MARYAKORÈ, O DISCO ‘RÚSTICO’ DE CONSUELO DE PAULA




Além de sua reconhecida qualidade como poeta, cantora, compositora, instrumentista e produtora, a característica mais marcante da mineira radicada em São Paulo, Consuelo de Paula, sem dúvida, é nunca repetir uma temática, mesmo que isso venha a representar sucesso garantido, aspiração compreensível e legitima para qualquer artista. Mas o compromisso de Consuelo, antes de tudo, é consigo mesma, com a Arte em si e com seu público. Por isso, afirmamos com inteira segurança que cada um de seus sete discos lançados até agora não correspondem a uma demanda de mercado, de moda, o que seja; cada um de seus discos é um descortinar de visão de mundo, fruto de sua vivência, do exercício, enfim, de uma aguçada sensibilidade a serviço da Arte e da Vida.
Mesmo assim – mesmo sabendo que ela nunca se repete – sua ousadia pode nos desnortear, como é o caso do recém lançado CD,  “Maryakorè”, o sétimo de sua carreira. De roupagem e conteúdo denso e forte, por vezes áspero, contudo, permeado por imensa doçura, ressaltando uma enorme esperança que sempre perdura, mesmo em meio ao mais encarniçado combate; esperança que se cristaliza  em sua voz doce, pontuada por arranjos que extraem de cada canção, recursos que passariam despercebidos  em outros artistas, que não mergulham de corpo e alma no que fazem. É lugar comum, entre os conhecedores de sua obra,  afirmar que suas interpretações são tidas como definitivas.

A obra de Consuelo de Paula, cada um de seus sete discos,  é alimento e combustível para corações e mentes. São construções musicais eivadas de grande beleza estética e conteúdo que nos leva à reflexão. Muito tem a dizer, especialmente  nos tempos que vivemos, onde a intolerância é um perigo real a nos rondar. Anestesiados ou acomodados,  mal percebemos as ameaças que pairam sobre nossa jovem democracia, a cada momento. Estamos em crise? Ou é o ciclo, já discutido por historiadores, que a cada determinado período de anos, tudo muda no Brasil, apaga-se a história e há um novo recomeço?
A crise atual é visível. Tremula na atmosfera, como nos dias de intenso calor. Mas é uma crise  que está longe de ser apenas política ou econômica: esses elementos podem abordar apenas alguns aspectos, a “crise” real e profunda possui outras naturezas, nos afeta a alma, a identidade e o perigo real é nos tornarmos isolados, párias num mundo globalizado.
Num cenário de barbárie, que papel cabe ao artista? Ser o complemento do pão, oferecendo o circo para distração e entretenimento? Ou transpor a realidade aparente, buscando a realidade transcendente, oferecendo a quem o ouve/vê, elementos com os quais ele possa refletir o mundo que o cerca, obtendo daí suas próprias conclusões? Somente o artista fiel as suas convicções sobre arte e vida pode apresentar o contraponto num mundo regido pelo deus Mercado. Artistas como Consuelo e outros tantos que trabalham duramente na busca incessante por nossas raízes históricas/culturais, nos dão possibilidades de construir nossas próprias  narrativas e assim apresentar ao mundo nossa cultura, nossa história, nossa arte. Nossa Alma!

