DE SERTÃO EM SERTÃO

Neste 2022, completam 120 anos do lançamento do livro Os Sertões – Campanha de Canudos, por Euclides da Cunha, sobre um dos episódios mais dramáticos e vergonhosos de nossa história. Uma sequência de equívocos, desde o nascedouro, um lúgubre jogo que terminou num banho de sangue que não conseguiu sufocar a loucura e o horror.

120 anos do lançamento d’Os Sertões (1902), 125 anos do final da guerra (1897) entre um grupo numeroso de sertanejos contra o Estado Brasileiro, cuja Proclamação da República não completara nem uma década (1889).

Porque os 120 anos de lançamento do livro de Euclides, uma “data fechada”, não mereceu a atenção de nossa mídia ou de nossas universidades? Pelo menos nas datas fechadas é lícito relembrar e refletir sobre aqueles dramáticos acontecimentos. Os acontecimentos de Canudos, guardadas as proporções, foi um dos Holocausto brasileiro – outro foi o indígena e ao longo do tempo, até hoje, pretos e pardos morrem diarimente. De Canudos, relembrar e refletir, compreender o que foi, não é um espetáculo sado-masoquista de braços dados com a Morte; da mesma forma como o mundo não esquece Auschwitz para que jamais se repita, Canudos também não deve ser esquecido, para que jamais se repita.

Porque o tema central desse texto são os 120 anos de lançamento do livro de Euclides da Cunha e não os 125 do final da guerra? Porque se não fosse pelo livro, jamais saberíamos da Guerra  de Canudos. O massacre dos canudenses, que na época em termos populacionais seria uma das maiores cidades brasileiras, teria sido varrido para debaixo do tapete de nossa história. O exército brasileiro, que 30 anos antes (1865) havia massacrado o vizinho Paraguai, teria apagado o episódio de Canudos, talvez para minimizar a coleção de vexames que exigiu quatro Expedições Militares contra os sertanejos que eram tratados como fanáticos... 

Os “fanáticos” eram uma comunidade de 25.000 pessoas repartidas em 5.200 casebres paupérrimos. Cresceu vertiginosamente em poucos anos e seria uma das maiores cidades brasileiras, onde “milagrosamente” haviam resolvido o problema da fome: roças coletivas onde todos trabalhavam em regime de mutirão e faziam cuidadoso uso das cabras – animal resistente ao clima semi-árido – do qual aproveitavam tudo: o leite, a carne, a pele. O livro, segundo o próprio Euclides, foi “a denúncia de um crime”, e se não fosse pela iniciativa do mesmo - que foi retratado pelo escritor peruano Vargas Llsosa no livro “A Guerra do Fim do Mundo” como o “jornalista míope” - ninguém saberia da tragédia de Canudos, no máximo mereceria notas em pé de página dos livros de história...


 

Na época, fins do século XIX, a República recém instalada tinha ares de Iluminismo. Euclides da Cunha, ele mesmo, um iluminista, não deixa dúvida: combater os “fanáticos” era combater à barbárie, o atraso secular. Somente na cena onde se desenrolava os acontecimentos foi que percebeu a verdadeira natureza dos “inimigos da república...” 


 

Se lido aos olhos do século XXI, em tempos de politicamente correto e outros bichos, o livro apresenta situações no mínimo controversas, como seguidas afirmações de que os “mestiços” são “racialmente inferiores” e outras pérolas. Porém, faz afirmações desmentindo a si mesmo, quando afirma que “o sertanejo, é antes de tudo, um forte”, frase icônica que até hoje define a bravura e o estoicismo de um povo sobrevivente; sua descrição do “vaqueiro encourado”, capaz de enfrentar as agruras do clima inóspito e a vegetação recamada de espinhos é a afirmação da conduta de um herói, pois sua ação ao embrenhar-se nas caatingas à cata de gado bravio é a de um atleta equestre. Euclides não nega sua admiração descrevendo o ginete como incomparável, se considerado em relação ao vaqueiro dos pampas. E sua comovente descrição dos últimos momentos do luta, quando quatro combatentes enfrentaram cinco mil soldados, fala por si:

 “Canudos não se rendeu. Exemplo único na História, lutou até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, caiu ao entardecer, quando caíram seus últimos defensores. Eram quatro: um idoso, dois homens feitos e uma criança, a frente dos quais gritavam raivosamente cinco mil soldados.”

