KATYA TEIXEIRA MOSTRA COMO ATRAVESSAR A NOITE ESCURA

 

 

Kátya Teixeira canta (e atua) com uma alegria incontida, explícita: se não for a principal característica de seu trabalho, certamente está entre as mais marcantes, como poucas cantoras nesse país; a alegria contagiante de Kátya é marca registrada como prova de sua autenticidade e seriedade: ela, de fato, acredita no que faz e pessoas que acreditam real e sinceramente no que fazem merece respeito e consideração. Quanto às suas qualidades artísticas, seu talento, todos e todas que a conhecem, o sabem!


 

Para se compreender sua natureza artística é preciso dar atenção ao seu profundo envolvimento com o canto popular (que portugueses lindamente chamam de “cante”). O rústico canto das aldeias, das vilas e vilarejos é por ela reelaborado e ornado com instrumentações e versos, que mesmo o velho canto ancestral, de origem imprecisa, sob sua interpretação parece coisa nova. Nesse elemento particular, ela segue a saga dos antigos mestres – conhecidos ou anônimos pescadores, agricultores, vaqueiros, contadores de histórias e cantadores que o tempo todo reinventam histórias e cantos. 


 

Quando se vai a um show de Kátya, a única certeza que se tem é que se vai ouvir algo novo, imprevisível, mesmo que seja um desfilar de suas canções conhecidas. Ela é uma perfeita tradutora da natureza da arte do nascida no seio do povo – canto, dança, contação de causos: cada vez que se executa, é um novo caminho que se abre, uma nova visão que se vislumbra, um passo de dança que se descobre, um novo verso ou estrofe que se acrescenta ou até omite para dar ênfase a determinado aspecto do que se narra ou canta (meu pai foi um velho contador de causos e me lembro que os causos eram sempre adaptados à assistência, ora algo picante ora engraçado, assim por diante). No caso de Kátya Teixeira, são registros momentâneos captados ao longo de sua caminhada. Seu disco “Lira do Povo”, de 2003, pode servir de guia para os caminhos que ela iria percorrer ao longo da vida: sua inquietação, o quê a impulsiona a cair na estrada é semelhante a um de seus principais mentores: Dércio Marques, a quem justamente homenageia através do Projeto Dandô.

 

“Canções Para Atravessar a Noite Escura”, foi concebido, produzido e lançado durante a pandemia do coronavirús e desde então tem sido cantado mansamente, sem arroubos, protestos contra o caos vigente e outros barulhos. Tão delicado e igualmente forte, lentamente nos faz mergulhar numa atmosfera etérea onde a agruras são tornadas um eco distante. Não procura ser um meio termo pacificador numa época recrudescida - não se apresenta como alternativa exclusiva: é um canto que conecta, perpassa, atravessa a densa escuridão como um raio que se torna ponte incentivando-nos a tomar coragem e atravessar abismos. Durante a pandemia, quando todos ficamos isolados, ela nunca deixou de se comunicar através de lives ricamente elaboradas; suas canções nos acalentava como bálsamo para nossas sofridas almas. Composições próprias, parcerias, peças do cancioneiro brasileiro como “Paz do Meu Amor” e “Prelúdio Para Ninar Gente Grande, de Luiz Vieira; “Cantiga de Embalar”, do português Zeca Afonso, mas poderia ser brasileiro.

A escuridão que turvava nossas mentes e espíritos foi combatida por nossos artistas transformados em mágicos, nunca deixando de praticar sua arte. Mostravam que estavam preparados para o viesse. A pandemia não tinha prazo para terminar, tudo eram incertezas e as lives que chegavam até nós através do celular, do computador , do youtube eram sinais de vida. “Canções Para Atravessar a Noite Escura” nasceu dentro desse espirito, de resiliência e sobretudo de esperança. (Destaque para as apresentações onde perfilaram Nani Braun, Kátya e André Vênegas).


 

 

Vendo o disco pronto ouvindo-o, nos sentimos fortalecidos por um sentimento de alívio e alegria e, de certo modo, nostalgia ao lembrar das perdas que tivemos durante o período que ficamos imersos na solidão. A “Canção” que cada artista executava ecoava latente e nos fez acreditar que a beleza existia; a “canção”, a música pairava sobre o silêncio da tragédia que ameaçava o mundo, era a mesma que agora nos arrebata delicadamente e avança através dos ritmos, dos cantos e instrumentos populares, muitos deles resgatados ou de uso muito restrito nos poucos lugares ainda intocados. 


 

As Canções atravessaram a noite como rasgos de luz, o tempo todos nos lembrava que o Sol viria... Certeza de vida, como diria João Bá. Quem conhece a força do cante popular sabe que o mesmo fundamenta-se em troncos solidamente fincados ao longo da história dos povos desde tempos imemoriais. Mesmo que culturas invasoras e avassaladoras, arrogantemente  impondo padrões uniformizados, dissipando sotaques e diversidades mil que comportam a alma humana, tentam sufocar o humilde cantar do povo. Humilde, mas não humilhado, ele pode até se recolher num canto submerso e lá dormitará, mas estará pronto para ressurgir quando a oportunidade ou necessidade se tornar presente. Ditar modismos, seguir a onda, é relativamente fácil, porém, sua própria natureza supérflua, o faz desaparecer no momento seguinte.

