LITERATURA DE PERIFERIA

 

Um feliz acaso fez cair-me às mãos um exemplar do livro Militância na Periferia – Histórias e Personagens de Cinco Décadas de Lutas na Região Sudeste da Cidade de São Paulo.

            Vivi a maior parte da vida no Jabaquara, de modo que grande parte dos eventos descritos pude constatar in loco, embora jamais tenha atuado como militante: era somente um atento morador do bairro que gostava de flanar, circular a pé por suas ruas. Tempos depois, como funcionário da Subprefeitura, sentia especial prazer em reaver velhos caminhos, agora alterados ou modificados pela intensa e descontrolada ocupação urbana. O alargamento da Av. Armando de Arruda Pereira, a partir do metrô Jabaquara por muito tempo ficou como uma enorme cicatriz, “engolindo” parte do bairro, sem deixar vestígios. Quem, dentre os antigos, conhece a localização da antiga “Padaria da Saudade”, outrora uma referência afetiva e geográfica? O Hospital Psiquiátrico Dr. Joy Arruda, que começou sua história como hotel luxuoso e discreto, terminou seus dias como sede da Subprefeitura. Foi demolido e no lugar surgiu um “Centro Empresarial”. Destino parecido teve o atual Shopping Jabaquara, construído no lugar de antigos casarões.

           


            Militância na Periferia, livro organizado por Benedita Creusa de Andrade, está em sua segunda edição, pela Editora Terra Redonda. Benedita Creusa, ela sim, uma vibrante militante, ativa, chama a atenção por transformar literatura em instrumento de luta. Mas também chama a atenção para um tipo de “literatura invisível”, desconhecida do grande público, porém, atuante na comunidade, ao fazer faz emergir das sombras do esquecimento a história do bairro pelo viés de sua população mais carente e a luta por direitos, por afirmação cidadã. O livro – uma coleção de dezenas de depoimentos, histórias/personagens – não é apenas a memória descritiva e revista; serve de modelo vivo e autêntico para as novas geração. Não são histórias de comendadores, condes, “coronéis”, não são apologias à burguesia ou aristocracia, são testemunhos de quem construiu sua história usando braços e mãos calejadas, motivados por uma vontade muito maior que as oportunidades escassas da dura de trabalhador...

Assim é a literatura de periferia, um literatura que cresce nos intertícios da sociedade. Embora tentem calar ou esconder, ocupam espaços. Parafraseando Walt Whitman, cresce silenciosamente, como folhas de relva. O registro em livro consolida o registro da luta ao mesmo tempo que estimula a produção de sua própria literatura, sob o seu ponto de vista. A “literatura periféfica” produzida nesta região da cidade, no Jabaquara, cresceu e vingou no rastro da militância que se desenvolveu na região nos últimos 50 anos. O registro em livro tem interesse didático e abre espaço para outras literaturas: poesia, teatro, música, crônica.

O fervor contido na escrita é o mesmo da militância, são as mesmas cores com que redesenharam o espaço público fazendo valer seus direitos. Descrevendo a história do bairro e própria cidade: vida e literatura interagem, alimentam-se reciprocamente. Homens e mulheres da classe trabalhadora reafirmam-se como protagonistas da epopéia urbana. São relatos enriquecidos pelo linguajar simples que conta a história de cada creche, escola ou posto de saúde, ensinando que nada veio de graça e sim resultado de luta por direitos e justiça social.

 JABAQUARA DE OUTRORA: DOS CONFINS DA CIDADE

 O Jabaquara é um bairro peculiar. Está na periferia da cidade, fazendo divisa com Diadema, uma das cidades do ABCD (Santo André, São Bernardo, São Caetano e Diadema). É um bairro com facilidade de acesso – menos de 30 minutos do Centro – próximo a importantes vias como as Rodovias Bandeirantes e Imigrantes. Mas nem sempre foi assim. Um dos fatores que ajudou a diminuir distâncias foi a construção do metrô em começos dos anos 1970. Antes disso, Jabaquara era um “fim de mundo”, tão longe do Centro, que construíram na região o aeroporto de Congonhas, inaugurado em 1936. Naqueles idos tempos, São Paulo era provinciana e não passava pela cabeça de nenhum visionário que o aeroporto seria no futuro cercado pela cidade...





O nome Jabaquara é um aportuguesamento da expressão Yab-A-Qvar-A, tão longe era que se tornou lugar seguro para escravos fugidos. Ainda hoje, nas dependências da casa, existe um alçapão que leva a um porão onde os fugitivos se abrigavam. A construção, preservada, era o último local de descanso para o gado e montarias, que desciam ao litoral pela estrada “boiadeira”, chamada Nossa Senhora da Conceição. A construção foi feita num local privilegiado, às margens do Córrego da Ressaca, hoje aterrado. Tropas e boiadas vinham da região de Santo Amaro da Borda do Campo e ali era o último “pouso”, na providencial construção em estilo colonial, provavelmente feita por bandeirantes. Há uma data escavada no batente original: 1719. São mais de 300 anos, uma construção bem antiga!