Ao contrário do que parece, não foi uma cena épica. Embora o Exército Brasileiro tenha registrado nos seus anais como uma vitória em defesa da jovem República, não houve glória em tal vitória. Depois da vitória, o horror, terrível vingança contra quem ousou enfrentá-los: combatentes apanhados vivos foram extirpados à facão em cenas dantescas. E as centenas de mulheres e crianças reunidas tiveram como destino a escravidão nas casas dos oficiais, além de outros abusos... Esses meros recortes ilustram em parte os motivos dos “conselheristas” lutarem com tremendo  denodo: não apenas lutavam por suas casas e por sua terra – diga-se de passagem, uma terra inóspita abandonada no meio da caatinga do sertão baiano. Pelo lado vencido, um projeto que teve um fim tão amargo e triste não pode ser chamado de épico, e sim trágico, consequência da ignorância de seus algozes que viam no grupo inimigos da República. A bem da verdade Canudos precisaria de ajuda, mas enviaram-lhes “O Legislador Comblain (um arma moderna) e esse argumento incisivo: bala!”

Ora, no grupo de seguidores arregimentados por Antônio Mendes Maciel, alcunhado “Conselheiro”, podia ser chamado de qualquer coisa, menos de qualquer sombra de projeto de estado – um dos motivos alegados para o inicio dos combates era que se tratava de “monarquistas” empenhados na restauração, inclusive com ajuda de potências estrangeiras...

Euclides apresenta um vasto painel na descrição da Terra, do Homem e da Luta, numa narrativa empolgante. Considerado o primeiro livro-reportagem, Os Sertões pode ser chamado de ensaio etnográfico, geográfico, sociológico ou mesmo de um extraordinário romance, tal a descrição impressionante dos personagem envolvidos, estes sim, emoldurados de heroica humanidade: os jagunços João Abade, Pajeú, Pedrão; Antonio Beatinho, espécie de Secretário do “Conselheiro”, do coronel Moreira Cesar, dono da impressionante alcunha de “Corta Cabeças”; do tranquilo coronel Tamarindo; dos generais Arthur Oscar e Savaget, entre milhares de outros.

Antonio Mendes Maciel, sua história pessoal, já merece um romance.  Depois de vários empreendimento desastrados e mal ajambrados, entre eles um infeliz casamento, tornou-se um andarilho que vagava pelos sertões. Prováveis leituras bíblicas ou outros livros religiosos,o encaminharam a  assumir a personalidade de um Pregador messiânico, apocalíptico: “o sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão.” Outra famosa afirmação que assombrava os sertanejos que ouviam suas prédicas: “...adeus mundo! Até mil e tantos a dois mil não chegarás!” De verve impressionante, vestia e se comportava como os Profetas do Velho Testamento. Para construir esse personagem ao longo dos anos, parecia dotado de certa capacidade intelectual ou ao menos manejava muito bem os recursos literários que tinha a disposição, sendo o mais comum As Horas Marianas. Não me parece exagerado dizer que Antonio Maciel praticava uma espécie de sincretismo mesclando elementos do judaísmo e do cristianismo primitivo (seria ele e um cristão-novo?). Era chamado “Conselheiro” porque sempre tinha uma palavra redentora para aqueles que o procuravam na busca de soluções para os mais variados problemas, desde questões do dia-a-dia à outras de ordem transcendente. Ou seja, quem o buscava, saía com respostas. O cabelo e barba comprida, o camisolão sem cintura e as pobres sandálias de couro, o costume de jejuar  completavam o quadro de profeta messiânico.



 

Um dos costumes que o fizeram admirado e respeitado pelos sertanejos era seu respeito pelos mortos e igrejas: onde  chegava e encontrava um cemitério ou igreja mal cuidada, tomava para si a incumbência de reformar e para tanto, convencia seus seguidores na empreitada. Muitas autoridades de pequenas vilas e cidades, aguardavam sua chegada e até facilitavam a compra de materiais necessários para as reformas, feitas em mutirão. A figura do Conselheiro e seus seguidores se consolidou por todo o sertão nordestino em poucos anos.

