CEDRO ROSA, O NOVO CD SOLO DE FÁBIO FREIRE

O CEDRO ROSA,  DE FABIO FREITE

 

O percussionista Fábio Freire vive a mais de três décadas na Europa – a maior parte na Suíça -, ganhando a vida como músico profissional. Um operário da música que leva muito a sério o seu ofício e lançou em 2019 o disco "Cedro Rosa".


Fábio é músico por convicção. Sempre teve clara  a noção de sua vocação, de seu lugar no mundo, e o percurso percorrido evidencia uma profunda consciência de sua responsabilidade como artista e cidadão de um mundo multifacetado. Muito cedo aprendeu que talento não basta, é necessário o aprimoramento constante, muita pesquisa e espírito aberto.

Para ele a música é um meio, um veiculo, uma nave na qual atravessa livremente universos, viajando de um início a outro inicio, pois na linguagem musical, o entrelaçamento inter notas não tem propriamente um fim; como tudo no universo, nada se perde, tudo se transforma: a interminável recriação que jamais cessa. 

Onde existe ser humano. existe música – presente no próprio silêncio entre as notas, silêncio do qual, afinal, provém o significado do som, sem o qual seria meramente ruído. Seja um balbucio de um recém nascido ou o bater de pés e mãos dos povos nativos de qualquer parte do mundo, música é vida em movimento: do cantochão à sinfonia, todos os seres vivos e até mesmo as coisas aparentemente inanimadas, se comunicam – o ruído do vento, da água, do fogo, o ribombar do trovão. Fábio  Freire segue passos de gente como Hermeto Pascoal, Naná Vasconcelos, Ginger Baker, cada um desses pode ser daqueles misteriosos curandeiros (ou xamã ou pajé) que se notabilizam por traduzir para ouvidos incautos, de maneira simples e também sofisticada, a linguagem possível entres os seres e as coisas! Sua música, ao tempo em que é uma fiel expressão de seu ser, é ponte sobre mundos, pontos de intersecção, vasos comunicantes.

 



Uma música  orgânica, que parece brotar dele como se fosse de um todo de  sua persona, espécie de halo que o envolve, entretanto, vai além. No seu processo de criação, parece-nos que o seu fazer musical flutua em torno dele, Fábio, o filho do grande atleta e  professor Edgar Freire, é envolvido pela própria música, seguindo uma torrente intuitiva, um caminho invisível aos demais, porém claro para ele próprio – aqui lembrando um de seus mestres, o Zé Gomes, para quem “...música é como a vida: improvisação! Não há lugar para ensaios. A realidade mostra-se avassaladora, como se estivéssemos permanentemente no palco” (Trecho do encarte do CD A Idade dos Homens, de Zé Gomes e André Gomes). 

Para o músico, este prestidigitador, o quadro que, para nós se apresenta caótico, dentro de sua cabeça,  se apresenta num desenho nítido, onde se misturam temas musicais, instrumentos,  companheiros de gravação, o ambiente do estúdio,  os elementos que motivaram os temas, enfim, todo o mundo que o rodeia; ao fazer música, num brevíssimo insight, retoma e revive na execução de cada peça, sua própria trajetória, sua história e de sua gente, os caminhos percorridos até aquele exato instante: é isso que percebemos imediatamente ao ouvir Cedro Rosa – seu último trabalho solo, produção do próprio e de Célio Barros, outro artista brasileiro que encontrou guarida para exercer seu trabalho na Noruega. 

Em "Cedro Rosa" relacionam-se a euforia, a alegria, a seriedade e o compromisso de  algo criado com leveza e descontração ao mesmo tempo em que vai fundo em suas origens, ao mesmo tempo se mantendo concatenados com o hoje, o agora; ao fazer isso, ao estabelecer pontes entre o som ancestral das aldeias ou das profundezas das matas, ao reacender memórias, sons e sentimentos, palmilha estradas futuras para a arte em-si e para as vidas de todos nós.

