Está na
praça mais um disco do violeiro e cantador mineiro Wilson Dias, o sétimo de uma
carreira “mineiramente” consolidada. Ou melhor, são dois discos num só, um
álbum duplo, sendo um instrumental e o outro de canções. São complementares? Com
certeza, a medida que o artista nos apresenta de uma carreada só diversas facetas
do seu rico universo sob percepções diferentes: se nas letras das canções
propõe a linguagem direta, na outra cabe ao ouvinte dar asas a imaginação,
construir ou traduzir ele próprio as paisagens por onde transita o artista que
transforma cada recanto, cada acidente geográfico, cada história em sons (aqui,
lembrando mestre Zé Côco do Riachão, para quem qualquer som ou imagem do sertão
- o crepúsculo, o amanhecer, o vôo da garça - tudo se tornava musica). Não por
acaso que no texto de divulgação pela distribuidora Tratore, o album é
apresentado como “autorretrato" e ouvindo os trabalhos, faz todo sentido: o
Brasil e seu passado, seu presente e seu futuro, tudo entrevisto pela história
pessoal de Wilson Dias e traduzido através de seu olhar carinhoso e critico
dedicado a esse Brasil, “bonito e amado”.
Traz na capa
uma fotografia dos pais de Wilson, única
imagem que restou dos dois, um daqueles retratos típicos, muito comuns nas humildes
casas das famílias sertanejas. A singela homenagem aos pais deve ter sido muito
cara ao artista, um resgate de uma história que o trouxe até aqui, musico
realizado, no auge da capacidade criativa.
É um
trabalho desde já raro, destinado a ser raro, devido a forma como capta
poeticamente os dramas, as tristezas e alegrias da gente brasileira e as insere
na atualidade. Atenção para as palavras
finais, declamadas, da faixa "Boi Brasil", parceria com João Evangelista Rodrigues (que co-assina mais quatro composições), que encerra o álbum “Canções”:
“...já estamos no futuro
Mas a gente vai se levantar
Esse Brasil é bonito demais
E a gente pede e até implora
Seja gentil, meu boizin elegante!”
(Nota: essas palavas não constam no texto de encarte. Aparentemente se trata de um improviso, o que torna ainda mais especial a citação, pois dá uma breve ideia do clima emocional reinante no ambiente do estudio de gravação)
(Nota: essas palavas não constam no texto de encarte. Aparentemente se trata de um improviso, o que torna ainda mais especial a citação, pois dá uma breve ideia do clima emocional reinante no ambiente do estudio de gravação)
São apenas
palavras de ânimo do poeta para seus companheiros de jornada, empenhados mundo
afora, por toda a parte, em fazer permanecer vivo o espírito humanista de
fraternidade? Ou seria um tipo de premonição – outra característica reservada
aos poetas – num verdadeiro “chamamento”, para jamais desistirem de ter
esperança? Pode ser tanto uma coisa ou outra. Como é da natureza dos poetas,
são desabridos sonhadores e seu apelo, evidente nas palavras, é de esperança e
luta.
Não só por
conta dos ritmos que reconhecemos, fato é que sentimos o tempo todo o permear
de uma atmosfera bem brasileira. Nossa história é conturbada e não é de hoje.
Vem desde os primeiros séculos quando era uma terra de desterro. Porém, o
desterrado acabou por fazer daqui sua pátria. Se trazemos na alma cicatrizes,
igualmente trazemos a serenidade de corações pacificados, acolhedores:
“Canta pra acordar
O inconsciente
Canta no terreiro
Deixa a chama acesa...”
(Versos da
canção-titulo NATIVO)
Wilson é um
interprete do sertão. De um sertão que ele conhece como poucos, nativo que é, fazendo jus à lembrança
trazida por Dea Trancoso no texto do encarte , que recorre ao pensador português
Boaventura de Souza Santos. Escreve Dea a respeito do NATIVO: “sabe de sua própria existência, aprendeu a
partir de si e para consigo mesmo...”
E assim,
conhecendo a si ao sertão, o descreve
poética e musicalmente, recorrendo a muitos gêneros presentes no Planeta Minas – congadas, benditos, toadas, bumba meu boi,
etc. – acompanhado por um rico time de músicos: dentre tantos, o sempre presente
André Siqueira, Walace Gomes, Pedro Gomes, Paulo Fróis, Carlinhos Ferreira,
Thiago Delegdo, Gladson Braga, Camila Rocha, Lucas Viotti, corais de Ana Ismar,
Maria Enilde, Maria Neuza, Geraldo Dias, Arlindo Dias, Gustavo Guimaraes, mais
as vozes de Titane, Rubinho do Vale e Lislie Fiorini. Com toda essa gente animada, o sertão fica “bunito qui só veno!”, como diria João Bá!
Wison Dias é um matuto que conhece
as sofisticações da alma humana. Sua sabedoria é um tanto adquirida da
experiência direta e outro tanto, digamos, incorporada “geneticamente” através
do inconsciente coletivo, a herança da cultura humana que carregamos, podendo
ficar adormecida por séculos, ressurgindo no momento apropriado.
