CORDAS SENSÍVEIS, O DISCO FRANCO-BRASILEIRO DE FABIENNE MAGNANT

 


A relação da violeira/violonista francesa Fabienne Magnant com a música brasileira remonta algumas décadas. Seu primeiro disco, (Memóire Vivante Brèsil et musique du XXème (Memória Viva, o Brasil e a Música do Século XX), de 1995, é inteiramente dedicado ao Brasil. São  surpreendentes interpretações de clássicos eternos como Odeon, Dr. Sabe Tudo, Lamentos do Morro, Pó de Mico, Graúna entre outras – surpreendente dada a afinidade, uma até então inédita familiaridade com nossa música. O disco está esgotado, apesar dos clamores por nova prensagem.


O segundo disco, Canto Instrumental, (1998), em parceria com o percussionista Paul Mindy, novamente tem presença das cordas brasileiras com Sambalanço (Jair de Paula) e Desvairada (Garoto), além de repercutir a influência brasileira numa peça de sua autoria,  um “baião à moda francesa”, ao qual chamou “Baiao Sans Nom”. O Baião Sem Nome pode ter sido o prenúncio para o que viria a seguir.



Le Sens dês Sens, o terceiro álbum , (2003) é uma exaltação aos sentidos e utiliza pela primeira vez em disco a viola caipira. Apaixonou-se pelo delicado timbre deste instrumento popular no Brasil, de história remotíssima. Sabemos que foi trazida para terras tropicais pelos colonizadores portugueses, tendo se espalhado por todo o território nacional, adquirindo peculiaridades regionais: viola caipira ou brasileira, viola nordestina, a viola fandangueira, viola-de-cocho, etc. A viola caipira ou brasileira deve ser a mais popular, predominante no interior da região centro-oeste. Suas Dez cordas sugerem que pode ter a mesma origem no alaúde árabe, de cinco cordas. Contudo, trata-se apenas de uma especulação, mencionada de passagem. Contudo, conforme citado é apenas especulação – ou, seguindo a tradição no meio dos violeiro, pode ser um excelente mote para um causo. De fato, são instrumentos diferentes para diferentes finalidades, com escalas e afinações distintas, tão distantes quanto as noções de sagrado e profano que pode existir na origem comum: o alaúde, instrumento ritual; a viola, instrumento festeiro. Nada impede, entretanto, que a viola caipira possa ter o alaúde como ancestral.

 


SOBRE O ALAÚDE ÁRABE

O alaúde árabe, de cinco cordas, era usado pelos médicos. Ou seja, literalmente um instrumento de cura, que, por sua vez, é uma evolução do tradicional alaúde de quatro cordas, que representava os 4 elementos primordiais da natureza:  Terra, Água, Fogo e Ar, correspondentes às cores amarela, vermelha, branca e negra, que por sua vez correspondiam à bílis, sangue, fleuma e melancolia. Após o diagnóstico, a combinação de notas musicais exercida pelo médico-alaudista era parte do tratamento. Diz a lenda que Ibn Sina (conhecido no Ocidente pelo nome Avicena), um dos pais da medicina, era alaudista e fervoroso defensor de tal prática terapêutica. Por volta do século VIII ou IX de nossa Era, o sábio e músico Ziriab, nascido no atual iraque, introduziu a Quinta Corda no alaúde, que ele chamou A Corda da Alma. Ressalte-se que a viola caipira não é uma versão das cinco cordas do alaúde, então duplicadas.


Mas é inegável que o universo musical é repleto de segredos. Considerando as distâncias abissais e temporais, muita coisa se perdeu ou se transformou na longa caminhada. Determinados segredos podem ter sido preservados no inconsciente coletivo, à espera de quem os desvendasse? Estudiosos do universo violeiro costumam dizer que tocar viola vai além da técnica, é preciso – para ser bom violeiro, ter uma relação de identidade com o instrumento. François Kokekaere, produtor artístico do álbum Le Sens dês Sens, em texto esclarecedor no encarte, escreve sobre Fabienne:  “...ela nos faz descobrir um mundo musical imaginário que só ela conhece (...) um segredo que ela compartilha no instante de um momento fugaz.”  

A percepção de Kokelaere e a intuição de Fabienne se cruzam de modo que só a magia da Arte é capaz de oferecer aos nossos sentidos.

 

ELOS INVISÍVEIS CONECTANDO MUNDOS DISPERSOS

Fabienne é uma antena pronta para captar sons adormecidos ou dispersos. Foi andando num fim de tarde pelas margens do Rio Capibaribe, em Recife, que surgiu Fragâncias do Recife, composição registrada no La Trinidad. Sem abdicar da técnica de musicista adquirida no Conservatório Nacional Superior de Música de Paris, com Olivier Chassan e Roland Dyens, um ponto forte de sua arte é sua intuição poderosa, que ressoa nela em corpo e alma. Com seu trio preferido – violão clássico, violão flamengo e viola caipira - partilham ancestralidades, que ganham vida, como num sonho. Não se furta a seguir trilhas invisíveis, que aos poucos se materializam na construção de pontes entre povos e épocas distintas. Tal capacidade de convergência harmônica é parte de seu ser, de seu modo de ver o mundo.