            O bairro chama a atenção pela variedade de classes sociais, consequência direta da ocupação desordenada que forma bolsões populacionais desiguais: áreas “nobres” servidas de serviços públicos de qualidade e áreas densamente povoadas onde falta saneamento básico. Os cerca de 250.000 habitantes do bairro parecem reproduzir, em escala menor, as mazelas brasileiras.

             As vozes e escritos que renascem através da literatura periférica do Jabaquara é algo recente, ao contrário de outras manifestações culturais, como a Escola de Samba Barroca Zona Sul, o Maracatu da Casa Leide das Neves, o Terreiro Axé Ilê Obá, entre outros. A escrita periférica é nervosa e vibrante; seu linguajar é pragmático, aproxima-se da objetividade do correspondente de guerra, do jornalismo de bairro. São, sem exagero, escritos do front, diretamente do teatro de luta.

Quando pensamos em “literatura periférica” logo vem à mente autores como Sabotage, Ferrez ou Carolina Maria de Jesus, entre outros. Mas a escrita de denúncia vem de longe. A mais remota referência deve ser Lima Barreto, embora ele fosse um escritor refinado. Lima Barreto era a contramão da literatura consumida pelas elites, denunciando as mazelas de uma sociedade dominada pela herança colonialista e pensamento escravagista.

O linguajar despojado do militante e do trabalhador dispensa afetações disfarçada de sofisticação. É a voz embargada e trêmula de emoção e sua autenticidade rompe caminho; mostra que fazer a própria Arte é preferível do que se servir de receitas prontas! Melhor fazer do seu jeito, desafiando a estética que, no caso, serviria para esconder a realidade que deve ser modificada pela luta necessária para corrigir injustiças seculares! Não se trata, porém, de limitar a criação, submetendo-a à ideologização. A Arte existe para acrescentar e não para eliminar ou abafar a criatividade; que seja a Arte, a porta de entrada para novas possibilidades, onde, ao conhecer a própria história, possa reconhecer-se a si mesmo, falar de seus problemas, dramas e sonhos. Benedita Creusa de Andrade, organizadora de “Militância na Periferia”, Creusa, como é conhecida, é ao mesmo tempo autora e personagem. Formada em pedagogia e filosofia, sabe da importância dos escritos e falas do povo, por ele mesmo. São escritos e relatos orgulhosos, para a posteridade, páginas umedecidas pelo suor, em muitos casos, de sangue.

Não são histórias de vencidos e sim de vencedores, merecendo ser chamados heróis exemplares, pela superação. Transformaram o grito dos excluídos, que não é mais de dor ou medo, transformado em grito de afirmação. Conforme disse certa vez o Marechal Rondon, em 1956, para um jovem líder Xavante, o futuro cacique Tsöröpré: “você deve falar alto, pois é o dono da casa! O dono da casa fala alto!”

 O Jabaquara, cantado em prosa e verso pelos próprios habitantes, aglutina vários aspectos, múltiplas forças vocacionadas para a vontade e a ação. Uma multidão de profissionais da saúde, pedreiros, professores, funcionários de limpeza, professores, religiosos, etc., coloca a mão na massa amalgamando o barro com o qual construíram a cidade onde moram e vivem. Tomando gosto pela liberdade e independência, ocupam espaços como o CEU Caminho do Mar ou o Centro Cultural Jabaquara (onde está o Sitio da Ressaca) para fazer música, poesia, teatro em ruidosos e entusiasmados saraus!

            Quem conhece os textos dos jovens poetas do Jabaquara que se encontram regularmente para desfilarem sua arte, sabem que a periferia sabe o que pode e o que quer. A periferia tem potencial para produzir escritores, médicos, engenheiros, arquitetos, designers, atores, do mesmo modo que as escolas existentes nos acampamentos do M.S.T. produzem seus médicos, enfermeiros, professores, advogados. Isso já não é sonhos, mas realidade. Se existe um futuro saudável para o mundo, o mesmo passa pela produção de orgânicos do M.S.T. e pelo povo organizado das periferias das grandes cidades. Como diria o professor Boaventura Souza Santos: “...é chegada a vez da afirmação das Epistemologias do Sul. Os Impérios do Norte fracassaram na construção de uma humanidade justa e fraterna.”

Nas veias do bairro Jabaquara, em suas ruelas e travessas, a vida pulsa. Vozes se erguem para deixar claro que não querem privilégios, mas sim o direito de exercer  sua cidadania com ruas bem cuidadas, plenos serviços de saúde, escolas. O pleno acesso aos direitos cidadãos é a segurança que precisamos, em vez da intimidação.

Adbox