As peregrinações nômades tiveram fim ao encontrarem a fazenda abandonada de Canudos e ali se fixarem. O inóspito lugar, sob os auspícios do Conselheiro ganharia ares de terra prometida e seus adeptos só fizeram crescer, o que não é nada difícil de imaginar a razão:

A vida do sertanejo sempre foi pura aflição, lutando pela vida a cada período de 10 ou 12 anos, quando ocorriam as grandes secas, além de servir de mão de obra quase de graça aos coronéis da região. Euclides descreve os primeiros anos de formação da cidadela que ele apelidou de Tróia de Taipa como de entusiasmo quase mágico: pessoas vendiam suas posses – terras, objetos pessoais, animais – e iam se juntar ao Conselheiro, a quem entregavam o produto da venda e ele redistribuía entre quem necessitava. Ora, para o sertanejo isso era mamão com açúcar. Para quem vivia na mais absoluta miséria sob o jugo dos coronéis, a possibilidade ofertada de um lugar com garantia de casa e comida de acordo com sua necessidade era um Paraíso na Terra! Outra característica da comunidade: todos eram acolhidos. Poderia ser o criminoso mais perverso, desde que abandonasse a vida de crimes. E embora não fosse incentivado, havia tolerância com o que podemos chamar “amor livre” e como consequência disso, não havia bordel. Também era expressamente proibida no arraial a prática de ingerir bebidas alcoolicas.

Assim prosperava Canudos. Oásis, verdadeira Terra da Promissão pelos pobres miseráveis e vivamente incomodando as autoridades, especialmente pela sua recusa em pagar impostos, daí serem chamados “monarquistas”. Autoridades e poderosos andavam, desde tempos, a procura de um pretexto para combater os “fanáticos que ameaçavam a jovem República.”

E o motivo que tanto buscavam, chegou de maneira mais ignominiosa possível. A fim de dar bom acabamento a uma grande igreja que estava construindo, o Conselheiro mandou comprar em Juazeiro grande quantidade de madeira para o acabamento. Os vendedores receberam o dinheiro e simplesmente não entregaram a madeira. Depois de várias tentativas de receber a encomenda, sem sucesso, os canudenses resolveram ir buscar a madeira de qualquer maneira. Foram recebidos a bala. A Policia e demais autoridades, em vez de arbitrarem a questão, ficaram contra o que chamavam bandidos de Canudos. Foi uma refrega que custou a vida de mais de 150 sertanejos e uns 14 das forças policiais, incluindo destacamentos do Exército. Os canudenses se retiraram. Mesmo tendo matado dez vezes mais, o Exército considerou uma afronta contra a Pátria e foi decidido desbaratar Antonio Conselheiro e sua gente.

Pensaram que seria um passeio, mas a resistência foi feroz. Somente da Quarta Expedição, com milhares de soldados, milhões de cartuchos, armamentos modernos, incluindo canhões Krup, recém adquiridos da Alemanha, aniquilaram o povoado. Como escreveu Euclides, “Canudos não se rendeu. Lutou até o esgotamento completo.” Num gesto que mais me pareceu ser para encobrir a mácula vergonhosa, o local da primeira cidade de Canudos, a original, foi coberto por águas, o Açude Cocorobó. Contudo, em épocas de seca, as aguas baixam e as ruínas da igreja aparecem, como o monumento da incompreensão...




Foram incapazes de compreender, na época e provavelmente ainda hoje, é que o sertanejo lutava por algo mais que Pátria ou casas; lutavam pela dignidade que haviam alcançado. A escolha era clara:: a vida em liberdade ou a escravidão.

DE SERTÃO EM SERTÃO, SEGUE O BRASIL:

Canudos rendeu muitos temas musicais. De sertão em sertão, caminhemos. Ou seja, Canudos possui uma história tão rica que pôde ser vista (e ouvida) musicalmente segundo vários pontos de vista.

Cito aqui três trabalhos distintos:

- Canudos e Cantos do Sertão, por Fábio Paes;

 

- Canudos, por Gereba:

 



 - Os Sertões, por Roberto Bach

 


Os dois primeiros (Fabio Paes e Gereba), tratam Canudos como tema geral, fala dos arredores, da vida cotidiana, das festas, da lida na roça, cuidado com o gado. O terceiro, de Roberto Bach, descreve a fase cruenta do combate. Conta com a colaboração do historiador  Marco Bala

 

Palavras atribuídas a Antonio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, no encarte de sua obra, Canudos:

“Adeus povo, adeus aves, adeus árvores, adeus campos, aceitai minha despedida, que bem demonstra as gratas recordações que levo de vós, que jamais se apagarão da lembrança deste peregrino.”

 

Monumento ao Beato Santo Antonio, da feliz definição do baiano João Bá:


 

 

 

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