A VIOLA E UM CAIPIRA: O LIVRO DE PARTITURAS & TABLATURAS DE JULIO SANTIN

 

É possível que qualquer pessoa, de qualquer lugar, ao ouvir a música de Julio Santin pela primeira vez encontre elementos familiares: sim, é muito provável que qualquer de nós tenha ouvido no passado algo parecido, pois Júlio nasceu e cresceu para a vida e para a música numa região de fronteira onde, desde o início da colonização, sempre conviveu com  vários sotaques: caipira paulista, guarânias, polcas paraguaias, huapangos, chamamés, música andina, cantigas de galpão. De tudo isso e um pouco mais por lá se ouvia. Assim é – ou foi – o Pontal do Paranapanema desde fins da década de 1950 até princípios da década de 1970, quando uma série de eventos forçaram um grande exôdo rural: pode por na conta a crise do petróleo de 1973, que fez o governo incentivar a plantação de cana para combustível e a grande Geada Negra, 1975, que devastou as plantações

Somos da mesma região, o autor dessa missiva e o violeiro Júlio. Eu, nascido em Jaciporã, mas tendo vivido a maior parte da infância na zona rural de Junqueirópolis; Júlio, nativo de Pacaembú, tendo se fixado desde criança em Irapurú. Apenas essas poucas coincidências já seria o bastante para pressentir familiaridades, mas a verdade  é que a apreciação de sua música vai além desse  bairrismo do bem!  Santin, ao tocar, chama a atenção além dos seus conterrâneos e se torna universal porque sua música é autêntica em sua mais pura essência. O Dr. Júlio – ele é médico  – assunta o mundo em torno como observa seus pacientes: o olhar atento e arguto e coração pronto para compreender as aflições de seu próximo, bem como suas alegrias. E, através de finos diálogos com seu instrumento preferido, a viola caipira/brasileira, traduz em música:  o Médico e o Músico, na mesma pessoa.

ÚLTIMA FRONTEIRA DO ESTADO

Toda região de fronteira nesses rincões do Brasil são desafiadoras de muitas formas: desde  conflitos de diversas naturezas até a riqueza  advinda da mistura das diversas culturas que transitaram na região. A música, desde tempos idos, desde a aurora humana, sempre foi a forma mais primitiva de aproximação entre  indivíduos ou grupos de indivíduos. No Pontal,  não seria diferente.

 Desde os primórdios, da formação das primeiras vilas, que qualquer ajuntamento de pessoas  em terreiros, galpões, praças, era comum os presentes portarem revolveres, facas, facões juntamente com rudes instrumentos musicais. A música e seus estilos distintos diferentes tornados códigos,  linguagem comum. Provavelmente era uma maneira de se apresentar, de dizer quem e de onde era. Forasteiros sempre eram acolhidos e convidado a se “apresentar” através de seus instrumentos, sob a cuidadosa atenção de todos.

Os tempos pioneiros foram superados na sua maior parte, a geografia foi alterada, o desmatamento agressivo fez desaparecer as matas verdejantes, mas o caldo cultural já estava adensado e forte o suficiente para resistir aos modismos que viriam. Na época em que por lá vivi – década de 1960 até 1975 – era comum que em toda casa, por  humilde que fosse, havia de ter um instrumento: viola, violão, cavaquinho, pandeiro, tambor. Quem podia comprava, quem não podia fazia com as próprias mãos. Construir violas, rabecas, instrumentos de percussão era antes de ser arte, uma necessidade.

A partir de 1975 teve inicio um grande êxodo rural que diminuiu  severamente a população rural.  Só deve ter ficado quem tinha algum pedaço de terra, onde pôde ao menos cultivar para a subsistência. A causa do êxodo, como mencionada acima, teve razões econômicas e por causa da “geada negra”, de 1975 , especialmente danosa pelo seu poder de destruição. Quando criança convivi muito com geadas, mas nenhuma tão devastadora quanto aquela. O trágico episódio foi registrado na composição “Geada – 75”, presente no segundo CD de Julio. Uma visão sonora, triste e bela da tragédia.

Toda aquela região do Pontal é musicalmente muito rica e o blog ser-tão paulistano registrou tal importância em algumas postagens, por exemplo: “Em Tempos de Caipirapuru”, “A Musica de Seu Eujácio Rocha”, além de alguns textos sobre o Indio Cachoeira, de Junqueirópolis e de  Bruno Sanches, violeiro de regente Feijó.

Por aquele lugar, a última fronteira do Estado paulista, muitas histórias, inúmeros destinos confluíram, muitos de maneiras trágica, como a expulsão dos nativos  no século XIX, a luta pela terra que veio a seguir. O passar das décadas, a chegada de imigrantes  espanhóis, italianos, japoneses, sírios-libaneses, a proximidade com o vizinho Paraguai formatou uma cultura única, legado construído em forma de cateretês, modas de violas, valsas, guarânias, polcas, toadas, catiras, huapangos,  tantos ritmos que se amalgamaram, ajustaram.

