O cantor, compositor, violonista e profundo conhecedor da cultura musical amazonense, Antonio Pereira, está lançando mais um disco, o sexto de sua carreira. Na sua trajetória ele se destaca pelo apreço e cuidado meticuloso que devota a cada canção e a cada conjunto delas, enfeixadas - ele faz questão de revelar a “história” de cada canção, sejam de sua autoria ou de outros compositores. A “reunião musical” que ele elabora para cada disco, uma vez conhecido o resultado, concretiza em nós a certeza: nada é desprovido de sentido em seu trabalho, nada é banal. Pereira veio a este mundo predestinado a fazer música. É mais que um ofício, é seu jeito de ser, sua linguagem.
O cidadão Antonio, nascido em Maués, interior profundo do Amazonas poderia ser qualquer outra coisa na vida: doutor ou chofer de caminhão; filósofo ou andarilho, mas antes de qualquer destas coisas, sempre Cantador. Até aqui, são 6 obras, cada uma delas contendo vários recados, várias mensagens que são lançadas ao mundo como garrafas ao grande mar do mundo. Apesar do requinte estilístico, seu trabalho é realizado sem estardalhaço, colhendo um verso aqui, um arranjo ali, uma parceria aqui, um tema retomado logo mais adiante, sempre de maneira despretensiosa, e quando menos se espera, nos surpreende com uma obra prima, revelada com a mesma simplicidade como sobe aos palcos com a mesma roupa que anda pelas ruas de Manaus com suas sandálias de couro, os longos cabelosagora já pendendo ao grisalho, desalinhados, o sorriso tímido de caboclo.
O despojamento é aparente. Engana-se quem supor sua música feita para entreter, distrair. A voz modulada serve de guia como num cortejo onde reluzem o colorido dos ritmos onde se encadeiam os sons revelados pela misteriosa selva que vive dentro dele – cabe-lhe bem a alcunha Uirapereira (referência ao lendário pássaro Uirapurú): a Amazônia guarda muitos mistérios e pelo menos um deles, ouso decifrar: Pereira é o uirapuru disfarçado de gente humana.
Um ponto forte seu é a voz privilegiada (que lembra o Milton Nascimento dos velhos tempos), mas raros temas instrumentais vez ou outra nos surpreendem agradavelmente, revelando delicadezas que deleitam nossos ouvidos, nos deixando na fremente expectativa de ver brotar do arranjo instrumental, a voz marcante, imensa e delicada, que cola como suave visgo, nos fazendo frear a caminhada e parar para ouvir. Assim foi desde seu disco de estréia, conforme segue:
- O Lago das 7 Ilhas (1994)
- Estrada de Barro (1998)
- Lendas (2000)
- Afluentes (2007)
- Luz de Lamparina (2013)
Em 2018, os cinco álbuns foram reunidos numa Caixa Musical, denominada “Discografia”.
A Discografia é uma biografia musical, repleta da magia do universo amazônico, universo que o autor tão bem conhece, por ser filho da terra e lá ter vivido toda a sua vida. Sua abordagem dos Mitos, da História, da Arqueologia, das Utopias, etc. é feita de forma direta, consequência das vivências e de sua interação com lugares e pessoas. Ao ouvir sua música, não procurem fantasias míticas de seres imaginários ou discursos panfletários; nas entrelinhas, entretanto, percebe-se certa nostalgia de uma Amazônia que um dia foi pura e que talvez voltará a sê-lo e esse caminho sem volta é a ameaça permanente da Tragédia que muitos ainda não se deram conta, dominados pela ganância advinda do desmatamento e mineração, ilegais.
“Discografia” é uma biografia, um passeio poético, um testemunho. O autor vai colhe frutos e flores, viçosos e em forma de poesia e música, o que reacende a esperança; esperança de que as árvores sustentem o céu, impedindo sua queda, conforme alerta o xamã Davi Kopenawa...
...e chegamos à Sexta Folha, o sexto álbum da carreira. Título feliz, pois “folha” remete a papiro: é como se as historias da Amazônia estivessem sendo permanentemente escritas em suas folhas, gravadas em cada uma delas. A música de Pereira, é um canto livre, porém comprometido com a vida de seu povo. Conhecer e divulgar sua obra é compreender o universo amazônico, sua importância cultural, econômica e humana, indissoluvelmente ligadas.
Sendo a arte um território livre, um artista como ele, que dedica o melhor de si – seu incontestável talento – a serviço de sua gente, merece ser ouvido e apreciado segundo o que ele melhor sabe fazer: cantar, compor, tocar. Sua obra transcende ao autor, especialmente pela capacidade de dialogar musical com artistas fora do universo amazônico. Antonio Pereira não é formalmente ligado a nenhum movimento, mas é um atento observador. Conhece os caminhos e suas curvas, as bifurcações de estrada: sua música vem de fontes tradicionais bem brasileiras, colhidas nos cruzamentos de caminhos de uma caminhada que ultrapassa 40 anos. Sua voz marcante e única, ressoa nas matas, nas montanhas, nos cerrados, tornada universal, ponto de intersecção. Sua arte, seu legado. Este disco, apesar de breve, é bastante representativo do seu universo salpicado de cores, brasilidade e latinidades, elementos essenciais para compreender a necessidade da integração e assim compreender a imensa miríade cultural que tem a Amazônia como berço.
A Sexta Folha traz 12 registros, sendo 3 regravações..
As faixas:
1 – Flor (regravação do CD Estrada de Barro)
2 – Águia
3 – Barco
4 -Tambor da Vida
5 – Arunachala
6 – Horas Marianas (regravação do CD O Lago das 7 Ilhas)
7 – Noite em São Tomé
8 – Passarim
9 – Usina
10 – Ponte Velha
11 – Huellas (regravação do CD Luz de Lamparina)
12 – Pedra Pintada
“Só respeita quem conhece.”
(M'bwa Xavante)
João Ba e Antonio Pereira