Certa perguntaram a Naná Vascocelos o que ele achava da lambada, um gênero que fazia muito sucesso em certa época. Educadamente, Naná disse: “Pode ser bonitinho, mas não tem raiz...” Isso pode explicar algumas coisas, sendo a principal, a incessante busca da autenticidade, como a própria verdade interior. Nos momentos de desperança, a saída pode estar dentro de nós mesmos.. Como diz um ditado popular, um povo sem conhecimento de sua cultura não tem alma...

A longa pandemia e a distância forçada entre as pessoas nos fez refletir a respeito da valorização de cada segundo de vida. Ver esse trabalho sendo gestado e finalmente vê-lo finalizado, é mais que uma conquista: a obra artística carrega em si ensinamentos, potencialidades que desconhecemos:  a Arte Popular é uma de suas representações –:  sem alardes, avança como ondas de mar em câmera lenta nos fazendo lembrar o poeta-raiz-da-palavra,Walt Whitman para quem a voz do povo era  como a relva ordinária e sem nome, que resiste resiliente e imperceptivelmente avança sobre o prado. As Folhas de Relvas, de Whitman são  as mesmas florzinhas sem nome do poeta gaúcho Aureliano de Figueiredo Pinto, imortalizado na voz e no violão de Noel Guarani, o clássico “Canto do Guri Campeiro”; são como o “Facho de Fogo”, de João Bá e Vidal França; os vaqueiros violeiros que inspiraram Elomar nos versos do Auto da Catingueira; nos baiões e chotes do velho Lua, o Gonzagão; dos reisados e congadas anônimos; os caminhos por onde andou Mestra Virgínia, não por acaso presente no disco com sua assombrosa “Deusa da Lua”. Da mesma carnadura e com o mesmo espírito, as milongas de  Atahualpa Yupanqui, os gatos y malambos de Eduardo Falú; os versos tecidos de Violeta Parra; o samba rural evocado por Dércio Marques em “Fulejo”.

Katya bebe em todas essas fontes. Sua música percorre  todos os caminhos, está em todas as encruzilhadas, vagueia por terreiros e aldeias, por pampas, caatingas, montanhas e florestas. Quem ouve seu canto forte e delicado, não fica indiferente, pois é um canto que ecoa. Ecoa nosso passado e ecoará no futuro.

Mas é principalmente canto do tempo presente; a Arte do Povo não é museu, é Arte Viva. Durante os anos de pandemia, podemos dizer que foi uma pausa na azáfama do caos.

A Arte e nós, sobrevivemos. Respiramos aliviados. A voz da cantora é a voz de todos cantores e cantoras que resistiram. A voz que ouvimos, não é a voz da Sibila, o Anjo Anunciador do Juizo Final, figura conhecidíssima na Idade Média, tempos de guerras e pestes mortais; a voz que ouvimos é a voz da redenção possível; opõe-se ao Canto da Sibila; é a voz do canto da mítica Katchêrê (ou katxerê), aquela que na mitologia dos índios Krahó vive nas estrelas, mas eventualmente desce a terra para nos ensinar o significado do amor, do preparo dos alimentos, a arte da música e dança (não por acaso, Katxërê é o titulo de seu álbum de estréia, que continua atemporal, como desde a estréia, lá pelos idos de 1997).

Incorporando Katchêrê, que nestes tempos escuros desceu das estrelas e iluminou nossos corações, em “Canções Para Atravessar a Noite Escura”, Kátya Teixeira soltou sua voz  e com seu canto anuncia não o fim, mas os novos tempos: um frescor que sopra suave depois da tempestade. A própria artista esclarece logo na abertura do belíssimo encarte – uma obra de arte a parte, criação coletiva envolvendo a própria Katya, André Vênegas, Naila Pommé: 


 

 

Foram dias insperados onde a palavra não era suficiente, onde só a arte alcançava... Anos antes, algo anunciava através do insondável em nós, do sombrio que pairava e a gente não queria ver

(...). Transbordamos medo, dor, raiva, medo, morte, choro e começamos a rever valores, prioridades, nossa humanidade, a fragilidade de ser...) (K.T.)

 

A humanidade convive com tragédias inomináveis desde que o Ser Humano surgiu na face da terra. Junto ao potencial destrutivo fomentados pela ambição e vaidades comezinhas a custa de dor e sangue, também nos tornamos capazes de fazer poesia. Os artistas tem o raro dom de pressentir. Às vezes fazem vezes de profetas, como às vezes grilos são astros! Ouçamos Canções Para Atravessar a Noite Escura de mãos dadas, pois é uma música de todos nós, sobreviventes. Os poetas que compuseram e embelezaram o albúm são interpretes de nós, o Povo, que nunca desiste!

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A partícula cósmica que navega meu sangue é um mundo infinito de forças siderais, veio a mim sob um largo caminho de milênios, quando talvez fui areia para os pés do ar. Logo fui a madeira, raiz desesperada submersa num silêncio de um deserto sem água.” (Atahualpa Yupanqui, traduzido por Dércio Marques)

 

 “Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.”  (Guimarães Rosa, num ponto qualquer do Grande Sertão)

 



 

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