UM CERTO JOSÉ MÁRIO BRANCO


No ultimo mês de novembro, 2019, alguma nota de jornal deve ter informado no Brasil do falecimento do músico português José Mario Branco. Digo “deve”, porque fiquei sabendo pelas redes sociais  na manhã daquele 19º dia do mes. Nos dias seguintes, nada vi em nenhuma publicação brasileira, absolutamente nada.  As redes sociais, entretanto, estiveram ativas e pude acompanhar depoimentos e homenagens por parte de fãs, amigos, admiradores.



Se por um lado deploramos o esquecimento de figuras importantes pela grande mídia, por outro  acende-se certo interesse pela Rede Social como alternativa informativa à grande midia. Ao contrário do se pensa usuamente, não é apenas o rol de bobagens e inutilidades, despejados aos milhões, diariamente, e que, pode sim, ser um veiculo de debate e divulgação, desde que dela retiremos a aura mística ou mágica que em momentos de infeliz infortúnio lhe atribuímos; e que mantenhamos o espírito crítico e que haja regras mínimas de civilidade e honestidade por parte dos usuários, pois seu mal uso pode se tornar perigosa arma: as incontroláveis fake news. De resto, como qualquer outro recurso tecnológico, é alvo de desconfianças até que se consolidar, sempre foi assim relativo a novidades desde que o mundo é mundo. O importante é estar consciente de que se trata de um sistema imperfeito e como tal está em permanente construção: a internet e um de seus frutos, a Rede Social, é um instrumento para obter conhecimento, um  recurso a ser explorado, e não a solução pronta e definitiva – felizmente, pois se assim o fosse nos tornaríamos seres imbecilizados, destinados a uma espécie de vida vegetativa.
Sobre o esquecimento da mídia de figuras fundamentais numa sociedade, não é de se espantar:  a notoriedade pública trilha outros caminhos. A mídia, que necessita recursos, se guia por interesses, nem sempre escusos; nem sempre coincide a aspiração útil e desejada e a principal aspiração do veículo é a publicidade e audiência, combinados. O que deveria importar? O interesse público? Mas, afinal, o que é o interesse público?  
Bom seria se a História e quem a faz fossem de fato o “interesse publico”,  e que fosse condição sine qua non a obrigação consciente da divulgação de fatos, como uma efetiva “prestação de serviço!” Mas não é! Quem manda e decide é o deus mercado, movido pelo publico/ audiência/publicidade, dinheiro enfim. Na Rede Social o compromisso ético no que concerne à informação é ainda mais vago e diluído, de modo que a democracia da informação, nesses novos a avassaladores tempos é um Mito. Contradição gritante dos tempos modernos e da facilidade técnica disponível: cada vez menos temos segurança real do que vemos nos noticiários, cada vez mais estamos sujeitos à manipulação: a vida, como um todo, a cada dia corre o risco de ser virtual. Não é mero acaso a banalização do horror.
Vem a calhar essa breve referência, pois o  português José Mário Branco tinha grande interesse sobre a cultura de massa e seus efeitos sobre as pessoas, as sociedades e as relações entre os diversos e heterogêneos grupos. Como Zé Mario, que estudou lingüística já em idade avançada, demonstrando seu interesse e curiosidade, veria as relações entre os grupos e as instancias de poder, ele, que em momentos cruciais de sua vida era um ativo militante, não se furtando a se expor através de inflamados discursos em nome da causa defendida? Não sei o que ele pensava a respeito, mas não deixa de ser irônico que a noticia que nos informou de sua morte tenha sido por veículos  “alternativos”! Como já aconteceu outras vezes e acontecerá outras tantas.

Serve de algum consolo o fato de não ser esse um caso isolado e tampouco uma espécie de boicote a José Mário, sua arte ou contra Portugal. Puro e mero desinteresse, uma vez que cada vez mais, dada a quantidade absurda de informações, a memória se torna algo disforme, distante. José Mario Branco e seu tempo, sua musica e sua vida,aos olhos da grande massa, se dilui, mesmo sendo ele uma das figuras mais importantes da musica e da cultura portuguesa das últimas décadas. Os tempos são de consumo intenso e veloz, prevalece a busca acachapante por novidades; em meio a azáfama global cotidiana, referências  se perdem, pérolas são esquecidas a beira de caminhos. Ou atiradas indiscriminadamente aos porcos.
Aqui mesmo, de onde escrevo, em nosso quintal, não é diferente. Há poucos meses – precisamente menos de um mês antes de Zé Mario, faleceu o musico paulistano Walter Franco, um importante revolucionário cuja musica causou grande impacto na MPB dos anos 1970. Sua brilhante e polêmica carreira não mereceu mais que poucas linhas, consumidas apenas pelo restrito publico que sempre acompanhou a vida musical do autor de “Revolver”, um disco de título ambíguo, como se vê, que marcou época. Outros exemplos se apresentam: os gênios de Moacir Santos e Laurindo Almeida, monstros sagrados do jazz,até hoje absolutamente desconhecidos no Brasil.

