PAULO MARTELLI E O PLANETA VIOLÃO

 

Desta feita, o blog ser-tão paulistano, que costumeiramente se dedica a artistas sem espaço na mídia, fará jus a uma exceção: vamos falar de um artista consagrado, no Brasil e no exterior, respeitado por seus pares, porém desconhecido do público; é justo que o conheçamos melhor, pois é dos que podemos chamar artista-síntese. Isto é, agrega em si aspectos musicais – escolas, estilos – e do mundo ao redor de si - seu grupo social, crenças, valores e elementos do tempo histórico.

O violonista de Araraquara, Paulo Martelli  é um artista-síntese, pois conhece melhor que ninguém a sutil linguagem que a música transmite de modo peculiar: o sentimento oriundo da sociedade que inspirou a obra, reelaborado pelo artista que o pressente e se deixa fluir; a experiência de ouví-lo é sentir-se partícipe da imersão que ele realiza, nos conduzindo com segurança através de sua soberba técnica, pelas paisagens sonoras que percorre. Cada peça executada é um exercício de aprimoramento da linguagem musical possível do violão, esse instrumento que se revela aos iniciados que o conhecem e respeitam (o violão é um instrumento que dialoga tanto na linguagem pura da arte popular [folk.clore] quanto da chamada "erudita": o violao pode ser capaz de juntar numa mesma sala personagens como João Pernambuco, Vila-Lobos, Paco de Lucia, Segóvia, Sanz , Cartola e muito provavelmente não entrariam em conflito).


 O Brasil é uma das “pátrias” do violão. Por aqui  o violão é antes de tudo amado, e por isso esta presente em todas as classes sociais. 

Das planuras pampeanas aos igapós amazônicos; do cerrado à caatinga, passando por cidades, vilas, terreiros e salões. São  muitos estilos e escolas, do popular ao erudito, contemplando gostos regionais e todos os públicos. De acesso extremamente democratico, pode ser confeccionado por mestres artesaos ou construídos artesanalmente por amadores. Deve ser o instrumento mais presente entre o povo,  parceiro ideal para dialogar com outros instrumentos e instrumentistas. Ao longo do tempo, desde sua popularização no inicio do século XX, sempre existiram aqueles que formulam conceitos e estabelecem novos paradigmas – João Pernambuco, Donga, Garoto, Laurindo Almeida, Dilermando Reis, Sebastião Tapajós, Paulinho Nogueira, André Geraissati, para citar alguns, ajudaram, cada um por si, a ampliar o horizonte violonístico, nos fazendo perceber o violão além da técnica: daí a expressão que julgamos oportuna: violonistas-conceito. E a esses podemos acrescentar, nos tempos atuais, Paulo Martelli ,Duo Assad, Ulisses Rocha, Marco Pereira e outros. Sao artistas que marcam época, cada um a sua maneira e estilo. Exemplarmente violonistas,-sintese, ou seja, alteram e fundamentam padrões. Importante lembrarmos  de don Eduardo Falú, Atahualpa Yupanqui, Jorge Cardoso e Lúcio Yanel, da maravilhosa escola argentina!

 

O MOVIMENTO VIOLÃO

Paulo Martelli fica à vontade em vários ambientes, mas diz muito a respeito dele o “Movimento Violão”, idealizado por ele. Trata-se de um mosaico reunindo violonistas  de escolas e tendências variadas e representativas. Além da versatilidade dos artistas, permite vislumbrar as possibilidades, difundindo essa arte que desde o século XVII anima desde singelas danças camponesas à sofisticadas danças de salão.O "Movimento Violão" trata de um recorte ou uma ampla síntese: está registrado em 10 DVDs, 10 concertos impecáveis, a maioria solo, mas também duplas, grupos e Orquestra. São 10, mas poderia ser 100! São eles: 

Paulo Porto Alegre; Carlos Barbosa Lima; Daniel Wolff; Eduardo Isaac; Quarteto Abayomi; Pedro Martelli; João Kouyoumdjian & João Carlos Victor; Duo Assad; Pablo Márquez e Marco Pereira, Paulo Martelli & Orquestra

Atenção: não se trata de um desfilar de virtuoses – o que estaria de bom tamanho! Mas vai  além do entretenimento, nos ajudando a refletir a presença do violão, sua ampla linguagem, sua capacidade de adaptação, sua difusão entre as classes,  celebrando, alegrando. No Brasil, nas Américas, na Ibéria,, na Rússia (pátria original do “7 Cordas”), no Oriente, etc., o violão (ou seus parentes muito proximos, como a alaude) faz parte dos utensílios do lar ou objeto de decoração. Isto quando não está cumprindo sua função de alegrar folguedos festeiros ou solenes ofícios religiosos.  