FRUTOS MADUROS

A menção “frutos” não é casual. Naqueles confins, de conflitos, mas também repleto de vida, árvores frutíferas eram encontradas em beiras de estrada: mangueiras, abacateiros, goiabeiras. Abundância de frutas e de música. Em meio a tanta fartura, Júlio produziu e lançou dois discos impecáveis e um terceiro está no forno dourando e ganhando uns temperinhos. Suas músicas são documentos sonoros de seu lugar e que abrange um tempo que é de antes dele e seguramente será para os que vierem depois dele., do músico, médico e cidadão comprometido com sua gente. Foi o idealizador do festival violeiro Caipirapurú, que mobilizava toda a região do Pontal e o tornava conhecido pelo país inteiro. Fossem nossas autoridades minimamente interessadas em divulgar nossas riquezas culturais e teríamos não só a permanência do Caipirapurú, como outros festivais semelhantes se espalhando pelo país. Pois o que não falta nesse Brasil é violeiro e violeira!

Mas, em vez de reclamar, temos razão é pra comemorar, todos que gostamos e admiramos a cultura caipira: ganhamos um livro, um valioso presente, que deve soar como a condecoração da obra do persistente  Júlio, cidadão participante, médico curador e violeiro que alegra corações e mentes: os álbuns, “Sentimentos Matuto” e “Capim Dourado”, ganharam versão partiturizada graças a colaboração de uma dedicada equipe, materializada no livro:

A Viola e o Caipira  - Júlio Santin - Partituras e Tablaturas e assim se eterniza, torna-se legado cultural. 


 

Muito do que se produziu culturalmente na região se perdeu. O progresso avassalador altera a própria geografia:  o temível Rio Feio, que era conhecido por sua sinuosidade e cercado por densos arvoredos que o tornavam escuro, perigoso. Viajar nele, de canos, era temeridade. Por isso era chamado “feio”. Pois  o desmatamento desnudou o coitado, tornou-o um curso d’água inocente como outro qualquer, a ponto do violeiro Levi Ramiro que fez um disco sobre a região, em homenagens aos índios caicangues, (Na Trilha dos Coroados) estranha que o “Feio” tenha tal nome, sendo um riachin tão simpático... Quem dera! O “Feio” era assustador, reino das sucuris, frequentado por onças pintadas. Isso num tempo em que devastar matas e rios, abater onças e antas  eram atos eivados de heroísmo...

Musicalmente, o legado está garantido: Julio Santin é um depositário fiel e confiável. Sua ampla e generosa visão alcança a exata dimensão do papel social do artista comprometido com sua gente: daqui a centenas de anos quando os músicos e historiadores  tomarem em mãos as partituras de seu belo livro poderão sem dúvida afirmar: É Tudo Verdade! É uma obra que retrata fielmente o seu tempo. E a música é o monumento desde já erguido.



 

É um livro de Tablaturas e Partituras incomum. Não é a mera transcrição matemática das notas. Ao lado de cada faixa transcrita, uma pequena descrição da composição, das condições e sentimentos que a inspiraram. Por exemplo, na peça “Estação das Chuvas”: “Estação das Chuvas vem como uma benção para o homem do campo. A água é sinônimo de vida e abundância na roça. Chuva na roça é brincadeira pra criança.”

Ou em “Quebradas”: “Quebradas é um cateretê, um de meus ritmos preferidos. Samba caipira. É assim que sinto vibrar a viola quando toco.

E, generosamente por todo o livro estão disponibilizados QRCODE’s, com música e imagens que podem ser acessados com o celular. Julião é um caipira antenado com as modernas tecnologias.

Ficha Técnica:

O livro resulta um grande esforço coletivo, um time de feras, que trabalhou com afinco, carinho e seriedade:

Autor e título da obra: Júlio Santin – A Viola e o Caipira

Textos: Júlio e Domingos de Salvi

Prefácio: Levi Ramiro

Fotografias: Adriano Rosa – Tratamento das fotos: Clayton Roma

Editoração gráfica: Onde Mora a Viola

Web designer: Guilherme Vignini

Partituras de Sentimento Matuto: Silvana Carneiro e Zeca Collares

Partitura de Capim Dourado: Domingos de Salvi

Revisão de texto: Giovana Umbuzeiro Valent

Coordenação geral: Domingos de Salvi, Júlio Santin e Marcelo Weiss

 


Zeca Collares, Julio, Zé Mulato

                                                         O autor e Julio, SESC Consolação

 

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