Pois bem: se a mídia nativa não é capaz de destacar artistas fundamentais de nossa musica, que dirá de um português franzino de cara enfezada,  que cultivava grandes bigodes e que sempre teve vida discreta perante o chamado mundo do espetáculo, mesmo sendo um ativo agitador cultural, que como poucos compreendia a relação intrínseca entre Arte e Politica? Mesmo à distancia, o testemunho, mesmo superficial de sua vida nos revela que seu conhecimento e  envolvimento com os movimentos cruciais de sua época, não só do seu Portugal, mas do mundo, com reflexos na música brasileira, como se verá a seguir.
José Mario foi um agitador,  um ativista, um homem que participou intensamente seu tempo. Seu legado é riquíssimo e abundante, conforme atesta sua sua vasta obra. Teria em sua terra tido a mesma consideração que aqui, do outro lado do mar? Provavelmente teve algum destaque sim, deve ter sido discutido em alguns canais específicos nos dias a seguir à sua morte, mas nada que lembrasse uma comoção nacional. Não que tivesse sido mostrado por aqui.

O leitor regular do blog ser-tão paulistano, sempre voltado à cultura brasileira, notadamente paulista e paulistana, pode estar se perguntando:
Mas, que tem esse desconhecido entre nós tem a merecer  nossa atenção e interesse?! De onde vem o gajo e em que nos importa?” Pergunta válida e coerente especialmente quando é comum notar nossa fraca memória histórica. Mesmo grupos brasileiros usualmente dedicados à musica lusa o desconhecem. Mas é fato que direta ou indiretamente influiu na música das bandas de cá, mesmo nunca produzindo nada com brasileiros – que eu saiba.

Os leitores e leitoras do ser-tão paulistano certamente estão familiarizados com a notória figura do cantador Dércio Marques, de longa e ampla presença em nossa vida artística desde seu surgimento em fins da década de 1970 até sua morte prematura em 2012. Foram dezenas de anos de atuação, de presença ativa em nossa cultura musical, descobrindo e forjando tendências, arregimentando seguidores por todas as regiões do país. Era literalmente um andarilho, não apenas por terras brasileiras, mas sulamericanas. De vez em quando parava num canto qualquer e de seu embornal repleto de músicas fazia surgir material capaz de erigir uma torre, em forma de disco. Inquieto, retomava caminho, sempre em busca, sempre à procura de novidades que sabia ocultas sob camadas e camadas de esquecimento, encoberta por musica comercial  sem vinculo com as comunidades de origem. Pois foi lá pelos mesmos meados de anos 1970 ou 1980 que Dércio realizou uma viagem a Portugal, onde foi conhecer o cantor e compositor José Afonso, o Zeca Afonso. Zeca já era conhecido por aqui tendo uma musica sua , “Milho Verde”, lançada no álbum “India”, de 1973.
A viagem e o contato de Dércio com José (Zeca) Afonso ajudou  num alcance maior entre o pessoal da MPB, principalmente do circuito alternativo – depois chamado musica independente – que naqueles anos 1970 davam os primeiros passos, fora do domínio das grandes gravadoras.
Dércio lançaria algumas musicas de Zeca em seus discos. Destaque para a notável “Cantiga de Embalar” e a surpreendente, dado o apelo revolucionário, de “Que Força é Essa?”, num de seus álbuns mais importantes: “Canto Forte – Coro de Primavera”. Anos depois, no disco para crianças, “Anjos da Terra”, Dércio incluiria “Maravilha, Maravilha”, na voz de Pedro Afonso, filho de Zeca. 