 

Vive na Europa desde 1986. Depois de alguns encontros e breves andanças, estabeleceu-se em Basel, Suiça. Produziu alguns álbuns, participa de vários grupos, dá aulas de música, enfim vive de Arte. Para quem transpira música, é sinônimo de realização, embora não exista, especialmente no Brasil, o pleno reconhecimento por seu trabalho (mas aí já entramos em outra seara, palco para outras discussões, quando se trata dos misteres da indústria cultural). Fábio Freire, como muitos outros brasileiros que fazem sucesso no estrangeiro, é músico realizado, Só não digo plenamente realizado, pois aí seria o Nirvana e o Nirvana é anulação, o que está muito distante do que ele protagoniza. Muito ao contrário: é  um homem de seu tempo, atuante cidadão de mundos que conhece bem: as dicotomias, as viscerais discrepâncias entre as civilizações da Europa e América do Sul. Seu artesanato musical é como a tessitura de um tapete, onde harmoniza suas experiências  diretas, transformando-as em arte sensorial.

A radicalização que só é possível num trabalho solo e independente (creio eu!), Recorro a um trabalho inédito, feito em parceria com os rabequeiros  Zé Gomes e Thomas Rohrer. “Rabecas”, um trabalho de 1997, inexplicavelmente não lançado comercialmente, é tremendamente ousado em sua pureza. Usando instrumentos rústicos – rabecas, viola-de-cocho, percussões – os três exploram  ao limite a capacidade de navegação da musica por nossos espíritos, partindo dos primórdios. Um trabalho atemporal, dividido em 7 faixas e que reúne elementos da cultura e folclore brasileiro,  ecos de Oriente Médio e Extremo Oriente,  da África e seus muitos mundos, da Europa Medieval e Contemporânea. Algum dia há de vir a lume esse disco e quando isso acontecer, haverá de assombrar a quem ouvir, fazendo recordar vilarejos perdidos de qualquer lugar do mundo,  ruídos das cidades modernas ou viagens siderais. Em suma, uma trilha sonora da aventura humana! Acredito haver certa identidade entre “Rabecas” e sua atuação junto ao Ignis Quartet: sons que se articulam em meio ao emaranhado confuso ironicamente presente no capitalismo moderno que tornou comum o fenômeno Belíndia – luxo e luxúria cinicamente convivendo com miséria  e fome. O que será preciso para chocar ainda mais e levar as consciências ao nível da indignação? O que é preciso mais? As canções de protesto de Bob Dylan e Joan Baez viraram canções de ninar. (Não vos desanimais! O mundo também é do sábio Ailton  Krenak, que nos aconselha a adiar o fim do mundo,  e de Greta Thunberg, a pirracenta do bem!). 

 

 

  

 Thomas Rohrer

 Com Fábio, desde o inédito "Rabecas", passando pelo Ignis Quartet, que resultou no disco Verumo e chegando ao recente “Cedro Rosa”, estamos em contato com uma musica que retorna ao corpo, infiltra-se pelos poros, transita entre o corpóreo e o espiritual, faz mãos e pés vibrarem em ritmo áspero ou suave de DANSA, assim mesmo, dansa com “S”, como escrevia Guimaraes Rosa nas novelas de Corpo de Baile. Para ele, “Ç”, e o abrupto corte no “c” se tratava de uma anomalia linguística, pois a dança deve ser algo fluído, navegando em suaves ondas, ao contrário do que sugere o Ç bloqueando  a fluência.

 



“Cedro Rosa” é uma planta nativa do Brasil. Não por acaso, abundante na Minas Gerais do Guimarães Rosa. E “Cedro Rosa”, o CD, com seu batuque e seu canto, é Brasil; e tem pé de moleque, que é doce de amendoim  que remete ao moleque jogando bola, de gude ou de meia.

E que não nos surpreendemos se em meio a terreiros de Iemanjá e outros Ritos, nos chapadões, brejos, montanhas, baixios ou nas ruas percorridas durante a nossa viagem musical, nos depararmos com paisagens dos Extremos e Médios Orientes, entre preces, solidéus, novenas, missas ou chamados do Muezim... 

Visões concretas, a nosso ver, pois carregam em si, experiências humanas do ontem, do agora, do porvir!

Finalizando, ou melhor, pousando a nave Cedro Rosa, que  é  também uma justa homenagem a Nana Vasconcelos, a quem é dedicada a faixa “Naná Já Deixa Saudades”...

 

 

 

SERVIÇO:

Cedro Rosa

Fábio Freire: percussão, voz, flautas. Composições: Fabio Freire. Gravado em 11 e 12 de outubro, 2019, no Klarlyd Studio, Noruega. Gravado, mixado e masterizado por Célio de Barros

 


 

 

 

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