina”, mais uma carona com o versátil Chico Branco. Uma
dengosa falsa, nostálgica, permeada do frescor da eterna infância, em cada um: se
reparar bem, a gente vê, no cair da tarde, menina brincando de amarelinha e
menino jogando pião, trocando risos e olhares.
Na sétima
faixa, “Sabiá”, a necessária parceria com a mineira Sol Bueno (como viajar por
Minas e não prosear com Sol?). Uma canção suave, pra não espantar Sabiá, o insistente,
teimoso e alegre cantor, que tem como reino a laranjeira. Sabiá é símbolo de
resistência do bioma mais ameaçado e mais delicado: o cerrado.
Embrenhando-se
na oitava trilha, “Valsa Sideral”, com Chico Branco de co-piloto. É a trilha
sonora para o poeta que embarca numa nave e parte pelo espaço sideral a procura
de seu amor. É o céu do Brasil em noite cheia de estrelas e o poeta segue um
mapa que o leva à janela da amada, onde ensaia dedilhados e versos à Musa, por
quem se torna viajante de tempos e rompe espaços.
Chegamos a
nona vereda: “Dois Ventos”, letra e musica de Joshen Rique. A interpretação de
Amauri é o trilhar da estrada que leva de Minas ao Texas, desviando das
borboletas, como diria o poeta Luis Carlos Bahia. O disco termina alegre, como
numa descontraída contradança. Nas entrelinhas, induz à reflexões e então,
temos a impressão de retornar ao inicio; reiniciar ciclos, reviver, refazer caminhos ou novas buscas.
Afinal, “...tudo é vento (...) Antes do
fim da missão, não sai.”
O disco ta saindo do forno, ganhado a ultima
demão de capricho.Será distribuído pelo selo Tratore. Loguinho estará a
disposição e atenção para o show de lançamento, através de lives, onde seremos brindados com o disco inédito e algumas de seus
discos anteriores. Acompanhem os próximos passos pelas redes sociais do
artista.
DISCOGRAFIA:
- Ciranda lunar
- Amauri Falabella
- Violeiro Urbano
- Parcerias
- Tempo de Paz