Dércio Marques

Como sementes fortes ganham força quando semeadas por boas mãos, Diana Pequeno incluiria num de seus melhores álbuns, o antológico “Eterno Como Areia”, a imperdível “Rio Largo de Profundis”. Em outro álbum incluiria “Se o Amor Não Me Engana”. Pronto, estava retomado o caminho: a ponte entre os dois mares, o português e o brasileiro, estava palmilhada (a propósito, muitos anos depois, Kátya Teixeira juntamente com Luiz Salgado, declarados discípulos de Dércio, mais uma vez reinauguravam essa ponte concreta com a criação do álbum 2Mares, com destaque para o clássico “Gondola Vila Morena”).  Nos altimos anos quem anda vez ou outra atravessando a ponte entre os 2Mares é o violeiro Fernando Deghi. Um de seus últimos álbuns, “Navegares”, está repleto de referências lusitanas, com destaque para uma “Suíte Ibéria”. O “derciano” mineiro, Erick Castanho homenageia Portugal em seu CD Elemental, nas faixas “Ventos do Minho” e “Histórias Além-mar”.  O inconfundível Renato Andrade, no LP “A Magia da Viola” envia “Meu Abraço a Portugal”, imitando em sua viola uma típica guitarra portuguesa. Ana Salvagni, em seu disco de estréia, nos brinda com "Macelada", do folclore portugues, e que bem podia ser brasileiro!
Mas talvez a cantiga que melhor retrate essa simbiose cultural que acredito existir entre Brasil e Portugal - que, como disse, vai além do idioma comum! - seja as poucas, as mínimas estrofes de "Adeus ó Serra da Lapa", do LP "Venham Mais Cinco" (não por acaso, disco produzido e arranjado por José Mario Branco). A música foi cantada por Kátya Teixeira no seu segundo CD, "Lira do Povo", que a "bordou" (uma prática de Dércio Marques, isso de "bordar", emendar uma cantiga a outra) com "Alegria da Criação". Essa cantiga, singela, simples, que trata do amor à terra e que por isso possui uma vitalidade impressionante, na minha opinião é a canção que unifica as duas nações e justamente por isso, pode ser cantada sem nenhum instrumento que conserva a mesma força e harmonia. Seus versos poderiam não se deter rigorosamente em nenhum dos dois países (apesar da temática ser naturalmente lusa) e ao mesmo tempo, tem tudo, é, dos dois! Como se pertencesse aos dois povos, indistintamente!
Outras referências devem existir por aí, mas, ficamos com essas. Por ora!

Dércio Marques, sempre é  válido lembrar, desde o lançamento de seu primeiro disco, “Fulejo”, em 1977, sempre pautou suas atividades por mergulhos vertiginosos em busca das mais profundas raízes brasílicas. Se na estréia em disco, no “Fulejo”, resgatou temas desconhecidos, como o samba rural e revisitou, remodelando, peças do cancioneiro tradicional caipira que estavam  esquecidos, como “Serra da Boa Esperança” ou “Natureza”, clássico de Tonico e Tinoco, no disco seguinte, “Terra Vento Caminho, seu interesse se ampliou pela América do Sul, trazendo para nós autores como Atahualpa Yupanqui, a quem ele interpretou de forma soberba, especialmente na canção “O Menino”. Para quem conhecia Dércio, sua curiosidade insaciável, o interesse pela obra de Zeca Afonso foi perfeitamente natural e de fato tinha muito a ver, pois Zeca – sob a influencia de José Mário Branco – graças a um tempo passado na África, Angola,  havia incorporado a seu trabalho a influências africanas tanto musicais quando sociais/políticas, pois os movimentos de independências nas colônias lusas – ultimo suspiro do colonialismo - eferveciam (mais adiante retornaremos a isso).
Existem alguns informes que asseguram ter Zeca um certo conhecimento da realidade brasileira, que então vivia o período duro da ditadura – a exemplo de Portugal sob o salazarismo. Zeca compôs pelo menos uma musica tendo o Brasil como tema: trata-se de “Alipio de Freitas”, composta  em homenagem ao padre português que teve forte presença  no nordeste brasileiro durante a ditadura, ajudando a fundar as Ligas Camponesas, junto ao seu principal líder, Francisco Julião, que por sinal, é citado na musica. Outra evidencia do envolvimento de Zeca com realidade brasileira é presente num disco claramente panfletário. Ficou muito conhecida da época a chamada “Arte de Intervenção”, presente em diversas manifestações artísticas, mas especialmente em musica e teatro. Consistia em rápidas intervenções, nas ruas, onde os cantores ou atores faziam uma exibição relâmpago  geralmente de crítica ao governo e ante a proximidade das forças policiais, se dispersavam. O disco em questão é chamado “Republica” e seu processo de produção seguiu o molde das apresentações nas ruas: gravado em apenas dois dias, na Italia e aparentemente tinha a atenção de chamar a atenção do mundo para o que acontecia não só em Portugal, como em África e América do Sul/Brasil. Esse trabalho, que não foi lançado em Portugal, sendo uma raridade, é tão paradigmático quanto a atuação de Zeca durante o Abril de 74, quando, sob os acordes iniciais da canção “Grândola Vila Morena”, à meia-noite e 20 minutos  numa emissora lisboeta, foi a senha para os tanques saíram as ruas, dando inicio ao processo de deposição do. No disco, com a voz de Zeca e pouquíssimos instrumentos são cantadas musicas revolucionárias, de sua autoria, e entre elas uma exceção: “Pra Não Dizer que Não Falei das Flores”, de Geraldo Vandré, ícone da canção de protesto brasileira.