Desde seu disco de estréia, o antológico “Samba Seresta e Baião”, que sua proposta é clara. O disco que se revela completo, apresentando uma musicalidade original a partir de três importantes “troncos fundadores” da musica brasileira:   o Samba conduzido a partir do morro, a Seresta urbana  e o Baião sertanejo. Esses “pilares” de nossa musicalidade – a cidade, a periferia, o sertão – atuam  no disco como fios condutores que trazem consigo outros gêneros tão brasileiros como a toada, a canção, o folclore. “Samba Seresta e Baião”, mais que um repertório escolhido à sua medida, surge intenso e sem fissuras, evidenciando,  contornos que remontam aos primórdios de nossa história, através de artistas igualmente “fundadores” de nossa identidade musical – Chiquinha Gonzaga, Zéquinha de Abreu, Ataulfo Alves, Gonzagão, entre outros - , todos eles, ao seu tempo, incorporando elementos do folclore. O samba, a seresta e o baião,  a artista os carrega dentro de si, fruto de sua experiência, do rádio, das Congadas e Moçambiques que desde criança presenciava em sua Pratápolis natal. Por isso, nos soa tão autentico, tão apaixonante. A identificação do público que já conhecia seu trabalho nos palcos paulistanos e a critica da época, foi imediata, mas quando todos esperavam algo como “Samba Seresta e Baião 2”, eis que  todos,  publico e critica são sacudidos um trabalho inteiramente novo, apontando outros caminhos, outras possibilidades de ver, sentir, ouvir o Brasil: “Tambor e Flor”
No titulo e no roteiro das canções, uma constante busca de Consuelo: o contraste obtido através da  junção de opostos: a delicadeza da Flor versus a força do Tambor. Esse disco, hoje raro e fora de catálogo, teve a difícil missão de alinhavar harmonicamente temas aparentemente díspares, como Cacuriás, Maria Del Carmen e Deusa da Lua. A voz de Consuelo, os violões de Mario Gil, a percussão de Cassia Maria, entre outros, fizeram fluir vigor e delicadeza em cantos de guerra, paz e amor.
Depois vieram: Dança das Rosas, Negra, Casa, O Tempo e o Vento, cada um deles com sua própria história, seu próprio timbre.

E assim chegamos ao Sétimo Disco, ao Sétimo Selo: surpreendendo mais uma vez: Maryakorè!



Maryakorè é um salto. Mergulho radical, onde a doçura de sua voz conversa e contrasta com o violão, o piano, percussões, elementos lingüísticos. Doce e áspero, é o seu disco “rústico”, dada a ousadia dos cortes viscerais entre os temas, sem deixar pontas soltas: tudo se equilibra, apesar de nos assolar a sensação de  um disco estranho e fascinante. Mestiço, incomum, misturando expressões, palavras/idéias de alguns dos idiomas que forjaram a nação brasileira (Maryakorè é uma junção onde se misturam elementos das culturas indígena, africana, lusa/européia).

Uma flecha disparada desde a faixa inicial, “Ventoyá”, melodia de sonoridade cabocla e uso pouco convencional do violão percutido sobre uma letra que só Dea Trancoso poderia criar. Uma Flecha de Fogo (fazendo, aqui, lembrar “Facho de Fogo”, poderosa cantiga de João Bá e Vidal França) libertada depois de estar tensionada por largo tempo: esse “disparar” da flecha rumo aos nossos corações e mentes, é o que se seguiu às inquietações da artista que acabava de fechar um ciclo, a trilogia com Rubens Nogueira. Ante várias possibilidades, várias parcerias em pleno vapor – até mesmo uma inusitada parceria com Adoniram Barbosa - eis que ela capta entre as brumas tumultuosas que se agitavam pesadamente na vida brasileira, um grito primal, tangido a batuque

“...quebrai a miséria, então
 Acendei luz em nosso olhar, oyá”.

...o grito ecoa vindo das matas, dos terreiros, dos campos, das ruas, ganha corpo, se torna ventania; um brado conclamando a ação, a resistência cultural, espiritual. E, porque não?, politica, social.



Tudo começou a partir de sua motivação  a exercitar uma série de “movimentos”, espécie de “ensaios” realizados em pequenos espaços, como o Mora-Mundo na Barra Funda ou o Teatro da Rotina, na Consolação, onde, em clima quase intimista,  a fez trabalhar incessantemente o violão e essa intimidade com o instrumento, revelou que tinham mais a se dizer do que se pensava até então...
Esses “movimentos”, encenados para voz e violão foram batizados por ela de “movimentos do amor e da luta”.