Em seu quarto disco, La Trinidad (2011), assume de vez o universalismo, viajando simultaneamente pelos universos clássico-flamengo-brasileiro, uma das Santissimas Trindades das cordas dedilhadas, instrumentos, tão simbólicos para os povos onde é popular. Seria o fugaz afloramento, o ressoar de ancestrais heranças ciganas que a fez juntar compositores tão distintos como Gerardo Nuñez (Granaina), Sabicas (La Trinidad e Buleria), Garoto (Jorge do Fusa) e Marco Pereira (Pixaim e Bate Côxa)? Completa o disco com composições autorais (Clin d’oeil), Impression, Un Deux, Fragâncias do Recife). Atenção: não esperem o toque da viola caipira ao qual estamos familiarizados: Fabienne o incorpora a si a fim de expressar sua musicalidade, sua personalidade, provando o valor inequívoco deste instrumento que poderia ser um símbolo de nossa nacionalidade – embora de origem européia. Seguir o estilo dos mestres poderia soar como imitação ou inautenticidade!

 


AS CORDAS SENSÍVEIS

Neste 2025, depois de várias viagens ao Brasil, Fabienne Magnant culmina o encanto que surgiu ao se deparar no centro do Rio com uma viola Do Souto. Depois de uma longa pausa, vem a lume o disco Cordas Sensíveis (Cordes Sensibles), que podemos chamar franco brasileiro, com a rara exceção de Fuente y Caudal, de Paco de Lucía. Disco concebido depois de intensa convivência, onde o popular e o clássico conversam fluentemente: no mesmo palco se encontram de Gonzagão (Asa Branca) à Villa-Lobos (Prelúdio Nº 1); de Ricardo Vignini (Minuano) a Baden-Powell (Canto de Ossanha). Inclui peças de sua autoria com temas diversos, como a Fantasia De Danza, em três Movimentos, denominados Adágio et Arabesque, Rítmico e Sincopado; regravações de Nordestine e Baião Sans Nom (de Le Sens dês Sens). Destaque para a peça Almas no Caminho, que soa como uma Ode aos acasos felizes que a vida nos proporciona. Esta faixa mereceu um poema vigoroso e sensível da mineira Consuelo de Paula. Ouvindo, temos uma sensação de movimento. Ou, como diria Consuelo de Paula, um convite a contradança!








    Cordas Sensíveis é um sutil desbravamento musical guiado por Asa Branca, patrimônio musical brasileiro, que ela interpreta sob forma de uma Saga Sonora, viagem de sensações. Vislumbramos o cenário caatingueiro, as agruras da seca, mas, ao longo da travessia, nos deparamos com folguedos, bailes, quermesses, procissões, folias. Ouso dizer – em interpretação exclusiva minha, pessoal – que Cordas Sensíveis é um encontro atemporal de todas as cordas sensíveis, mesmo as que não estão presentes nesse álbum exuberante, repleto de detalhes e significados, como num filme de Kieslówski.

 

Destaque para a presença especial de François Kokelaere, que deixou por breve período seu refúgio espiritual num mosteiro no sul da França para marcar presença com seu berimbau e nos brindar com três belíssimos poemas, louvando a magia da percussão: berimbau, kalimba. Reproduzimos abaixo  pequenos trechos de poemas dedicados ao Berimbau:

(...)

Berimbau

Arco da África

Você atravessou o mar

Berimbau

O oceano lavou sua memória

Berimbau

Quando você fala

É a terra que canta

Berimbau

Quando você vibra

As estrelas dançam e o Universo inteiro sorri.

(Editions Poïen, francoiskokelaere.com)

Fabienne escreve assim do texto (bilíngue) no belíssimo encarte:

“Este quinto álbum é um testemunho de vários anos de peregrinações e inspirações artísticas. Toco em solo, (...) ou do duo ao quarteto e, como no meu álbum anterior (La Trinidad, 2011), utilizo novamente meus três violões: violão clássico/brasileiro, flamenco e viola caipira. As peças apresentadas são obras primas do repertório clássico (...), acompanhadas por percussões, rabeca, baixo, contrabaixo, clarinete e mesmo uma voz poética. (...) minhas múltiplas paixões musicais, permite compartilhar (...) e possibilita explorar a intimidade que o solo instrumental – tão precioso para mim – oferece.” 

Na viagem de descobertas e revisitações, em nenhum momento resvala em sentimentalismos saudosistas. Se assenta em farta solidez musical e mesmo histórica; é uma celebração, não apenas sobre a relação Brasil/França, que vem de séculos, mas da própria música e do quão essa arte sublime se permite oferecer:

A flor canta, toca os sinos, os cometas

No adiantado das tardes

Nas floras, folias e cítaras

Feixes azulados e amarelos

Saltam do corpo dela

Inundam os barcos

Calam a voz do mar!

(Consuelo de Paula, do poema A Flor e a Música, recitado na faixa Almas no Caminho)

 

SERVIÇO:  salvo mudanças de ventos, só deverá ser lançado no Brasil por volta  de Abril de 2026. Contato: magnantfabienne@gmail.com /www.fabiennemagnant.fr /guitartproductions75@gmail.com

Cordas Sensíveis,  brasileiros e franceses: Consuelo de Paula (voz), André Rass (percussão), Ricardo Vignini (violas dinâmica e caipira), Bruno Menegati (rabeca), Pedro Macedo (contrabaixo), Fabius Tamayo (viola de cabaça), Akiko Horii (percussão), Samuel Thézé (clarinete), Dominique Muzeau (baixo), François Kokelaere (percussão e voz), Fabienne Magnant (viola caipira, violão clássico, violão flamenco).

Adbox