 

 AS MÚLTIPLAS FACES DE PAULO MARTELLI 

Iniciou seus estudos em Araraquara, tendo descoberto cedo sua vocação, provavelmente inspirado pelo irmão mais velho, Pedro, violonista que encarna o oficio como um sacerdócio. Paulo aprimorou sua formação clássica nas prestigiadas escolas The Julliard School e Manhattan School of Music e pode ostentar no currículo ter se apresentado na célebre sala  Carnegie Hall.

Uma rápida olhada pela sua obra gravada chama a atenção o caráter multifacetado e como nunca se repete. Confortavelmente navega pelos muitos timbres das muitas  terras do violão. Seus seis trabalhos (incluindo a trilha sonora da peça teatral O Homem Que Odiava Segunda-Feira) são distintos, diferentes, desde sua estréia com o requintado Debut, lançado inicialmente nos EUA. Seguiu-se Roots, espécie de pequena autobiografia artística revelando suas influências, harmonizando desde Paulo Belinatti à Agustin Barrios, entre outros. Segue-se o jazzístico Miosótis, a antológica gravação de Bach e termina com 20 estudos Populares Brasileiros. (Num entremeio, a trilha da peça  O Homem Que Odiava Segunda-feira, baseada num conto do seu conterrâneo de Araraquara, Ignácio de Loyola Brandão).

Martelli chama a atenção por sua insaciável curiosidade; não lhe basta aprimorar, impõe-se-lhe explorar as sonoridades intrínsecas do instrumento. Reinventa, reelabora a cada trabalho, retoma a saga dos ancestrais precursores vihuela, alaúde, violão barroco, viola de arame, tiorba.  Sua técnica e desvelo na execução torna a quem o ouve participe do processo, seu jeito de tocar traz um frescor de novidade.

Jose Miguel Wisniki em seu livro” O Som e o Sentido”, num determinado momento diz que é provável que a música ocidental tenha completado o arco de sua presença, que deve ter se iniciado no fim da Idade Média e chegado até meados do século XX, quando então pode ter iniciado um longo processo de esgotamento, ao mesmo tempo em que dá lugar a outras formas de música, cujos sinais podemos vislumbrar em Cage... 

(Ouvindo Martelli, temos a impressao de que existem possibilidades a serem exploradas. O som do violão – transitando familiarmente entre o popular e erudito - é o eco que perdura.

 

VIOLÕES USADOS:

 Além dos clássicos de Sérgio Abreu, ele usa um violão de 11 cordas, desenvolvido por Samuel Carvalho, um luthier de matiz moderna, permitindo nuanças que dão a Martelli possibilidades de navegar por outros timbres. O “11 cordas” ou Altguitar é um violão criado na década de 1960 pelo luthier sueco Georg Bolin, sendo desde então utilizado pelo também sueco Göran Söllscher, um dos grandes interpretes de Bach de qualquer tempo.  O 11 cordas, versão Samuel Carvalho, embora situado historicamente como pós moderno, possui uma sonoridade cujas evocações remetem do Barroco ao jazz, apesar do design sugerir a  possibilidade de ser uma continuidade do antigo Alaúde, o bisavô clássico das cordas dedilhadas. Bach escreveu uma única peça para alaúde, o Prelúdio BWV 999, uma pequena peça que parece trazer Bach para os nossos tempos em vez de nos levar para o seu mundo barroco... Tivesse Bach adivinhado onde o alaúde chegaria, teria composto mais peças exclusivas. O Altguitar, surgido séculos depois, viria a ser uma das melhores formas de ouvir Bach – quem duvidar, ouça A Bach Recital. Seria o "11 cordas" o Eco Perdido, percorrido ao longo do Tempo e da Memória musical pelos espíritos guardiães da divina música?...