Capa do LP Republica, gravado na Italia em 2 dias

O autor dessa missiva teve contato com a obra de José Afonso através de Dércio Marques, episódio relatado no post “Cantigas de Embalar”, cujo link, a quem possa interessar, segue: http://www.sertaopaulistano.com.br/2008/04/cantigas-de-embalar.html


Essas breves incompletas e pobres palavras vem apenas lembrar da ligação entre a musica e cultura portuguesa com a brasileira, que existe mais ou menos à margem dos canais oficiais. A elite acadêmica brasileira é declaradamente francófona: procuram, nossas elites, refletir as classes que compõem o chamado “mandonismo”. Grosso modo, algo mais ou menos assim: é chique “ser francês”. O resultado é um tipo de macaqueamento grosseiro a ponto de surpreender  viajantes estrangeiros. Levi-Strauss, por exemplo, admirou-se com os edifícios no centro de São Paulo da década de 1930 que copiavam estilos afrancesados. “Ser francês” , em último caso, é uma espécie de  mania de grandeza das elites cafonas e incultas. Entretanto, alguns movimentos nativistas elevaram-se contra isso, felizmente, tendo um de seus pontos culminantes no Modernismo e mais adiante no Tropicalismo. Mas aí são outras histórias. Mas o macaqueamento é inegável: quando da formação da USP, nos anos 1930, as aulas eram ministradas em francês e dentre os professores que por cá aportaram, estavam o já citado Claude Levi-Strauss e Fernand Braudel. O que não foi nada mal, pois, foi aqui que Levi-Strauss, que veio dar aulas de filosofia, se descobriu etnólogo. Mas por outro lado, a distancia e ausência de estudiosos portugueses ou mesmo espanhóis entre nossas letras, não deixa de ser lamentável. Qual o estudante brasileiro que tem ou teve contato com a obra de Boaventura Souza Santos? O filósofo espanhol Ortega Y Gasset, fundamental para compreender  o Homem dos tempos modernos,  é um ilustre desconhecido em nossas academias de Ciências Sociais. 
Quanto ao que herdamos dos portugueses, notadamente em música – sem duvida o instrumento que se tornou um símbolo da musica brasileira, a hoje chamada viola caipira ou brasileira,  certamente foi introduzido aqui pelos portugueses – mas vai além, muito além do intercâmbio sócial através dos costumes que por cá se solidificaram ao longo de séculos. Sempre houve uma ponte livre, um elo misteriosamente estabelecido, permanentemente alimentado,  que se mostrou  com fortes ligações, além do exotismo folclórico do“vira e bate o pé. A ligação Brasil e Portugal sempre foi além do idioma, pois a cultura portuguesa  se amalgamou à outras existentes por aqui – afro, indígena e de outras regiões daEuropa, Médio e Extremo Oriente. Nossa caldeirão cultural é único, diferente de outros lugares onde a cultura foi forçada ou mesmo transplantada, como no caso australiano.