Certa vez, após um belo e comovente
espetáculo do SESC Consolação em S. Paulo, alguém perguntou a Wilson algo a
respeito de sua fonte de inspiração. Lembro que momentaneamente pareceu-me
aturdido, buscando rapidamente o linguajar adequado para dizer algo que para
ele era tão óbvio quanto respirar. Era como perguntar a uma criança de roça
porque gosta de laranja e manga. A criança gosta das frutas porque é gostoso,
simples assim, jamais considerando as propriedades protéicas, as vitaminas, os
benefícios da acidez e outras mais. Não
me lembro da resposta de Wilson. Deve ter sido uma daquelas respostas-padrão
que os artistas sempre tem a mão para situações como essa, onde um interlocutor
tenta desvendar mistérios através da simples explicação racional, quando ao
poeta basta vislumbrar imagens imprecisas, mas que para ele é o bastante. O
poeta, para se situar no mundo, não carece de explicações lógicas. Wilson Dias
é essencialmente um poeta, felizardo poeta que domina essa arte com ou sem
palavras.
Se sabe que
nada pode ser mais ilógico do que a poesia. Dizem os entendidos que se trata de
um sistema de comunicação anterior à
linguagem articulada. Se existe algo próximo da explicação poética, seria algo
como “imagens em palavras”, pois a “poesia”, enquanto linguagem primitiva,
desaparece paulatinamente da vida do individuo a medida em que se procura
explicá-la, racionalizá-la.
Diz-se que a rima se fixa melhor na memória que a
prosa – o que talvez ajude a explicar porque a Odissséia ou a Iliada tenha
sobrevivido por milhares de anos; outros ainda, afirmam que a oração em forma
de versos (Salmos) chega mais facilmente aos ouvidos divinos. Fato é que a
palavra rimada possui uma atração irresistível, que toma conta da alma e do
corpo. Observe-se ao ouvir uma musica, a cadência dos pés e mãos, que
rapidamente contagia o corpo inteiro, que então parece mover-se por vontade
própria, independente da ordem cerebral. É como se o corpo, ao ser invadido
pelos ouvidos, buscasse, através do movimento dos membros, comunicar-se com o
mundo em torno. O poeta-filósofo Nietzsche, que tinha uma relação bastante
conflituosa com o compositor Wagner, rendia-se, afinal, à musica do mesmo: dizia
que “...a musica envolve quem ouve num laço mágico...”
Em NA.TI.VO
somos agraciados duplamente, por sons e palavras, enlinhavados por um artista
no apogeu de sua maturidade artistica. Ouvindo o trabalho, a variedade e
riqueza de temas, testemunhamos o artista que ousa ir além do convencional – o
que, em se tratando de Wilson Dias, já seria satisfatório. Ele faz tanto na
elaboração, que até deixa um pouco para nós, ouvintes, complementarmos: falo do
colorido, das imagens evocadas, o rico colorido sugerido; isso fica por nossa
conta e assim, ouvindo, também nos sentimos criadores, tal a vontade de cantar
e dançar junto.
Os CDs –
instrumental e vocal - complementam-se, assim
como o homem da roça, o nativo, complementa-se com a natureza.
[NA.TI.VO]
adj. Aquele que segue a disciplina da
natureza de maneira livre e própria. (texto na contracapa)
Wilson é
doutor em Sertão. Move-se com segurança dentro da cartografia sertaneja – outra
referência ao encarte, que traz como novidade sugestões para se compreender ou
se aventurar nas complexidades da alma humana, especialmente em momentos críticos,
de rompimento, como foi o Maio/68 e a Onda que na atualidade sacode o mundo.
Creio que os acordes e canções deste lindo trabalho vem nos atender num momento
crucial da história de nosso país, quiçá do mundo, onde nos descobrimos
interrelacionados. Quem dera seja a Arte a salvar esse mundo, ao dirigir-se diretamente
aos corações. Benditos e danças, batuques líricos são evocados com tamanha
pureza e força que nos deixamos impregnar por uma nostalgia estranha.
“Estranha”, pois não é a nostalgia da tristeza, da perda, do tempo perdido na memória
humana; é desta feita algo viva, que subjaz submersa, não no esquecimento, e
sim adormecida perenemente no nosso espírito, pronta para ser revivida. A
música se assenta, se aninha em nossa alma e a partir de então nos vemos e nos
reconhecemos como participes de um mesmo elemento comum, a cultura brasileira!
É a musica
da leveza, mas não do efêmero. Ao ouvir, o encantamento nos arrebata e sentimos que ondas de contentamento invadem a
atmosfera, e tudo, o mundo inteiro parece mover-se ao capricho das melodias.
DISCOGRAFIA:
- Pequenas Histórias
- Outras Estórias
- Picuá*
- Mucuta
- Pote – a Melodia
do Chão
- Lume
- Nativo
* “Picuá”. No Pontal do Paranapanema de onde vim, é como se chama um pequena bolsa que
todo capiau que se preza sempre traz consigo. Por vezes um caipira metido a
falar difícil ousa chamar “picual”, mas acredito que “picuá” é o termo correto