 

A novidade trazida por Samuel Carvalho e perfeitamente captada por Martelli é que sua sonoridade, além de remeter ao barroco,  tem algo do moderno e popular, dai a afinidade com o samba ou o jazz. Provavelmente diminua a fronteira entre o popular e o  erudito, de que tanto se fala e não de hoje... adiante voltaremos ao tema ao analisar brevemente “20 Estudos Populares para Violão Brasileiro”.

Para quem estreou no disco gravando Diabelli, Paganini, Albert Harris e Castenuovo-Tedesco de maneira soberba, continuar essa trajetória seria o corriqueiro. Martelli, entretanto, fez disso um cartão de visitas de um longo trabalho, onde o popular e erudito se estreitam, como no seu ultimo trabalho, a parceria com Geraldo Vespar, “20 Estudos Populares Brasileiro Para Violão”. Os “Estudos”, de Vespar, executados com  um clássico de Sérgio Abreu, são peças extraídas do folclore brasileiro que recebem tratamento erudito sem  floreios orquestrais, à fazer inveja à Bella Bartok, Vila-Lobos ou Stravinsky. Calangos, Valsas, Modinhas, Toadas, Choros, sambas recebem a designação erudita de Andante, Adágio, moderatto,  Andante Cantabile, etc. Descortinamos afinidades entre popular e erudito com espantosa naturalidade, coroando uma alegre revolução: popular e erudito num mesmo patamar. 

Para quem atravessou séculos contaminados por ojerizas mútuas,  como se pertencessem a universos musicais opostos, podemos sonhar que algum dia a música possa ser considerada apenas como boa ou má e não como superior ou inferior. Breve hiato que se abre para refletirmos o significado social da música que, como dizia o Maestro Diogo Pacheco, não tem fronteiras: qualquer pessoa pode apreciar a boa música.

A obra de Martelli até aqui mostrada contribui para essa aproximação, vide a experiência de Miosótis e suas pinceladas coloridas de bossa-jazz.  “Roots”, seu segundo trabalho, parece concordar. Este disco antológico é  um voo razante pelo Planeta Violão visitando os gênios de Egberto Gismonti, Geraldo Vespar  Radamés Gnatalli, Agustin Barrios, Paulo Belinatti e Astor Piazzola. Tudo o que podemos dizer é que nos sentimos recompensados ao retornar dessa viagem por universos tão variados. A trilha sonora da peça teatral “O Homem Que Odiava Segunda-Feira” parece ser um diálogo literatura/dança/música. Ouvi trechos da obra, não o total... 





 Enfim, chegamos  A Bach  Recital, ponto alto na carreira de qualquer interprete. As Suítes BWV 812, BWV 1007, BWV 924, transcritas das Suítes for Cello pelo próprio Martelli já está consagrada entre as grandes interpretações do mestre alemão;


 Se o mergulho em Bach resulta numa experiência antológica, os “20 Estudos Brasileiros”, de Vespar, também o é. É antológico por ser um vivo e sofisticado retrato da arte autêntica e alegre,  sublime, “transcrita” diretamente das mais singelas tradições brasileiras, traduzindo a sabedoria e beleza do canto e da dança de cunho popular. Sem qualquer rompante ufanista, ouso crer que o sublime que jorra dessas peças merece  juntar-se ao patrimônio imaterial da humanidade. Demasiada humana pode ser a música:  “Sempre que a história do mundo fosse bem contada, revelaria a natureza especialmente musical deste. (...) A música como a presença do ser.” (Wisnik, O Som e o Sentido)

Todos nós, mesmo que não saibamos tocar nenhum instrumento, mesmo desconhecendo linguagem musical, conseguimos nos comunicar musicalmente porque música faz parte do cerne humano – do ser humano. Se a poesia, conforme dizia o poeta Octávio Paz, é a linguagem humana anterior à linguagem racional, a música é essa mesma linguagem em forma do som decodificado entre O Som e o Silêncio - de novo, reportando a Wisnik.

 

Discografia:

- Debut - Paulo Martelli plays Diabelli, Paganini, Harris, Castelnuovo-Tedesco (GRI Music, 1994)

- Roots - (The Woodhouse Records, 2000)

- O Homem que Odiava Segunda-Feira (independente, 2003) (disponível digitalmente)

- Miosótis – Paulo Martelli plays Zé Henrique Martiniano (independente, 2006)

- A Bach Recital - Paulo Martelli –

- 20 Estudos Populares Brasileiros Para Violão, Geraldo Vespar (2017)

 


 

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