A harmonização de aparentes contrários é algo crucial na compreensão de uma cultura mestiça como a nossa. O dom visionário concedido aos poetas sempre deu a ela o privilégio e a missão de alinhavar contrastes e assim, os “movimentos do amor e da luta” se tornaram alternativas  possíveis  num momento em que o mundo anda perigosamente flertando com a intolerância.



(Seria a intolerância apenas a face visível de uma tendência histórica casual, momentânea? Parafraseando Darci Ribeiro em Viva o Povo Brasileiro, o Brasil terá um papel relevante no mundo justamente por sua natureza forjada no amalgamento de culturas. A intolerância , a beligerância e o ódio é o oposto, é contrario  a nossa índole. Contraria a nossa natureza, daí a imortância e a necessidade do grito de alerta, de libertação, de reação).

Os “movimentos de amor e luta”, é também revolta. Revolta  silenciosa,  sem estridências, e também sem comiseração. Chama para a batalha, conclama o enfrentamento, contudo, sem alarde: é Tambor e Flauta! “Amor e Luta” . Re-encontro.

No reencontro, culturas, linguagens, musicalidades que confluem num acerto de contas com a história, onde os que foram massacrados, derrotados e destituídos de dignidade, mostram que estão entre os vivos, apesar de tudo: sangue índio e negro e dos desterrados correm nas veias da nação e foram despertados por  esses “movimentos”, mas o fizeram em ritmo de contradança: passado ressurge através dos cantos;  os movimentos inserem a possibilidade de rompimento, de mudança! Porém, esse rompimento é ao mesmo tempo, uma reconciliação, eis o que anuncia Maryakrè! Sem medo do espelho, decompomos a palavra Maryakoré, e no processo, fomos re-descobrindo camadas submersas:

Marya – remete a Maria, primeiro nome da artista (Mª Consuelo de Paula);
Koré – flecha, na língua paresi-haliti, do tronco familiar aruak;
Oré – nós, em tupi-guarani;
Yacoré – nome próprio africano.

A “decifração” de Maryakorè pode prosseguir, transmudando-se, alertando que não é um personagem, um herói ou heroína segundo os clichês, tão em voga no cinema e televisão; não é uma  versão estilizada de Macunaíma, o sem caráter – a rigor, Maryakoré, por seu lado, reafirma  o caráter nacional! O que difere Maryakorè é precisamente o caráter. Se Macunaíma é o protótipo arrevesado do Herói Tupiniquim, que nasce preto e vira branco, Maryakorè é o afloramento das forças latentes,  desde as vísceras da Nação!

Se juntarmos a primeira sílaba da palavra (ma) com a última () teremos “maré”, o eterno respirar do Mar;
se invertermos as palavras (re) e (ma) obtemos a palavra  “rema”, nos aproximando de uma das canções-síntese da obra: “Remando Contra a Maré”, é ponto-chave, mas seguimos no barco sem sobressaltos, em balanço suave.
As palavras como amuletos mágicos, criaturas vivas que possuem força e personalidade. A  artista as conduz, dosando habilmente sua força interna. Maryakoré é chamado:

 “MAR”: as três primeiras letras da palavra, é ponte entre mundos; através dos MARes, a “precisão” do navegar;
no meio da palavra, as letras Y, A e K, “yak” ou iaque, um herbívoro de grossa pelagem, parecido ao nosso Boi Zebú, que vive  nas planícies do Himalaia, visto como símbolo de resistência.

“Maryakoré” palavra-símbolo e também barco a nos levar nessa viagem de aventura-re-descoberta-regresso. (A decifração adquire aspectos  cabalísticos quando percebemos, numa precisão quase matemática , que, ao observarmos a palavra da direita para a esquerda, destacam-se vivamente as letras O, Y e A, sequencialmente, formando OYÁ, Iansã, a Orixá dos fenômenos climáticos!)

