TIA ANINHA É UM FENOMENO

 


Tia Aninha é a viva materialização da cultura popular, calcada em profundas raízes afro-brasileiras. Onde tiver  Jongo,  Congada, Samba,  Toada ou qualquer  canção brasileira, lá estará Tia Aninha se lançando  alegremente no folguedo, transformando alegria em energia, em brasilidade. Ao ser provocada por Paulo Nunes e Alisson Amador, dentre outros, a registrar seu talento musical em disco, se valendo da prodigiosa memória, não fez de rogada; aos 93 anos topou o desafio e mergulhou no projeto.


 

Desconheço precedentes, mas tenho pra mim que Tia Aninha, aos 93, deve ser a pessoa com mais idade a estrear em disco. Cartola e Clementina de Jesus estrearam oficialmente em disco aos 65 anos, pelas mãos, respectivamente de Marcus Pereira e Hermínio Bello de Carvalho; o violinista/rabequeiro Zé Gomes, depois de participar de mais de duas centenas de gravações, só aos 65 anos lançou seu disco solo. Seu Argemiro Patrocínio, da Velha Guarda da Portela, gravou  aos 79 anos pelas mãos de Marisa Monte;  Juca da Angélica, que dá nome ao Instituto Juca de Cultura (I.J.C.), um dos últimos poetas consagrados à “literatura oral”, teve seu trabalho registrado em livro e disco já passado dos 90 anos,  graças a insistência do poeta e produtor Paulo Nunes.

Deve haver outros exemplos “tardios”, Chico Antônio, por exemplo, que assombrou Mário de Andrade, mas o espaço desse singelo blog é pequeno para o tamanho da pesquisa necessária.

 Mas tia Aninha, independente de estar ou não no Guinness Book, é um fenômeno em diversos aspectos: aos 93 anos, não apenas canta com alegria passarinheira, como é capaz de dançar noites inteiras. Arrisco uma possível explicação: Tia Aninha  não tem idade, a medida que para ela, o tempo não é limite. Enquanto medito tentando decifrar o mistério da força de Tia Aninha, lembro uns versos de Vicente Barreto:

 o tempo é  que acha tempo para te ver passar!” (Vicente Barreto, Senhora, no CD Mão Direita)

...e ela o faz desfilando com galhardia. Também é um fenômeno por ser porta-voz  de todos aqueles e aquelas que cantam pelo puro deleite de soltar a voz, com alegria, mesmo que sejam canções tristes ou dramáticas. Ela é daquelas pessoas para quem música é memória e consciência, está na pele, no sangue e na alma. 



 

Na faixa de abertura ela se apresenta com Viemos de Longe, e nos arrebata logo na sequência com a comovente Mãe Preta, dos gaúchos Caco Velho e Piratini.

Intermezzo: pausa na azáfama, parem o tempo, pois Caso Resolvido é praticamente um desdobramento de Trem das Onze, de Adonirã , que deve ter acendido um charuto para celebrar.

Poderia dizer que esse disco levou 94 para ser feito, pois representa um mosáico, atualizadíssimo, de nossa arte musical. Grande parte do repertório escolhido é inspirado nas manifestações populares – as faixas  O Nosso Jongo é Do Embú , Glorioso Santo Antonio e O Burro Não Sabe Lê. Ou memórias pessoais, saudades dos entes queridos (Saudade), de bichos queridos (a galinha Bolinha), personagens folclóricos (Saci), cenas e situações cotidianas com picardia, humor (Piolho, Largando a Brasa).

Completando o rico mosaico, compositores eternos que atravessaram as dobras do tempo para se juntar a Tia Aninha: Gonzagão (Casamento de Rosa), Noel Rosa (Último Desejo), o ícone caipira Teddy Vieira (O Boiadeiro Errante), o nosso contemporâneo Jean Garfunkel (Morro da Garça), materializando a paixão de Tia Aninha pela obra de seu conterrâneo Guimaraes Rosa.  

Tia Aninha realizou outro raro fenômeno: a capacidade espantosa de agregar , de reunir em torno de si uma pequena multidão de devotados e talentosos artistas, coordenados por Alisson Amador, responsável pela produção musical e arranjos. E uma infinidade de colaboradores que cuidaram da parte gráfica que tornaram o disco físico uma belezura de singeleza e bom gosto.

 Num tempo em que nosso mundo mergulha na febre dos artificialismos e outras modernices, aqui  temos um trabalho que reflete a personalidade artística de cada um, devidamente harmonizados pela presença de luminosa dessa mineira que transcende a experiência da vida em alegria e reflexão exemplares: a escolha do repertório, os arranjos, os instrumentos, o Coro Feminino formam um vivo retrato sonoro, tornado desde já um clássico. 


 

O disco teve um pré-lançamento em maio passado na Cia de Teatro Heliópolis. Lançamento oficial vem por aí, fiquem atentos e atentas.


 

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