KÁTYA TEIXEIRA, OSWALDINHO E MARISA VIANA REVISITAM O BRASIL PROFUNDO

Há poucos dias vimos nos palcos paulistanos duas presenças bastante elucidativas para os rumos da música brasileira de qualidade. O tema é antigo: não é novidade nenhuma que nas duas últimas décadas o artista brasileiro tem encontrado sérias dificuldades para trabalhar, mas não quero aqui elencá-las, mais uma vez: o que importa, o que quero destacar aqui é a pujança, a força e a importância da persistente arte brasileira. Parodiando Euclides da Cunha e sua visão sobre o sertanejo, podemos afirmar: o artista brasileiro, é antes de tudo um forte. Quando se pensa que o mercado sucumbiu á mediocridade, que os espaços alternativos perderam vez para a especulação imobiliária (e outras especulações mais), eis que ver nossos artistas em ação, esbanjando talento e amor pela arte, nos enche de alegria e esperança: um alento.
No palco da sala Adoniran Barbosa, Katya Teixeira e a percussionista Cássia Maria, reocupando um espaço que em meados da década de 1980 era muito requisitado por público e artistas: por lá, àquela época, por muitas vezes disputei ferozmente ingressos para ver Diana Pequeno, Marlui Miranda, João Bá, Tarancón, entre outros. Passou um período de ostracismo, mas nos últimos anos, bons e importantes músicos tem por lá se apresentado: o menestrel Roberto Bach, o Grupo Matuto Moderno, “seu” Nelson da Rabeca & Thomas Rohrer, Indio cachoeira e Ricardo Vignini, entre outros. A presença de Kátya por lá segue uma curiosa “linhagem”: antes freqüentava o espaço seguindo seus ídolos, hoje é protagonista e com a importante missão de recuperar a credibilidade do espaço e seguir a tradição de música boa a preços acessíveis (por ora, a grande maioria dos espetáculos musicais por lá é grátis e essa é uma armadilha que a principio desnorteia artistas e público, pois sabemos que “não existe almoço grátis”, o espetáculo é pago, sim, e por todos nós, inclusive os próprios artistas. Mas esse é um tema que merece outra reflexão, para outro momento, de preferência tendo os próprios artistas a palavra. Mas sabemos que o ideal, o mínimo ideal é que exista música de qualidade a preços acessíveis, com bons técnicos, bons equipamentos e especialmente boa divulgação por parte da mídia. O “de grátis” vem acompanhado de uma série de vicios e desleixos que não vale a pena mencionar aqui, e aquilo “aparentemente gratuito” termina por sair caro e as principais vítimas são o próprio público realmente interessado em arte de qualidade e os artistas tendo de lidar com as dificuldades de sempre).
Katya, que acaba de completar 20 anos de carreira – oficial – está em seu elemento: próxima ao público, desfila seus múltiplos dons de instrumentista, cantora, compositora, pesquisadora de cultura brasileira, notadamente a cultura oral. Há dois anos o mundo da música perdia um de seus maiores cultuadores, o andarilho da musica Dércio Marques: ele se foi e deixou um vácuo enorme, dificilmente preenchido, pois era um aglutinador, um verdadeiro pólo de atração que conseguia com sua música e amor por essa arte reunir em torno de si as pessoas. Mas desde o ano passado Kátya Teixeira deu inicio ao Projeto Dandô, um circuito musical que roda o país levando a música popular de uma região para outra ao mesmo tempo em que promove a música local, pois cada artista visitante tem como companheiro de palco um “artista anfitrião.” É um projeto, uma ideia com a cara do Dércio, que fez isso a vida toda instintivamente. A ideia de Katya foi brilhante, pois, ao tempo em preserva e divulga a importância de um artista como Dércio Marques, prossegue sua missão com dedicação, amor, energia e o inegável talento.
Para lembrar: “Dandô” é o subtítulo de uma conhecida música de João Bá, o Circo das Ilusões ou O Canto dos Ipês Amarelos ou ainda Vento Bandoleiro, que Dércio costumava costurar com outras, executando de improviso suas famosas “canções bordadas.” É uma palavra de origem africana, significando “os primeiros passos da criança, o dandar!” A informação foi fornecida por Kátya Teixeira, sempre meticulosa em sua função de pesquisadora e que certamente a colheu junto aos seus mestres João Bá e Dércio Marques. Tenho pra mim, entretanto, que embora de clara origem africana, parece-me tratar de uma invenção brasileira, tem todo o trejeito de uma presepada captada por João Bá...
Assistir Kátya Teixeira, é fazer uma viagem pelo Brasil, geografia afetiva e topográfica remontando e reconstruindo nossas memórias: do pampa à caatinga, passando por cerrados, florestas, passeios de barco por rios e por mares, incursões por terreiros de dança, por roças, aldeias indígenas, ritos religiosos, verdadeiro retrato dinâmico do país onde o encontro de raças encontrou campo fértil para a união, efetivada através da música.
Noutro canto da cidade, assistimos a família Viana, composta por Oswaldinho, Marisa e o filho Daniel. Os Vianna fazem parte da cepa tradicional caipira, bem ao estilo retratado na música do Adauto Santos, “Caipira de Fato”. Embora os cabelos e barba comprida de Oswaldinho e a elegância de Marisa não os identifiquem de imediato como caipiras tradicionais, basta soltarem a voz e fazer trinar as violas e violões para reconhecer a “alma cabocla” que mora neles.
Vê-los, ouvi-los é ser tomado por uma nostalgia, uma estranha nostalgia que não é a saudade de um tempo imemorial, irrecuperável, irremediavelmente perdido; não é de tristeza de mundo perdido no passado, mas sim a lembrança de coisas belas e simples que a azáfama e a correria da vida moderna por vezes nos assola. Ouvir e ver a família Vianna no palco é presenciar uma reconquista de sonoridades e harmonias, pois tratam os clássicos caipiras com o respeito que os mesmos merecem, enquanto tecem novas harmonias e arranjos, dando aos mesmos um sabor de novidade. Assim, somos capazes de ouvir Casinha Branca (Voce vai Gostar), de Elpídio dos Santos (a quem dedicaram todo um CD, o belíssimo Viva Elpídio) com sabor de novidade ou Rio de Piracicaba (Rio de Lágrimas) com pegada roqueira, lembrando o arranjo do Matuto Moderno – a propósito, existe uma versão sambada desta canção, que só a enriquece, tornando uma música para todas as épocas, como convém aos clássicos. No show da família Viana, canja do filho Daniel, jovem músico, poeta, interprete dos novos tempos marcando presença, conquistando e ampliando novas fronteiras do universo sonoro da MPB.Os Viana deixaram implícito o convite: vamos conhecer o trabalho do Daniel.
Kátya Teixeira e o Projeto Dandô; Oswaldinho e Marisa Viana, gerações que se misturam, se situam, dão vivacidade, marcam presença. Viajantes incansáveis, revisitam o Brasil profundo, onde colhem frutos que semearão o futuro...
Em vez de perseguir quimeras sem ligação com o que é real, é melhor nos aplicarmos a renovar instituições que já foram testadas e que são suscetíveis de reviver.” (Oswald Wirth, num comentário sobre a obra de Goethe ‘O Conto da Serpente Verde e a Bela Lilie')
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