Maryakoré,  nossa alma mestiça indomável!
E no seu centro, é travada uma dura batalha.
Mas a guerra aqui tratada, ao contrário de outras guerras, não  evoca, não  traz destruição: convida a  reflexão. Há momentos telúricos, ponteados nas intervenções pianisticas, violonisticas, porém, é a percussão de Carlinhos Ferreira que permeia todos os elementos. Como o sangue que conduz os nutrientes por todo o organismo. Percussão “orgânica”, nos desperta do sono, às vezes de modo enérgico, outras suave, nos fazendo compreender porque calhou, aqui, se juntar nas aldeias do coração do Brasil, uma gente que andava dispersa!
Esse “ajuntamento” de espíritos é o “arreunir” convocado pelos irmãos Dércio e Doroty Marques lá pelos finais dos anos 1970, na  contracorrente das tendências  em voga na época (e já que mencionamos os Irmãos Marques, convém lembrar Cátia de França, sempre uma inspiração).

A  reaproximidade com as brasilidades e latinidades ganhou grande força antes da própria concepção, quando Consuelo produziu o disco Anambé, de Grazi Nervegna. “Anambé” foi um dos caminhos que conduziram aos “movimentos do amor e da luta”, a espinha dorsal  e principal referência de Maryakorè. “Anambé” também é uma palavra mestiça e também remete a buscar o reencontro da alma brasileira consigo mesma: “Anambé”, “Ventoyá” “Maryakorè”, todas expressões com tonalidades xamânicas, ou seja, trazem em si elementos de cura, limpeza, purificação.

Palavra-viva, entidades complementares, harmonia de opostos: tambor, flor, o tempo, o vento:
poesia, viola brasileira, acordeon, piano, voz, percussão, violão. Durante os “movimentos”, o violão é o centro, sempre destacando a voz forte, clamando ser ouvida e então, o brado emerge,  visceral, rústico – “morte não vai me matar!” – para romper caminhos ante consciências amortecidas:

travessei o mar
Deixei a senzala e fui em frente
Morte não vai me matar...”

No entanto,  submerso em pleno caos, a esperança retoma o comando. Em “Remando Contra a Maré”,  reina a pura poesia de uma doce Consuelo espalhando pétalas, e seu canto se torna  suavizado/equilibrado por um atemporal piano – religando, reencontrando o contraste sempre almejado  através da discreta percussão, das moringas  e sementes: 

Carlinhos Ferreira

Consuelo (re)tomou um caminho do qual não voltará tão cedo. O mergulho  nas entranhas de outros brasis apenas começa. Os  “movimentos de amor e luta”, são os instrumentos da vigilância perene que devemos exercer para não nos brutalizarmos. Afinal, vida é amor e luta, o eterno movimento pendular,

“Minha casa é aberta,
meu lugar de aprendiz
minha casa é floresta...”

(...)

O texto termina assim, sem conclusão direta, assinalando que se trata de um uma obra aberta: uma obra que se apresenta como uma janela invadida pelo frescor vigoroso dos ventos que trazem consigo miríades de cores e luzes; 
um texto feito  sem aparas. Deixei-me levar pelas palavras,  transportando-as diretamente  para o papel carregadas pela mesma estranheza com que foram percebidas logo na primeira audição do CD: um remoer de vísceras, o desnudamento, ouvidos desnorteados ante o entrecruzamento dos idiomas primitivos que forjaram  o meu, o brasil de todos nós.
E enquanto escrevia, ouvia clarins e tambores, mas também flautas e flautins. Escrevi direto do front de uma guerra que nesse momento se trava no mais profundo interior do coração da alma brasileira. Por isso é incompleto, convidando diretamente o leitor/ouvinte  a deixar-se provocar por Maryakorè, o disco rústico da doce Consuelo de Paula.



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