 José Mario Branco,  de importância capital para a musica portuguesa, influenciando e dirigindo várias gerações de artistas, influiu também na musica brasileira, uma vez que foi o arranjador de Zeca Afonso, que, como foi citado acima, foi registrada presença e influência entre os artistas daqui. E Zé Mário não foi apenas o arranjador, foi o personagem que transformou e deu novo rumo a carreira de Zeca. Podemos afirmar que com certeza que sua musica  jamais seria o que foi sem a presença de Zé Mario. Esse dado é importante ressaltar, pois não são poucos – especialmente no Brasil – que conhecem e admiram Zeca e nada sabem de Zé Mario.
Zé Mário foi uma personagem única no seu domínio sobre muitas áreas de interesse, incluindo  filosofia,  política,  cinema,  teatro,  lingüística e naturalmente a musica. O múltiplo José Mario Branco tinha, desde sempre, grande presença na cena teatral e um intenso ativismo político. Foi ele quem soube compreender que o talento de Zeca estava limitado a determinados esquemas musicais que até então o mesmo seguia  com certo sucesso e sobriedade,  quando ainda era conhecido como Dr. José Afonso. Os primeiros trabalhos dele eram  fundeados e tendo como inspiração principal os fados de Coimbra, denominado pelos portugueses como ”Coimbrão”. Que oiçam  seu disco de estréia, “Fados e Canções”, basicamente um disco de fado. Pressente-se certo frescor, que o difere do fado tradicional, mas basicamente é um disco de fado.




José Mario Branco surgiu na carreira de Zeca no momento crucial, onde suas escolhas se encontravam numa espécie de encruzilhada: comportar-se pura e unicamente como um artista, um cantor de fado tradicional, tendo aqui e acolá alguns laivos vanguardistas, contudo – se assim o podemos dizer – em sendo antes de tudo,o comportado fadista dentro da melhor  tradição musical lusitana. Sua estadia em África, em Angola,  presenciando outras realidades, especialmente a guerra colonial e suas conseqüências que deixariam  profundas marcas na vida portuguesa, deveria estar intimamente disposto a expor essas inquietações: os batuques, os ritmos, a alegria e vigor africanos, além da luta intestina de um Portugal que procurava reagir sob o salazarismo que havia petrificado o país. Tudo isso deveria ter provocado em Zeca verdadeiros alvoroços internos. Zé Mário surgiu nesse contexto, que deve ter sido determinante para lhe clarificar e determinar sua ação nos anos que viriam. “Cantigas de Maio”, de 1971, que mescla tradição e revolução, foi o primeiro de muitos que viriam, a quem lhe coube fazer os arranjos e orquestrações, revigorado com os melhores instrumentistas de então.


Zeca ao centro, Zé Mario à direita. O terceiro não sei de quem se trata.

José (Zeca) Afonso

Nesse mesmo ano, reflexo de sua polivalência, produziu seu primeiro LP, “Mudam-se os Tempos Mudam-se as Vontades. Até então tinha feito apenas singles de curta duração, a começar pela sua estréia em disco (1967,) “Seis Cantigas de Amigo”, peças pinçadas do cancioneiro medieval, que contou com a participação de Sérgio Godinho (outro conhecido dos brasileiros, gravou com Milton Nascimento).





 À partir do “Cantigas de Maio”  a carreira de Zeca sempre seria pautada pela presença de José Mário. Mesmo os trabalhos que não contaram com sua participação direta remetem a sua influência.  Ao mesmo tempo, produzia outros artistas portugueses. Seu  rigor e sensibilidade  extraía daquela grande safra de músicos o melhor de si: Luis Paredes, Luiz Represas, os irmãos Vitorino e Janita Salomé, Francisco Fanhais, entre tantos. Um traço que explica muito de si: pesquisador dedicado, sempre recusou honrarias e prêmios, considerados por ele como resquícios dos tempos da decadente monarquia!

 Entre todos eles, a simbiose artística e política, que sempre esteve latente desde sempre: unia-os a causa comum – inclui-se aí Adriano Correa de Oliveira e Manuel Alegre. A causa comum  solidificaria naqueles anos decisivos da história portuguesa, que encontrava na música a perfeita tradução para a inquietação daqueles anos em que se respirava mudança e revolução.
José Mário, por temperamento e personalidade artística, sempre teve facilidade em retornar às raízes populares, por isso transitava entre a tradição, a vanguarda e o clássico. Conhecia como poucos as singularidades da alma lusa, em cuja interpretação e representação, fazia uso de toda versatilidade, ele, um conhecedor de caminhos, seja do ponto de vista artístico ou sócio cultural. Suas convicções foram fortalecidas em seu espírito muito cedo na vida, pois, perseguido pela  PIDE – a temível policia secreta portuguesa – aos 21 anos foi obrigado a se exilar na França, o que lhe acabou sendo de grande valia em termos de aprendizado, pois acompanhou de perto o movimento que culminaria nos acontecimentos do Maio 68.


capa do LP Ser Solidtário

Teria sido a experiência do exílio a principal fonte que acalentou seu espírito revolucionário? Como uma materialização da idéia exposta por Walter Benjamin em “O Anjo da História”, José Mario tinha um olho na tradição  e outro no futuro. As transformações pelas quais o mundo clamava não foram sua única força motriz; quero crer que seu verdadeiro porto seguro era a grandeza da história lusitana que deve tê-lo marcado desde os tenros anos – como revela  o resultado de primeiro trabalho gravado, as “Seis Cantigas de Amigo”, do cancioneiro medieval, rico em recursos satíricos que aparentemente tinham encerrado seu curso nos antigos Autos, como a farsa de Inês Pereira, por exemplo. “Seis Cantigas de Amigo”, magnificamente arranjado com o que havia de melhor, pode ser uma pista indicativa de como ele situava Portugal frente a história. Revela seu grande interesse pela alma lusa, que lhe permitia vislumbrar a exata importância do papel de seu país, não só no passado imperialista, mas na vida e na democracia moderna, mesmo tendo lhe restado apenas uma pequinina parte da antiga grandeza.
Seu último trabalho de vulto foi a produção de um disco de Katia Guerreiro, a Grande Dama do Fado Portugues dos últimos tempos. Antes produziu outro grande fadista, o Camané. Soa curioso porque até onde sabemos, ele não era precisamente um admirador entusiasmado do Fado. Soaria arcaico? Não creio ser essa a expressão correta, um português jamais chamaria o fado !arcaico” mas, talvez, antiquado e inadequado para expressar as novas e candentes realidades dos novos tempos. “Antiquado”, diga-se, para quem considerava a “cantiga uma arma”, portanto, contraditório para alguém que sempre esteve na vanguarda, animando transformações. Mas ele voltou ao fado, e aparentemente, com a segurança que a maturidade artística lhe autorizava. O Fado adquiriu aos seus olhos, animado pelo talento de Katia Guerreiro, um campo aberto para experimentações estéticas até então não vislumbradas  - teria ele vontade de fazer no fado algo do que fez Piazzola com o tango? Sua partida prematura nos impede de especular. A verdade é que estava entusiasmado apaixonadamente pelo fado. E parecia decidido a lhe tomar frente em trabalhos futuros.



 Estava cheio de projetos quando foi surpreendido pela morte, na forma de um AVC traiçoeiro na madrugada de 19 de novembro de 2019, aos 77 anos. Estava na plenitude artística, como demonstra algumas entrevistas que deu por conta do trabalho com Katia Guerreiro. Seguro e confiante. Sua obra não se encerrou, continua em aberto, permanente desafio para os que vem depois dele, que em cada trabalho, fazia questão que a essência chegasse aos ouvidos e a compreensão do público, que para ele não era uma simples massa receptiva, passiva e amorfa.  Quem não se lembra do clássico libelo denunciando o FMI (Fundo Monetário Internacional)? Não tenho conhecimento de denuncia tão óbvia e clara, tão explicita no caráter desmistificador da monetarização internacional da vida economica, elaborado pelos ricos, com capacidade devastadora de influência especialmente nos países pobres, dando-lhe o direito de interferir diretamente na vida econômica/social dos países que durante toda existência foram explorados por eles, os ricos. “FMI” é uma obra datada, certamente. Mas vez ou outra pode ser oportunamente lembrada, pois muitas vezes a História ameaça se repetir, mesmo sob farsa. Ecoando um de seus trabalhos mais significativos, que poderia servir de epitáfio para José Mário Monteiro Guedes Branco: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.
Mas às vezes os tempos não mudam e as vontades são subjugadas. Por isso, precisamos dos grandes homens, dos homens profundos, conforme  descrito por Nietzsche.




Os grandes homens são como as grandes épocas, matérias explosivas, enormes acumulações de forca.” (F. Nietzsche)



P.S. Dedico o presente post a meu amigo Alexandre Silva, do Estoril, Portugal, quem primeiro me falou da importância de um certo José Mario Branco na obra de Zeca Afonso







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